Sergio Zlotnic é doutor em psicanálise, dramaturgo e pesquisador no campo das artes.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Escrevo sempre pela manhã – é o período em que eu rendo. Acordo cedo, faço bicicleta (uns 15 km). Tomo café pretíssimo. Fumo um cigarro. Leio jornal. Daí, escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã. Nem sempre foi assim. Era notívago. Hoje em dia, à noite, não presto para nada. Muito menos para trabalho criativo. O xarope lispectorante deixa de fazer efeito. Sirvo no máximo para atividades mecânicas. Digitar um texto já pronto. Acertar bibliografia (se o trabalho for acadêmico). Coisas que não dependem de criatividade… Apesar disso, de me sentir uma pilha vencida, uma mexerica chupada, gosto de ler ficção à noite, na cama, antes de dormir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nada! Tenho outras atividades com as quais me ocupo. A escrita tem vindo às vezes por encomenda (não é mal que seja assim). Escrever todo dia, com disciplina, é o máximo. Exigiria talvez que eu fosse monge. Não fizesse mais nada além de escrever. É um ideal. E seria ficção. Escrevo outras coisas: reflexões e crônicas; artigos; críticas… Houve um período em que produzia um texto por mês – ganhava para isso. Foram mais de cinquenta colunas num site.
Não tenho essa regularidade agora. Sinto que gastei um combustível que estava pronto para ser usado – há anos, acumulado. Como se eu fosse desovando os trabalhos acadêmicos (mestrado, doutorado, pós-doutorado), deixando que esses saberes se derramassem sobre o papel. Algumas vezes, eles se travestiam de ficção.
Se algum tema me captura e causa inquietação, esse desconforto pode se transformar num texto. Se é um tema social, pode ser artigo, ou um comentário. Se é um estranhamento muito singular, pode resultar numa crônica, ou num conto (ou microconto). Ou num híbrido dos dois.
Quando digo que gastei o combustível, não acho que a fonte secou. É que ainda me surpreendo com a exuberância da produção dos últimos oito anos. De teoria, ficção e no teatro. Provavelmente eu estava precisando me expressar – mas não sabia. São cinco peças, por exemplo. Eu as escrevi em menos de duas semanas – cada uma delas. Não são ruins – e mesmo quem não gostar, acaba sublinhando algum trecho ou alguma frase feliz, ou impressionante. Ou engraçada. Elas deviam estar na minha garganta – prontas para explodir.
Essa urgência – que tem talvez a ver com débito (meu, comigo!) – passou. Continuo escrevendo – mas easy rider! Sem destino. Sem plano. Depende do que eu encontro. Da casualidade. Depende também da minha agenda (com isto, devo perder alguns achados e oportunidades).
Voltando. Não! Não tenho meta! O ideal talvez fosse viver somente para isso. Porém, as outras atividades às quais me dedico são desafiadoras, prazerosas. Muitas vezes, até, fonte de inspiração para a escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em trabalho acadêmico, sempre acabo atravessando algum impasse. Em algum momento, as coisas não rendem. Vou lavar roupa. Fazer coisas que não tenho que fazer. Parecem sabotagens. Outros dias são iluminados. As frases fluem. Conexões. Ideias. Não acho que dá para controlar. Algumas vezes acabei concluindo que o dia estéril é perdido só na aparência. Como se ali alguma coisa estivesse sendo preparada – se consideramos que a obra é maior que o autor. Que outras forças são convocadas. Que dormir (e sonhar) abre espaço e facilita.
Respondendo objetivamente: nos trabalhos acadêmicos, sempre tinha leitura e fichamento de textos e livros. Com o número das páginas de cada assunto – para não me embaralhar depois, e saber quando tinha que citar o autor de uma ideia. E em que página ela estava.
Pois, às vezes, ficava tão misturado o autor da ideia comigo – não por má-fé – que eu poderia pensar que aquele pensamento era meu.
Depois de muita leitura de textos e livros, e de fichamentos deles todos, escrevia à mão, capítulos ou parágrafos que resultariam nos capítulos.
As leituras provocavam muitas conexões – que eu também registrava. Essas articulações eram minha contribuição à pesquisa. Coisa preciosa.
Eu achava que um texto limpo não deveria ter muitas citações. Por isso, buscava dizer o que determinado autor tinha dito, usando minha palavra e minha compreensão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O medo de não corresponder às expectativas precisa ser dissolvido. Ele é muito grave. Esteriliza o campo. É narcísico. Onipotente. Precisa ser retirado, como um quisto sebáceo.
Eu tenho data e hora em que isso ocorreu. A noção precisa de que ninguém está preocupado com os outros. Que esquecem de você – graças aos deuses – num estalar de dedos. Que o que a gente faz não tem importância para ninguém.
Se escrevemos alguma coisa útil, que toca – e vem feedback -, ótimo. Senão, nada a fazer. A vergonha por não termos mantido a qualidade é perda de tempo.
Com isto não quero dizer que não temos de nos esforçar – tentar uma ultrapassagem…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mil vezes. Borges é que dizia que o único jeito de colocar um ponto final é publicar? Senão, nunca termina.
Mostrar para alguém é uma boa medida – sai-se da presunção, do fascínio pelo próprio vômito. Não mostro sempre para alguém, mas deveria. E tenho alguns amigos e amigas muito bons em português. Pois, quando escrevo, sempre trombo em algumas dúvidas de concordâncias, de palavras e de acentuações.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até há pouco tempo, escrevia à mão. Depois, digitava. Hoje muitas vezes começo direto no computador. Porém, tenho para mim que a tela do computador abaixa o QI. Melhor tomar nota à mão. Depois, digitar…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Escrevo pela manhã, como disse. Estou entorpecido ainda pelo processo primário. Os sonhos da noite ainda respingados na minha cara. Tenho fiapos de ideias orbitando minha cabeça.
Quando leio jornal, minha compreensão é peculiar. Quase infantil. Troco palavras. Leio errado. Faço correções – de um modo débil.
Esses miasmas da noite se conectam com fragmentos de notícias que leio. E essas sombras que dançam se conectam com alguma ideia da véspera.
Ver um texto ir se construindo é milagre. A força se fazendo figura. Como assistir ao pôr do sol.
Depois que o texto se arma – que é a parte mais difícil -, o resto é só trabalho manual [e então é possível fazer a qualquer hora – não tem mais de ser pela manhã]. Ir encontrando a melhor forma – de alguma coisa que já encontrou a sua forma.
Não, não tenho hábitos para me manter criativo. Não tenho quantidade de escritos a serem produzidos por dia. Essas receitas quantitativas, ou de comportamento, em geral, não acredito nelas. Parecem para mim receitas de como conseguir um amor. Tipo: jamais vá para cama no primeiro encontro. Ou: não telefone no dia seguinte. Ou: aguarde cinco dias para mandar mensagem…
Entretanto, se volto à segunda parte da pergunta, talvez eu diga: fale outra língua com seu amigo estrangeiro. Leia livros. Assista peças. Ouça música. Vá ao campo. Observe as galinhas. Abrace uma árvore. Olhe para o céu. Entre no mar. Jogue xadrez. Beije uma boca… Embora eu não faça isso! (fique claro: beijar, eu beijo, mas não como procedimento controlado para despertar a criatividade, a inspiração e a intuição – meu beijo não tem intenção!)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Dizem que meus trabalhos acadêmicos (sem demérito – sem desqualificar o valor deles) são excuses para escrever ficção. Eles estão todos, de fato, na fronteira entre o conceitual e a literatura. Há um fantasiar nas operações teóricas equivalente ao da ficção. Conceitos são criações vindas do mesmo poço. A produção teórica atinge o clímax da ficção na psicanálise. Freud percebeu isso – embora não desejasse que a coisa se desse assim. Ele ganhou o prêmio Goethe de literatura. Não deveria ter ganhado na categoria ciência?! A ciência e a ficção, na psicanálise, estão coladas. Distintas, mas vizinhas. Primas irmãs. Eu teria querido saber disso antes, entretanto nada a lamentar. Ser feliz é não querer outra vida que não aquela que a gente tem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Baleiazzzul é ficção. É romance. Foi escrito durante o processo de doença e morte de meu pai, falecido em 2004. Foi revisto e reescrito diversas vezes, até ser publicado nove anos mais tarde, em 2013, pela Editora Hedra.
O livro é homenagem a esse Pai, que era um voraz leitor de literatura. Apesar de ser etapa de um processo de luto, a história não tem coloração afetiva melancólica – ao contrário, é lúdico, brincadeira com a língua e com as palavras, e joga especialmente com as noções de ciência e de ficção. O que tem a ver aqui com a questão anterior.
Não consigo imaginar como foi que eu tive o tempo necessário para escrevê-lo. Literatura demanda tempo. Vejo às vezes que algum escritor é enviado por um mês a um destino remoto, com tudo pago, para escrever o que for possível. Gostaria de ganhar uma dessas – mas por um ano. Ter todo tempo para testar, inventar, brincar. Assistir a essa beleza que é isso que eu nomeei aqui como a força ganhando forma.
Hoje em dia, é um prazer muito grande acompanhar os processos de criação no teatro; e conferir o ator encontrando canal de comunicação com o personagem. Isso é lindo de se ver.
É necessário, também, para escrever, ter assunto. Há exercícios estilísticos e formais, em que algum escritor exibe sua boa escrita, sem ter estória para contar. Sou contra!
Aqui, comigo, considero (ao lado ou junto com o luto) os amores grandes fontes de estória – não que o livro tenha que contar a estória desses amores. Porém, com os amores, a produção de besteira é robusta. São muitas as graças gratuitas inventadas. A bobagem genial é sagrada.
Com isto, sem amor, talvez eu não conseguisse escrever muita coisa num destino remoto, num retiro de um ano. Penso que há uma conjunção de fatores e circunstâncias para que uma estória que valha a pena seja criada.
Enfim, gostaria que houvesse uma conjunção de fatores e circunstâncias para que eu pudesse escrever outro romance. E que esses fatores não incluíssem lutos. Só graças! Que eu tivesse aquele tempo largo que tive na época de Baleiazzzul…