Silvia Nogueira é escritora paulistana.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As manhãs são muito minhas… sinto que demoro pra despertar. Caminho pelas ruas desacordada. Gosto de reservar as manhãs pra momentos solitários, saber quem sou naquele dia, naquela hora… quem(s) habita meu corpo. Depois do almoço já reaprendo a me relacionar melhor. Só então ligo o celular. Durante as manhãs, nunca sei como será o café, a cada dia um sabor. Isso vale para os alimentos variados, desde as frutas aos discos, às palavras, aos livros… Raramente começo a manhã com notícias. Leio-as à noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A cada dia, um dia. Os papéis e cadernos sempre me acompanham. Não sei sair de casa sem papel e lápis 6B. Se tragicamente os esqueço, quando percebo, arrumo guardanapo, papel de apoio de prato, papelão, parede… alguma superfície propícia para o deleite das minhas bobagens palavreiras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sempre, mas não com foco em produção. Palavras como “produção” e “meta” soam um pouco “estranhageiras” para mim – um quê alienígena. Penso que a poética como fazer é libertária e transcende as imposições da idade média contemporânea. Por isso, para mim, há os dias, a cada dia. A cada dia um novo sol dá o toque do humor. Há dias dum impulso frenético muito dono de si, há dias-abismo em que uma palavra salva, há dias sem salvação… ¡hay de todo!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O caos num eterno recomeço… Tomo notas sempre. Depois escrevo mais comprido. E ouço. O som precisa dar ziriguidum. Reformo as palavras. Reescrevo e releio. Freneticamente. Aí já começo a incorporar as palavras, quase já gosto delas. Naquela desordem, com aquela sonoridade, com os respiros, as pausas, as exclamações… Quando me conquistam, as palavras, aí mergulho naquele rio e vou.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procurando reler o que me alimenta, ouvir uma canção, caminhar a esmo… Tudo acontece o tempo todo. Quando algo não encontra força para se expressar, talvez seja problema de ouvido interno entupido. Quanto às expectativas, melhor não pensar a respeito. Sempre haverá a quem apetece e a quem não apetece. Importa ter a força de criar o precisa se expressar. Depois ler as nossas bobagens, rir e partir pra próxima.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis vezes. Em alta voz. Para ouvir se cada palavra é aquela mesma que está sendo dita. Não gosto de ouvir palavras sobrando. São como fantasmas distraindo o leitor. E me importa o som e a fluidez.
Temos um coletivo de escritorxs de apetites diversos (prosa, poesia e canção, comics, dramaturgia etc.) e nos reunimos semanalmente para partilhar nossas escrituras. A escrita é já feito muito solitário. Reunir-se com companheirxs nesta viagem dá outro sabor a tudo. E aprendemos um pouco como as escrituras podem chegar ao outro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Um pouco avessa… mas sempre tento melhorar. (risos) Escrevo sempre sempre sempre à mão. Às vezes, gravo no celular – quando as palavras se antecipam em mim e o tempo urge. Costuro os textos com setas e rabiscos e linhas graves e dissonantes a ponto de não mais entender o que está ali escrito. Quando chego a este ponto – e somente quando chego aí – já com receio de desentender as palavras que eu escrevi, aí digito tudo por primeira vez, imprimo e recomeço com setas e rasuras na escritura então impressa. Há uma frase em um conto que escrevi, de inspiração “jânioária”, que traduz este aspecto com certo tom de humor: escrevo porque sou antiga, se fosse moderna digita-mo-ía.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A vida pulsa e se expressa o tempo todo em todo tipo de fenômeno capaz de causar da indignação ao milagre. O mundo é um grande celeiro num frenesi criador. Inclusive o mundo prático do sistema e do trabalho pode servir de inspiração, como bem compôs Melville, em Bartleby. Talvez a questão mais desafiadora seja como des-manter, fazer desmantelar, como sobrepujar, desafiar o potencial criativo em paragens mais inusitadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Percebi que a escrita tem um tempo próprio, certa convexidade. Muitas vezes, assim que considero finalizado um texto do qual gosto, eu o suspendo no paralelo, deixo o texto descansar. Passado algum tempo, quando o retomo, parece tudo uma grande bobagem. Essa percepção tornou-se inequívoca pra mim ao longo dos anos, porém percebi que as bobagens ganham um bojo e já são mais palatáveis. Já sei rir delas e com elas. São menos ingênuas, ou melhor, mais assumidas na corda-bamba da errância onde se (des)equilibram. Então, importa menos o que os outros opinarão e importa mais que o texto encontre seus leitores.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Diria que já comecei, mas ainda muito no começo. Tenho procurado misturar linguagens e desafiar a escrita para além do papel. Que as palavras transcendam a palavra escrita e caminhem por ai. Tenho investigado isso de diversas formas. Cheguei a gravar trechos de texto na rádio do centro cultural há uns dois anos, fiz algumas instalações com um amigo com trechos de textos escritos à mão e recursos de tecnologia, tenho feito propostas de leituras e, em paralelo, me dedicado a um trabalho com palavras e imagens. O desafio seria ver essa mestiçagem muito cheia de corpo habitando o livro com algo do bojo desta multiplicidade de linguagens ou um livrambulante perambulando por aí.