Sérgio Ricardo da Mata é professor adjunto de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal de Ouro Preto.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Após fazer o café (esse sim um ritual sagrado), ligo o computador para responder e-mails e dar uma passada de olhos no noticiário. Somente depois, caso tenha mais tempo disponível, vem o confronto com a tela em branco. Não chego a sofrer com o vazio da tela; acho excitante a experiência de fazer brotar alguma coisa nela. Leciono na Universidade Federal de Ouro Preto, onde tenho de dar aulas pela manhã num dos dois semestres letivos do ano. Gosto de ir de bicicleta para o trabalho, o que ainda é possível numa cidade pequena como Mariana. Fundamental é pedalar com algo interessante nos fones de ouvido, como as bandas Whomadewho, Get Well Soon, Travis, Low, Cigarettes after Sex ou Spain. É uma boa forma de começar um dia de trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor à noite. O silêncio ajuda muito na concentração. Quando se é casado e se tem filhas jovens, é raro que aproveitemos o dia como gostaríamos. Mas depois que todo mundo foi para a cama, então somos só eu e o teclado.
“Ritual”, definitivamente, não é algo que eu tenha para escrever. Devo muito ao período em que trabalhei como repórter e colunista de jornal em minha cidade natal, Sete Lagoas, no início dos anos 1990. Conciliava o jornalismo com o cargo de professor no ensino médio. A redação foi minha verdadeira escola, até porque o jornalista está sempre em luta contra o relógio. Ele não pode se dar aos luxos do historiador ou do escritor profissional. A edição fecha a tal hora – just do it. Jornalistas geralmente escrevem melhor que os acadêmicos por duas razões: praticam diariamente e estão habituados a produzir sob condições de temperatura e pressão que nunca são as ideais. Há ainda o confronto ininterrupto com a realidade, o que previne o jornalista contra a tradicional inclinação do intelectual pelas doutrinas esotéricas, pela linguagem cifrada, pela utopia. Nélson Rodrigues disse que o trabalho como repórter policial pode transformar qualquer um num Dostoievski. E de fato há aí uma boa dose de verdade, embora a qualidade média do que se lê hoje em nosso país sugira que vivemos em tempos de decadência da linguagem (algo que George Steiner diagnosticou já nos início dos anos 1960). Nas universidades o quadro não é diferente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se eu vivesse exclusivamente para a escrita talvez pudesse me organizar melhor. Mas as obrigações profissionais, boa parte delas inteiramente destituída de sentido, devoram o melhor do nosso tempo. Às vezes resta pouco tempo inclusive para prepararmos boas aulas, o que julgo ser o dever primeiro de um professor. O autor tem de se contentar com os interlúdios de relativa paz em meio a esse caos de obrigações burocráticas e reuniões: recessos, feriados, finais de semana. O sistema universitário brasileiro está “organizado” de tal forma que chega a ser um milagre que consigamos escrever e publicar alguma coisa decente. O que geralmente faço é empregar toda chance disponível para exercitar as possibilidades da escrita. Aprendi isso no jornal, quando reescrevia – às vezes tarde da noite – notas com as ocorrências policiais que chegavam da Polícia Militar. Era uma diversão infinita transformar um texto padrão, de aproximadamente 100 palavras, em algo excitante ou cômico. Era uma espécie de tradução, mas também um exercício de criação literária. Percebi que é preciso explorar as possibilidades de escrita em quaisquer ocasiões, até mesmo na hora de responder um simples e-mail.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em meu campo de pesquisa, que é o da história intelectual e das ideias, não consigo começar a escrever sem reunir uma quantidade suficiente de anotações. Nunca menos de duas semanas são empenhados aí. Anotações em folhas de papel ou nas margens das páginas de meus livros, bilhetes colados nessa parede que tenho diante de mim, arquivos gravados no computador… de tudo um pouco. Um processo relativamente caótico, e que não se interrompe depois que o texto foi iniciado. O mais difícil são em geral as duas primeiras páginas e, sobretudo, o título. Sem um título, ainda que sujeito a revisão, não saio do lugar. Ele deve ser a inscrição sintética e, sempre que possível, atraente, de uma ideia. Passado este momento inicial, a coisa flui. A sensação de que o texto “engrenou” é única.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não é raro que eu termine de escrever um texto para um congresso ou palestra, num quarto de hotel, de madrugada. Não por travas ou por procrastinação, mas por uma imposição da realidade em que vivemos. No Brasil, a responsabilidade costuma ser “premiada” com a sobrecarga de atribuições e tarefas.
As expectativas de um público é o pão nosso de cada dia de um autor; quem não aprender a lidar com isso deveria mudar de ramo. Na condição de leitores, seremos menos exigentes?
É cada vez mais difícil, diante da torrente de narrativas com que somos bombardeados hoje em dia, encontrar bons textos para se ler. Talvez isso leve um embotamento da leitura, pois o paladar tende a se adaptar gradativamente à qualidade do repasto. Basta ver aquelas pessoas que, equivocadamente, produzem pequenos tratados no WhatsApp sem se dar conta de nesse veículo a brevidade é tudo, e que somente a concisão perfeita de um poema seria capaz de oferecer uma alternativa à sede de humor fácil, pathos emotivo e grotesco que ali impera. Mas há o reverso da moeda. Precisamente porque em nosso país o nível da expressão escrita desceu a níveis tão baixos, em que os jornais se mantém à custa de colunistas, mais que de jornalistas, o bom texto está condenado a se destacar.
Infelizmente, os que escrevem têm pressa, querem que os resultados cheguem cedo demais. Quando se é jovem, cai-se facilmente nessa armadilha. No universo da escrita, a prática é tudo ou quase tudo. Goethe terminou o Fausto em idade avançada, depois de mais de três décadas de trabalho. É preciso ser gigante como Dostoievski para se escrever um livro como O jogador em vinte e seis dias.
Quem ama a escrita jamais se livrará da ansiedade, seja quando produz um simples artigo de jornal, seja quando se dedica a um trabalho de fôlego. No que me diz respeito, a ansiedade aumenta na relação inversa das proporções do texto. Quando algo não funciona bem no texto curto, é muito mais facilmente percebido. Há pouca margem para o erro. Talvez seja esta a razão pela qual sempre preferi as novelas de Guimarães Rosa ao seu ‘opus magnum’ Grande Sertão. Me agrada a fórmula “less is more”, e penso que há algo de anacrônico em livros demasiado volumosos no campo das ciências humanas. Eis porque admiro tremendamente a concisão genial de autores como Odo Marquard e Albert Camus. O texto mais extenso me parece preservar seus plenos direitos apenas no gênero romance. Tolstoi continuará a ser lido, tanto como Karl Ove Knausgard. Mas quem hoje, a não ser o filósofo profissional, lê a Fenomenologia do espírito ou os três volumes d’O Capital?
Não digo que o fascínio da concisão torne as coisas fáceis para o historiador, cujo texto persegue, bem ou mal, a descrição confiável, fundamentada na experiência, ampla, das coisas do passado. Como quer que seja, um ideal modera e disciplina o outro: jamais se escreverá uma história tão concisa a ponto de reduzir o vivido a uma mera fórmula. Por outro lado, o desejo de produzir uma boa narrativa histórica não se deve nutrir com a ilusão da completude. Sem um senso mínimo de proporção, uma hierarquia das relevâncias e uma adequada economia das formas, o historiador arrisca perder-se no episódico e no desimportante, com o que não se beneficiam nem o público leitor, nem a ciência histórica.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O texto nunca está pronto, mesmo depois de publicado. É uma obsessão saudável relê-lo tantas vezes quanto possível. Tenho uma relação difícil com revisores de revistas ou editoras, pois em geral são pessoas autoritárias e muito ciosas de sua autoridade. Raramente consultam o autor se ele está de acordo com alguma mudança.
A pessoa a quem costumo mostrar meus textos inéditos é minha esposa. Mas como ela tem seus próprios afazeres, tenho evitado recorrer a ela. A colegas de universidade eu vez por outra peço uma opinião, mas é algo que não deixa de ser constrangedor. Não pelo medo da crítica, mas porque é raro que as pessoas (pelo menos aquelas cuja opinião temos em alta conta) disponham de tempo sobrando. No geral, e como em tudo na vida, é apenas consigo mesmo que se pode contar. Com a experiência, chega-se a um ponto em que é possível ler o próprio texto com outros olhos, como se pertencesse a um terceiro. Numa época tão fortemente marcada pela tendência à subjetivação (e à heteronomia), as pessoas não costumam acreditar que tal coisa seja possível. Mas o autor que não é capaz de produzir uma espécie de desdobramento, um estranhamento momentâneo em relação ao que ele próprio escreve, não se livrará da necessidade de um juízo prévio, alheio, sobre seus escritos. Tal como o estudante de pós-graduação que nunca está seguro de que sua tese está suficientemente boa sem o nihil obstat do orientador. O verdadeiro autor só pode nascer com a conquista de autoconsciência e desse tipo radical de autonomia. O que Kant disse em 1783 continua valendo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para quem chegou a usar as saudosas máquinas de escrever Olivetti, o advento do processador de texto significou uma revolução semelhante à descoberta do fogo. Não me considero um freak, e procuro me manter à distância do consumismo tecnológico. Mas quem afirma que o computador pessoal não facilitou a nossa vida simplesmente não está sendo sincero. Basta pensar na figura de Agostinho, redigindo a Cidade de Deus em pilhas de pergaminhos, noites adentro, à luz de velas, para se ter em conta as dificuldades que nossos antepassados enfrentaram.
Quanto à forma como nasce um texto, eu combino as duas coisas: arquivos com citações e ideias no computador, mas também inúmeras anotações feitas à mão. Niklas Luhmann disse certa vez que gastava mais tempo organizando suas notas de leitura do que escrevendo os textos a que elas se destinavam. Acho que é um pouco meu caso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Nunca se sabe o momento em que se tem um insight – pode ser na cama, pouco antes de dormir; ou, como diz Max Weber, quando se passeia calmamente por uma alameda. É um imponderável. Como o próprio Weber observa, porém, “a ideia não substitui o trabalho”. Este aumenta as chances daquela acontecer. Paixão pelo que se faz e um mínimo de disciplina intelectual estão na raiz de tudo. Todos somos criativos, temos diferentes talentos. Mas a criatividade que não vem acompanhada de esforço, de diligência e de força de vontade produz apenas fumaça. É por isso que em nossos meios intelectuais a crítica de corredor é onipresente: ela não demanda mais do que mordacidade e um olhar afiado para o escorregão alheio. Some-se a isso a cultura de esquerda ainda tão presente entre nós, a qual rejeita o trabalho por ver nele, essencialmente, um processo de espoliação. Visto por meio dessa lente coletiva e marxistizante, e nunca pela do indivíduo e dos valores, a compreensão do trabalho predominante ainda segue o mesmo diapasão do livro de Gênesis. Como sabemos, na Europa moderna o trabalho foi eticizado, algo que o Oriente produziu mais tarde a partir de outras fontes culturais. Mas não aqui.
E como a melhor escrita é e continuará a ser fruto do indivíduo, os únicos “gênios” que produzimos são os de corredor, cujo traço comum é o dissolver-se no coletivo e o orientar-se por um princípio mimético rudimentar. Homens da multidão, incapazes de criar algo novo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Em minha tese de doutorado eu, sinceramente, mudaria bem pouca coisa. Ela foi escrita em condições excepcionais, que jamais se repetirão para mim. Morávamos em Colônia, numa época em que nossa única preocupação era estudar, estudar e estudar. Longerich, nosso bairro, ficava afastado do centro e era a expressão máxima do sossego. Dei-me ao luxo de entregar o texto com bastante antecedência e assim assistir todos os jogos da Copa do Mundo de 2002. Continuo a gostar do texto, que mereceu um summa cum laude da banca examinadora.
Sobre a mudanças na minha relação com a escrita. Sou fascinado pelo que diz Ranke numa carta a Bismarck: “sempre achei que o historiador precisa ser velho”. Ele tinha então 82 anos. É possível que na poesia, como na matemática, as coisas se passem diferentemente. Ao passo que na história e na sociologia o tempo faz toda a diferença. Não creio que haja clássicos que tenham sido escritos por alguém muito jovem – as exceções que confirmem a regra. Com a idade se ganha clareza face às possibilidades e limites do próprio estilo, que, aliás, é como uma sombra da qual jamais nos livramos. Acredito que me tornei mais econômico, e assumi o gosto pelos apostos, pelos travessões e reticências (durante muito tempo cheguei a pensar que deveria evitá-los). Se o estilo é o homem, e é, envelhecer significa não apenas conhecer melhor as coisas do mundo, mas também a si mesmo, num duplo movimento. Pode-se então começar a escrever coisas realmente relevantes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A ideia que mais tenazmente me persegue é o de uma semi-ficção sobre as famosas ‘jornées’ dominicais que Max Weber promovia no início do século passado em Heidelberg, na bela casa ainda hoje de pé às margens do rio Neckar. Gostaria de imaginar os diálogos, as tensões e mesmo as eventuais brigas, entre, de um lado, jovens intelectuais como Friedrich Gundolf, Ernst Bloch, Emil Lask, Helmuth Plessner e Georgy Lukács, e, de outro, nomes consagrados como Ernst Troeltsch, Heinrich Rickert e o próprio Weber. Um projeto desses exigiria uma minuciosa pesquisa prévia, e talvez me arrisque a levá-lo a cabo um dia.
Sobre a segunda questão, só posso dizer que tudo o que ainda pretendo ler já foi escrito há bastante tempo. As grandes novidades, eu sempre as encontro detrás de nós e não à nossa volta.