Sérgio Tavares é crítico literário e escritor, autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que meu trabalho com literatura se divide em duas frentes: a crítica literária e a produção ficcional. À parte os contratempos de cunho particular e os prazos de entrega, de segunda a sexta, leio e resenho livros; e, nos fins de semana, dedico-me a escrever contos ou algum romance em curso. Dito isso, não tenho rotina matinal de escrita. Do momento em que acordo até às dez da noite – mais ou menos -, estou totalmente concentrado nas atividades domésticas (casa, comida, filha, escola, dever de casa, brincar de boneca, assistir o Gloob…), no que poderia ser chamado de rotina de pai. Só depois que a minha filha dorme, sento-me para escrever. Mas há alguns truques. Sempre que há uma brecha (um arroz que cozinha, por exemplo) ou quando minha esposa assume uma tarefa, eu saco um livro e leio. Isso é fundamental para meu trabalho de crítico, pois leio muito rápido e, ao fim do dia, quando me sento para produzir, geralmente já finalizei a leitura. Daí só focar na escrita da resenha.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre fui notívago – desde criança. Varava as madrugadas assistindo os filmes do Corujão ou lendo. De modo que me acostumei a dormir muito pouco – de quatro a cinco horas, no máximo, por dia. Portanto, trabalho melhor à noite. Começo um pouco depois das 22h e vou até 4h, 4h30min da madrugada. Não tenho ritual, salvo dar uma paradinha para comer uns biscoitos (pensando bem, a Piraquê deveria me patrocinar). O que gosto de fazer é nunca escrever de imediato. Sempre reservo uns dez minutos iniciais para ler; inclusive quando vou produzir ficção. Uma das coisas que aprendi é que há alguém que já escreveu algo melhor do que você poderá escrever. Daí leio para clarear os pensamentos ou mesmo traçar um norte para a intenção do texto. Fica uma dica, aliás: a leitura é uma excelente maneira de dar fim a um bloqueio criativo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Avisando, de antemão, que isso vai soar muito piegas, embora não seja: escrever e ler, para mim, deixou de ser uma atividade e se tornou algo integrado à minha natureza. Eu não passo um dia, independente de onde estou ou como estou, sem ler e/ou escrever. Faz parte da minha vida, não mais da minha rotina. Pode ser meia hora ou seis horas, estou escrevendo; e, na maioria das vezes, sem estar, de fato, teclando em frente ao computador. Como trabalho já um tempinho com produção de resenhas, desenvolvi uma técnica (ou habilidade, que seja) de ir construindo mentalmente a resenha à medida que vou avançando na leitura. Daí, enquanto estou fazendo qualquer outra coisa, essa porção da minha mente vai “cozinhando” o texto, de modo que, ao me sentar, basta dar organização e sentido às frases. Com isso, tenho uma produção muito farta que, mesmo de maneira involuntária, acaba por me instigar a criar metas. A ideal, pensando no meu site, seria publicar de quatro a cinco resenhas por semana. Em contrapartida, não tenho pressa alguma em relação aos meus textos de ficção. O melhor destino para qualquer coisa que você acabou de escrever é a gaveta. Imprima (isso é importante, se possível) e deixe descansar. Não tenho dúvida de que o senso crítico estará mais apurado quando se retornar ao texto, influenciando naturalmente na qualidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Novamente, há dois momentos distintos. Em relação à crítica literária, como falei há pouco, eu me sento para escrevê-la com um plano pré-definido de como ordenar as frases; com exceção dos livros extensos. Nestes casos, recorro a um dos meus cadernos para anotar ideias, trechos, direções (em tempo, nunca rabisco ou marco o livro; considero o ato uma heresia), que funcionarão como uma espécie de roteiro para a resenha. Por outro lado, o processo de produção ficcional é bem lento e determinado pela paciência. Meu próximo livro, um romance ainda inédito, levou dois anos para ficar pronto, mais seis meses da primeira à última versão. Tem um fundo histórico muito emblemático, diante do qual transitam três personagens do início dos anos 80 até a chegada do novo milênio. Para este livro, fiz uma pesquisa muito intensa, li bastante e enchi um caderno inteiro com anotações. O tratamento seguinte seria justamente converter essa matéria da realidade em matéria ficcional, sem pecar no didatismo ou me afastar tanto dos fatos consumados que a história real soasse como um pastiche. Levei um tempo para me dar conta de que não deveria pender nem para um lado nem para o outro, e sim construir um híbrido. Toda ação de escrita, por mais que persiga a verossimilhança, é inevitavelmente uma ação de interpretação. De modo que se permite manipular os acontecimentos reais a serviço da ficção, pois tudo que se cria é um reflexo, um universo transplantado àquele que foi de fato vivido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho travas de escrita. Tentar ser melhor do que realmente você é não passa de um exercício extremamente desgastante e inútil. Os melhores autores são aqueles que entendem a mediocridade e se utilizam de recursos e artifícios para iluminar seus textos dentro desse padrão. É uma estupidez considerar alguém brilhante, sem racionalizar os macetes narrativos, os truques de linguagem, a construção da forma. Não há nada de mágico na escrita; entenda: publicar um livro não torna ninguém superior. Já a procrastinação é realmente um problema. Como minha produção crítica é, em grande parte, para a internet, tenho de acompanhar as redes sociais, os sites, os blogs etc; e se não tiver comprometimento isso rouba muito do tempo. Sou também aficionado em documentários sobre crimes e investigação que, se der corda, engato um atrás do outro. Como disse, é preciso ter comprometimento. E, tanto na minha página quanto num texto encomendado, escrevo com o mesmo cuidado, a mesma atenção. Penso que isso é fundamental para se criar uma segurança, uma espécie de padrão de qualidade; o que acaba influenciando sobre qualquer temor de não conseguir cumprir um prazo. No meu caso, ainda tenho o benefício de ser jornalista e ter trabalhado sempre com deadlines. Outra coisa boa que a profissão proporciona é a capacidade de editar um texto durante o processo de escrita. Assim fica mais fácil, por exemplo, atingir um determinado número de caracteres, sem precisar ficar cortando palavras ou frases depois.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas, mas nunca o suficiente. Um texto mediano, com uma revisão perfeita, é muito melhor que um texto estupendo com um erro de ortografia. Tento me policiar muito quanto a isso. Leio, deixo descansar, releio no dia seguinte, imprimo e releio, antes de publicar ou enviar ao contratante. Tenho um problema nos olhos, fiz dois transplantes e, às vezes, papo mosca; o que me deixa chateado e triste. Creio que, dentre as etapas da construção de um livro, a revisão é a mais importante. Outra coisa muito sadia para um original (romance, conto etc.) é ter leitores prévios; os chamados leitores-beta. O autor muitas vezes não percebe, mas quanto mais ele lê o próprio original, mais comprometida fica a sua leitura. Por isso, é fundamental ter um olhar de fora; se possível, olhares. São esses primeiros leitores que vão identificar deslizes, realinhar cursos e corrigir detalhes que seriam problemas decisivos na escolha de um editor ou de um júri de concurso. Agora, nem precisa dizer que o autor deve estar aberto às sugestões críticas. Um autor que se considera autossuficiente só vai roubar o tempo e a paciência dos outros.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Olha, eu sou do tempo da máquina de escrever. Tive duas. Mas não tenho saudade. A praticidade que o computador trouxe é incomparável. Não escrevo à mão, até porque eu mesmo não entenderia nada; minha letra não é das melhores. Fora da escrita, tenho me aventurado nos livros digitais. Já li alguns, embora meus preferidos sejam os livros físicos. E não entro nesse papo vazio de que um veio para substituir o outro; a única coisa que substitui o livro é o desinteresse pela leitura. Mas tomo liberdade, aqui, para chamar atenção também para os espaços de produção literária que a tecnologia possibilitou. Na posição de editor de um site de resenhas, percebo esses espaços como instrumentos de democratização da crítica literária, viva e capaz de ser produzida com qualidade fora dos ambientes acadêmicos e dos grandes veículos de imprensa. Tem muita gente nova escrevendo bem, interessada em resenhar e, sobretudo, em construir um debate sobre a produção contemporânea. Pode parecer utópico, mas acredito que a difusão da análise crítica é um mecanismo para que a literatura desperte mais interesse; no mínimo, curiosidade. Quanto mais leituras um livro angariar, mais essa obra será decifrada a ponto de engendrar um circuito de pessoas tocadas por essa história, que facilmente pode conduzir a outras. E com a tecnologia, as redes sociais, esse processo é muito mais dinâmico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A leitura é onde tudo nasce. Acho muito improvável que exista um escritor que não seja um bom leitor. É através da leitura ou a partir dela que alguém decide que vai contar suas próprias histórias. De modo que todo escritor que queira se manter criativo nunca deve escrever mais do que ler. E vale de tudo: livro, jornal, quadrinhos, bula… nunca se sabe de onde virá uma boa ideia. Mesmo nos casos em que a fonte de inspiração está na memória individual ou na coletiva, o caminho para se reconstituir o fato no espaço ficcional passa necessariamente por um canal formada pela soma de referências adquiridas na leitura. O meu primeiro livro, por exemplo, foi inspirado em vivências no jornalismo. Contudo a forma com que transportei essas histórias para a ficção se constituiu a partir da escrita dos autores que eu trago/trazia como referência. Um bom livro não necessariamente nasce de uma ideia extraordinária, mas da maneira com que se desenvolve essa ideia. E, sem leitura, o autor não dispõe das ferramentas adequadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros livros?
Um padeiro que faz sua primeira massa hoje, certamente fará uma massa melhor no futuro, com o exercício da prática. Escrever é igual. Hoje me sinto mais preparado, com um texto mais seguro e apurado, especialmente porque entendi isso. Escrita é prática, escrever bem é reescrever incansavelmente; é fazer a mesma massa de pão até não precisar mais se recordar dos ingredientes e das medidas. Escrever não é dom, é trabalho duro. Dedicação e, sobretudo, calma, paciência. Se eu pudesse voltar no tempo e dar um conselho ao Sérgio Tavares de 2010, ano em que saiu meu primeiro livro, eu sussurraria em seu ouvido aqueles versos do Chico: “Não se afobe, não/ Que nada é para já”. Minha estreia na literatura foi num susto. De uma hora para outra, eu tinha vencido o principal prêmio para autores estreantes do país e meu original seria publicado por uma das grandes editoras brasileiras. Não estava preparado – será que alguém está? Queria publicar logo o próximo, aproveitar a oportunidade. E não me dei conta de que o livro que foi premiado e não o autor. A carreira literária, salvo algumas raras exceções, é feita de pequenos acontecimentos e longas esperas. De silêncio. Algumas vezes, de decepção. Não é fácil e não será como você idealizou, de modo que a melhor forma de reagir ao impulso é resistir. Agora, se não for possível, dê o seu melhor. Leia bastante, dedique-se a aperfeiçoar o texto, estude, leia mais, escreva e reescreva, mostre a alguém que você considera preparado, leia mais e descubra seu propósito, afinal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu próximo projeto literário é uma trilogia, na qual os dois primeiros títulos seguem tramas distintas, que se encontrarão no terceiro livro. É um projeto que venho trabalhando faz um tempinho, rascunhando um plano de execução e, caso meu romance inédito chegue ao prelo, toco adiante. Sigo escrevendo minhas resenhas, ainda que não consiga vislumbrar aonde, de fato, isso vai me levar. Às vezes, ler e escrever, basta; às vezes, não. Gosto de ler os autores do meu tempo, viver a experiência de estar rodeado de pessoas que se dedicam a escrever e a me oferecer o ingresso a esses universos recém-criados. São eles que lerei amanhã. Sinto-me motivado por isso. A possibilidade de abrir um livro novo e ser bem surpreendido ou decepcionado por aquela história. Assim como a vida, a literatura é feita de boas surpresas e decepções. E isso não é mau, no fim das contas.