Sidney Rocha é escritor e editor, autor de O destino das metáforas (Prêmio Jabuti, 2011).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Evito exercícios físicos, exceto a caminhada de duzentos metros até à padaria, às seis da manhã. Tomo café com pão e manteiga, ovo e um pedaço de queijo. Tudo isso custa R$ 9,60. Pago no cartão de débito. Volto. Escrevo até às oito, porque não terei tempo mais tarde. Depois, escrevo para fora, as encomendas, os freelas, artigos, ghost writing, pareceres, edição de textos, livros, qualquer trabalho pago. Esse é meu expediente, como qualquer trabalhador de cuecas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acostumei-me a escrever sob qualquer condição. Detesto essa ideia frívola de ritual para escrever. Quem tem de escrever simplesmente escreve. A esse tipo de gente dá-se a denominação de escritor ou escritora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sempre. A única meta para um escritor é uma página melhor, escrita hoje, em relação àquela escrita ontem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nem sempre escrevo movido por pesquisa. Claro, certos trabalhos requerem alguma, mas não considero esse tempo como ‘tempo de escrita’. No meu romance Fernanflor, (Iluminuras, 2015) por exemplo, fiz uma pesquisa em tudo exagerada, mas somente para a construção do personagem, naquele caso, um pintor. Mas aqueles três anos não considerei de escrita. Estava vendo se me cabia ali, estava buscando conhecer aquele universo para construir minha própria atmosfera. Afinal, você só escreve sobre aquilo que conhece, de preferência. Então minha pesquisa, quando ocorre, é fruto de muita leitura. Sem pretensão, porque não sou pesquisador profissional, não tenho outro método senão a intuição, e sei que depois de escrever o romance esquecerei tudo aquilo, aliás, não me interesso nunca mais pelo assunto. Já a escrita é outra coisa: pesquisar é pesquisar. Escrever é escrever. Não se pode confundir isso. Noutros romances, a pesquisa se tornou algo tão penoso que desisti de tudo. Ou seja, não era tema no qual eu me sentisse à vontade, e não me parecia razoável dedicar alguns anos da vida naquilo. Perdi tempo, mas boa parte dos bons romances se valem de boa dose de perda de tempo. E ócio, que é o melhor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sinto nada dessas coisas. Caso sentisse, um cheque de adiantamento resolveria essas infantilidades.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos?
Um texto pode ser melhorado as mil vezes necessárias. Há um romance meu, Sofia, [Prêmio Osman Lins de Literatura, 1994, Ateliê Editorial, 2004, Iluminuras, 2014], que é republicado a cada dez anos, porque tiro partes dele, acrescento outras, reviso, puxo, encolho…
Não devo satisfações ao escritor que fui. Melhor: assim deixo registro claro do meu caminho até aqui. Do quanto mudei, se mudei; mas faço assim para dessacralizar essa tolice do texto-acabado, do texto-firmado. Quando eu morrer, caso isso venha mesmo a acontecer, quero os leitores dali em diante alterando meus textos. Aliás, cada leitura já é uma alteração, ou altercação: e só é leitura se altera algo. Mas façam isso de verdade, como faço com Dostoiévski, Tolstói, Flaubert e De Assis.
Um texto, portanto, nunca está pronto. É como as pessoas; você ou eu. Nesses anos, minha assinatura mudou na identidade e na habilitação. Semana passada, o cartório me forçou a fazer novo cartão porque ela não era mais a mesma. Caso contrário, teria de imitar a antiga. Para eles eu já não era o mesmo. Então imitei minha assinatura antiga. Ser falsário de mim mesmo me atraiu mais.
Companheiras já me deixaram nel mezzo del cammin… per una selva oscura: “Você já não é mais o mesmo”.
Elas e o tabelião tinham razão e fé. Eu já não era. Ou era somente o imitador, tolamente apostando nalguma permanência. É assim com a literatura, também. Você é outro escritor, ou vários e várias, depois de quarenta anos nisso. Escritores são falsários, seres inconclusos. Se estão vivos, nunca estão prontos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo com o que tenho à mão na hora. Mas, grosso modo, escrevo ao computador. E como lido bem com programas de editoração, muitas vezes escrevo já dentro da página diagramada no InDesign. Gosto da ilusão desse cameçacaba.
Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Esse é um modismo nauseabundo e detestável. De gente escrevendo e mostrando para outros. Há uma grande promiscuidade quanto a isso. No meu curso de escrita criativa inventei um termo para essa sanha e chamo o fenômeno de “pole dance literário”. Mas há variações: o ménage a trois, quatre, cinq, literários… que não cabe falar aqui. Essa prática é a mãe de certo compadrio que se instalou no meio literário. Esse tipo de orgia não me agrada.
Tenho um ou outro amigo e amiga, quase nunca escritores ou escritoras, para quem leio por telefone uns trechos, uma página, duas, porque busco a música na leitura, mas não chego a esse ponto de suruba literária ou somaliteroterapia freireana com o texto. Sou animal solitário, e escrever faz parte dessa vocação solitária, e solidária, ao mesmo tempo, com meus eus mesmos. Se consigo finalizar, o texto segue para meu editor. É ele quem paga, por isso pode fazer considerações, que posso levar em conta ou não. Depois, a depender do grau de sadismo ou masoquismo dele, o livro quara uns anos na sua gaveta e depois me diz o que decidiu. O escritor tem de seduzir o leitor, mas primeiro precisa convencer seu editor de que há um plano de obra ou de mínimo voo ali, se estamos falando em termos sérios. Como é ele o pagante, mostro para ele, que decide em qual gaveta deixar. Eu, nesse intervalo, continuo fazendo meu trabalho e criando argumentos e textos para enganá-lo o máximo que eu possa outra vez.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minha literatura vem da vida. Do dia a dia. Não vem dos livros. A leitura pode ajudar. Ler Dostoiévski, Shakespeare, Machado, Woolf, pode até lhe auxiliar. Pensando melhor, algumas leituras podem até atrapalhar. De todo modo, nenhuma leitura vai lhe salvar. A literatura dos livros não é superior à literatura da vida. A vida é superior em tudo. A literatura deve ficar num plano inferior. Não sendo a detestável vida literária, a vida é soberana. É da vida de verdade que roubo tudo.
Quanto aos hábitos, é tudo o contrário. Não ter hábitos lhe deixa mais livre para experimentar novos pontos de vista velhos. Meu livro O destino das metáforas [Prêmio Jabuti, 2011, Iluminuras] nasceu da quebra dos hábitos, de trabalho temporário escrevendo sob pressão para TV e publicidade, metido com todo tipo de estúpidos que você possa imaginar. Eu não escrevia nada tão sólido há anos, antes de me meter naquele hospício, sonhando que um mundo disciplinar tudo me daria. A quebra dos hábitos melhora o escritor. A transgressão dos rituais tende a melhorá-lo, porque o escritor é o contrário do monge.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
“Não perca tempo escrevendo, garoto”, eu diria àquele menino de doze anos que começou com isso. “Não vai sair nada desse poço enquanto você não encarar a vida e sua gravidade, à vera. Você não vai se tornar escritor enquanto não for uma pessoa de verdade. Viva, antes.” Meu lento processo de me tornar escritor teve a ver com isso: em me transformar numa pessoa de verdade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pera lá. Não sou tão romântico assim. Me concentro só em livros que eu possa escrever, e não penso no romance seguinte, no livro seguinte. Se eu fosse operário de fábrica, seria demitido por conta dessa “produtividade”. Não faltam ideias, mas o romance não é as ideias nele, a narrativa tem a ver com técnicas, como sempre digo: onde a emoção seja a técnica. Pensar em escrever mirando nessa palavra “projeto” me faz desistir imediatamente. Não faço projetos. Sou escritor. E sou lento e não tenho pressa ao escrever. Então fico concentrado o tempo todo no romance que escrevo nessa hora. O romance in progress não lhe deixa pensar noutras coisas, creia. No sexo, você pode estar com alguém e pensar noutro alguém, isso é bem fácil e mais frequente do que muita gente admite, mas com o romance isso é impossível. Escrever um romance é a ideia mais aproximada do anti-romance, ou da ideia romântica de escrever, que a maioria das pessoas, inclusive escritores, têm.
Não, não se trata dessas bobagens de obsessão, desse mundo sombrio, isso também é uma grande tolice: trata-se de uma constante alegria. Não consigo escrever se não movido pela grande alegria do mundo. E no meu caso o resultado são livros os mais terríveis, porque meu universo é o da linguagem, da busca da beleza, ou da experiência estética, do mundo sensível e sensorial, fé e razão, ao mesmo tempo. Universo que só mesmo o escritor pode ver e sentir. E suportar.