Sílvia Marques é escritora, psicanalista e atriz, doutora em Comunicação e Semiótica.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou muito adepta a rotinas extremamente rígidas. Acordo cedo, faço o café e passo um tempo refletindo. Para falar a verdade, já acordo cheia de ideias e o momento de fazer e tomar o café é bastante intenso no sentido intelectual. As minhas reflexões giram em torno de temas variados. Faço uma espécie de agenda mental, o que preciso fazer naquele dia. Penso em filmes que me marcaram, organizo mentalmente os eventos que pretendo fazer. Preciso deste tempo para mim, para me equilibrar intelectualmente e emocionalmente. Após estes minutos de reflexão, minha rotina fica bem variada. Dependendo do dia, faço exercícios físicos e/ou cozinho. Acesso minhas redes sociais, respondo às minhas mensagens, faço postagens dos meus trabalhos, produzo textos para blogs, para teatro e outros gêneros também. Não existe uma ordem específica. Em alguns dias, me concentro mais na produção de conteúdo. Em outros, mais na divulgação. Existem os dias hiperativos em que faço as duas atividades e aqueles em que me sinto menos disposta e prefiro ficar mais contemplativa. Valorizo muito o tempo livre, o famoso ócio criativo e talvez por isso consiga produzir e trabalhar tanto, pois me permito ficar ociosa e relaxar em muitos momentos. Prezo muito o prazer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Embora não tenha um horário específico para escrever, costumo ter mais energia de um modo geral no período da manhã. Gosto de produzir de manhã (textos, pesquisas, comida etc). Algo que estimula muito a minha escrita é a música. Adoro escutar música enquanto escrevo pois ela aguça a minha sensibilidade e molda de certa forma meu estado de espírito. Alguns textos meus estão tão associados à determinadas músicas, que eles fazem mais sentido para mim quando os leio escutando as músicas que os inspiraram.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta para escrever. Tenho um estilo muito intuitivo e orgânico. Surge uma ideia bacana e jogo as palavras na tela do computador. É um processo bem natural para mim. Escrever é o meu melhor meio de expressão.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim vem tudo junto. Quando elaboro um texto acadêmico, costumo escrever conforme vou pesquisando. Não existe uma separação tão rigorosa. Quando vou fazer literatura, o processo flui ainda mais pois costumo escrever sobre temas e sensações familiares para mim. Não busco grandes ideias nem escrevo para editores ou leitores. Escrevo para mim mesma e espero que alguém goste e se identifique.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sinto travas. Escrevo compulsivamente desde os 11 anos de idade. Com 11 anos, eu já sabia que queria ser uma escritora. Mais do que isso: de certa forma, eu já compreendia que eu era uma escritora. Algo que ajuda muito quem quer escrever é ler muito e entrar em contato com outras artes também. Ver bons filmes e ir ao teatro, por exemplo, podem ser preciosas fontes de inspiração. Outra dica importante é prestar muita atenção nas pessoas, naquilo que elas dizem e como dizem. Embora seja muito falante, sempre gostei de escutar também. Bem antes de me tornar uma psicanalista, eu já percebia que as pessoas tinham certa facilidade para desabafarem comigo e falarem sobre questões íntimas. Quando escutamos genuinamente, de coração aberto, nos transformamos com o relato do outro. A minha terceira premiação literária ocorreu aos 20 anos. O meu conto que entrou na antologia foi inspirado no relato de uma grande amiga. A emoção com que me narrou sua história, entre risos e lágrimas, mexeu muito comigo. E na hora de escrever, os limites entre a personagem e eu mesma ficaram bem tênues.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns textos pedem mais revisões. Outros menos. De um modo geral, reviso muitas vezes. Gosto de deixar o texto “descansando” um pouco antes de revisá-lo. Posso repetir este processo muitas vezes. Sobre mostrar para outras pessoas, sim, eu mostro. Mas não me prendo exageradamente à opinião alheia. Tento filtrar o que é crítica técnica de comentário baseado em gosto pessoal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na adolescência tinha um calo num dos dedos de tanto escrever. Hoje, não abro mão do computador. Acho mais funcional.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias partem das minhas vivências, de tudo aquilo que presencio, assisto, sinto, estudo. Livros, filmes, peças teatrais, relatos de amigos, minhas experiências, principalmente as minhas experiências e tudo aquilo que sinto e aprendo e deduzo com elas são a minha grande matéria-prima. Em minha opinião, não existe um conjunto de regras para se tornar um escritor. Cada um encontra o seu caminho. Cada um se motiva e se inspira de um modo. As pessoas também escrevem por razões diferentes. Para mim, um escritor como qualquer outro artista deve viver intensamente. E uma pessoa pode viver intensamente dentro de sua casa, numa rotina pacata, previsível. O que não pode ser pacato e previsível é seu mundo interior. O nosso mundo interior é vital. A grande função do mundo externo é agir como um detonador do interno.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando mais jovem, acreditava que o ofício de escritor era para pessoas tristes, deprimidas, que não tinham encontrado o amor e por isso sofriam terrivelmente. Depois de anos de análise, depois de ter me tornado uma psicanalista, percebi que ser depressivo ou infeliz não é essencial para se escrever bem. Gente que sabe levar a vida também pode escrever com beleza, com arte, com poesia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Fiquei muito tempo voltada para a escrita acadêmica. Quero recuperar a escritora ficcional, existencial, artista. Quero escrever sobre o cheiro do café, a alegria insuportável diante dos Alpes suíços, como conheci meu namorado atual, como brincar com as palavras é gostoso, o que aprendo diariamente como analista. Quero escrever sobre o que eu vivi e sobre aquilo que eu poderia ter vivido. Quero devassar os mais variados tipos humanos, falar sobre o desejo, o feminino e a autenticidade. O feminino e a autenticidade são as pedras de toque da minha vida como artista, como psicanalista e como mulher. Quero trazer à tona por meio da escrita as muitas facetas que carrego dentro de mim. Sobre um livro que gostaria de ler e que ainda não existe, nunca pensei a respeito. Existem muitos livros importantes que ainda preciso ler.