Sérgio Medeiros é poeta, ensaísta e tradutor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo porque durmo cedo. Às cinco horas já estou de pé, ou seja, sentado no meu escritório, tomando mate e lendo filosofia, sobretudo a obra de Wittgenstein. Às vezes leio junto com o autor das Investigações Filosóficas algum pensador contemporâneo do meu agrado, como Jacques Bouveresse e Jean-Luc Nancy, para citar dois franceses (o primeiro escreve sobre ciência, ética e estética, e o segundo sobre contatos tumultuosos, entre outras coisas). Mas o predileto mesmo é Wittgenstein, de quem já visitei até a tumba em Camdridge, Inglaterra. Ele disse que o espanto diante do mundo é “nonsense”, pois não posso imaginar que o mundo não existe. Então devo (é o meu “dever” como poeta), segundo entendo, familiarizar-me com os outros (de todos os reinos) e dialogar cara a cara com eles, com as plantas, por exemplo. Por isso escrevi O sexo vegetal, lançado em 2009 (saiu tradução integral para o inglês em 2010), a fim de falar dos contatos com as superfícies vivas e inertes do mundo, e estou agora escrevendo O sexo vegetal dois, que é, neste caso, um conjunto de breves ensaios sobre as virgens indígenas que transam com árvores, frutos, raízes etc. Isso não tem nada a ver com a Bíblia, pois essas virgens aceitam o gozo etc., e então engravidam e dão à luz um filho “vegetal”, como Jurupari, o enviado do Sol.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Há anos, na verdade, para ser preciso, desde 2001, quando me casei com Dirce Waltrick do Amarante (ela é desde então minha mentora), descrevo cenas cotidianas em pequenas cadernetas. Faço isso diariamente. Chamo esses textos breves de descritos, e não os considero “instantâneos”, ou fotografias, mas uma reelaboração rápida e concisa do que vejo, que invariavelmente redunda na metamorfose. Essa é a minha forma de me familiarizar com o mundo ao meu redor criando outro mundo em ebulição eterna, um mundo multifacetado, em que posso assumir várias perspectivas inumanas: a da planta, a do animal, a do mineral… Então, não tenho hora para escrever, ou desenhar. Posso fazer isso a todo momento. Atualmente, estou mais desenhando do que escrevendo – estou muito interessado na poesia gráfica, nas possibilidades inventivas da caligrafia… Moro numa casa diante da praia, em Florianópolis, e ainda tenho um jardim. Em suma, é tanta coisa para ver! Me considero uma sentinela, e tento agir assim ao longo do dia, quando posso estar em casa só contemplando. Como ganho a vida como professor, tenho de dar aulas na UFSC, mas vou registrando tudo o que vejo pelo caminho. Carros, helicópteros, cadáveres de animais… A minha galáxia ilhoa (Florianópolis é uma ilha) é feita de fragmentos irreconciliáveis na aparência: somos todos filhos da fumaça (a mãe) e do urubu (o pai), como já propus num poema recente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Bem, como disse anteriormente, escrevo em cadernetas as várias coisas que vejo (ou, melhor, que penso que vejo, ou que penso quando vejo), mas isso é um projeto meditado, não uma compulsão “cega”: quero, assim, situar-me o mais próximo possível do outro (do inseto, por exemplo). O outro não tem hora para aparecer: às vezes surge de manhã cedo, às vezes no fim de tarde. Então nunca sei quando vou registrar ou desenhar o outro. Quando decido “publicar” um poema (isso também não tem hora, mas trabalho com mais fôlego pela manhã), consulto as minhas cadernetas, escolho os descritos que vão entrar nele e os copio. Daí surge o poema. Às vezes, porém, no ato de tomar notas já vou emendando um descrito no outro e, alguns dias depois, o poema já está pronto, “publicável”. Minha poesia é muito imagética, então foi natural que eu me interessasse mais recentemente pela caligrafia, pelo poema gráfico. De repente, comecei a também desenhar o mundo (um mundo bem pequeno, feito de mil e um fragmentos pululantes que nunca param quietos). Essa é a minha “galáxia” atual, traços, curvas no papel… Gosto de embaralhar as cadernetas e fazer os descritos antigos (verbais) dialogarem com os descritos gráficos atuais (caligrafias). Isso se refere exclusivamente à poesia. Quando escrevo resenhas (colaboro atualmente no caderno “Aliás” de O Estado de S. Paulo), prefiro mergulhar de cabeça no trabalho e trabalhar o dia todo nos textos, até dizer chega, até concluí-los. Mas quando traduzo, e o faço sempre só por prazer, sigo a rotina que uso para preencher as cadernetas de descritos: uns poucos parágrafos a cada dia, toda manhã. À tarde fico vendo livros de arte: tenho uma coleção alentada e gosto de folhear os livros (inclusive para que as suas páginas “luxuosas” não grudem uma na outra em razão da umidade local: moro numa ilha) com reproduções de obras admiráveis: as de Malevich, Matisse, Mondrian, as obras (ou não-obras) dos novos realistas francesas, Yves Klein…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Talvez um exemplo seja mais elucidativo. E aqui vou falar da minha obra criativa mais pessoal, da minha poesia, não dos ensaios e das traduções, que seguem outro ritmo, outro padrão. No ano que vem completarei 60 anos. Então pensei que a coisa mais linda que existe é ter nessa idade (que assinala o fim da meia idade e o início da velhice) um mestre radical e irreverente para homenagear. Escolhi Haroldo de Campos, um poeta que sempre leio e cujo fantasma falante aparece num livro meu, O choro da aranha etc., de 2013; o Haroldo, que conheci pessoalmente, tem um livro desconcertante chamado Crisantempo que me influenciou muito (não sei se é o melhor livro dele, talvez não seja). Tem nele poemas próprios e poemas traduzidos, de autores orientais e autores indígenas (poetas mesoamericanos). Como sou tradutor do poema maia Popol Vuh, que fiz sob a supervisão do americanista Gordon Brotherston na Universidade Stanford, EUA, fiquei tocado quando vi que Haroldo também havia se debruçado sobre a literatura ameríndia, uma das minhas favoritas, ao lado da oriental (chinesa e japonesa). Então escrevi O choro da aranha etc. como uma resposta a Crisantempo. Por isso aparece o fantasma do Haroldo, e por isso aparece uma tradução/recriação minha de um canto bororo etc. Só posso dizer que o fantasma do Haroldo me persegue, e dou graças a Deus por isso. Então, no ano que vem, pretendo lançar, ao lado de Caligrafias (uma cosmogonia gráfica que fala da arte das cavernas do futuro), um livrinho chamado N descritos com rimas, que é um novo diálogo meu com a obra de Haroldo, desta vez com Galáxias e os poemas concretos que ele escreveu no início da carreia. Wittgenstein também aparece para dar uma força…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ainda não tive a sensação de que esgotei a minha fonte. Continuo escrevendo, ou melhor, desenhando… Minha obra mais ambiciosa se chamará Descritos (N), e será constituída de uma caixa contendo a reprodução de centenas de cadernetas de descritos que acumulei ao longo de mais de uma década de trabalho diário. Imagino que essa caixa poderá ser manipulada por um ator no “palco”. Ele escolherá ao acaso o que ler. Catará um descrito aqui, outro ali… e fará o “espetáculo”. Imagino algo vagamente semelhante à minha peça moderna favorita: Krapp’s Last Tape, de Beckett. O leitor poderá ter a caixa também em casa, e comporá “n” poemas manuseando livremente as cadernetas. Bom, para poder contar e reunir todas as cadernetas (ou boa parte delas, mais de 500) numa única caixa, meu primeiro procedimento foi de ordem prática: tive de parar de escrever descritos, tive de deixar de preencher cadernetas com pequenos poemas em prosa. Então comecei a desenhar, a fazer descritos gráficos. E quem me ensinou a fazer isso foi um índio xavante já falecido, Jerônimo Tsawé, a quem gosto de chamar de guru, pois ele é meio indiano para mim. Eu o conheci trinta anos atrás, e já era quase centenário. Morava no Mato Grosso, onde nasci (na verdade, o meu vasto estado se dividiu e hoje sou sul-mato-grossense, pois a minha cidade, Bela Vista, na fronteira com o Paraguai, faz parte atualmente do Mato Grosso do Sul). Ele me ensinou a fazer caligrafia, a pôr o gesto no poema, ou seja, a fazer o corpo agir na página. Ele era um grande calígrafo e me deu uma folha com sua escrita imaginária, a qual guardo comigo como um amuleto. O resultado desse aprendizado está no meu novo trabalho, Trio pagão, que a Iluminuras, que tem publicado quase todos os meus livros, lançou neste ano. Então, se comecei a desenhar foi porque a evolução da minha linguagem me obrigou a isso. Hoje estou muito envolvido, como já afirmei, com explorações de caligrafias e de grafismos… Me sinto o poeta das cavernas (futuras?), e isso me estimula muito. Agora, quando penso na caixa de descritos sinto, sim, certa apreensão, certa ansiedade, e penso que a coisa poderá estar além das minhas forças e possibilidades. Acho que não conseguirei levar esse projeto até o final sem algum tipo de patrocínio. Poderá ser um projeto caro, pelo menos para os meus padrões.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou casado, como disse, com Dirce Waltrick do Amarante, ensaísta, tradutora e contista. Não publico nada sem o aval dela. Ela lê, dá palpites, modifica as minhas coisas. Ela já chegou a mudar a ordem de um poema meu, e ele ficou muito melhor. Preciso muito do olhar e da opinião dela.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como anoto tudo o que vejo de notável (de humildemente notável) em cadernetas, escrevo à mão e depois passo a limpo no computador. Até tradução faço assim. Traduzi Sílvia e Bruno, de Lewis Carroll, um calhamaço de 600 páginas (ainda não foi publicado, está na Iluminuras) todo à mão, e depois copiei tudo, modificando e limando, no computador. Acho que esse é o meu método. Como adoro a caligrafia oriental, e estudo as várias escritas (as formais e as informais, como a que é chamada de “grama”, “relva”), estou sempre rodeado de nanquim e pincéis, além de lápis, canetas etc. Traço os meus traços no papel. Esse é o meu slogan atual.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho um fraco pelo irrequieto, pelo que é experimental. Vivo estudando, por exemplo, Mallarmé e o seu Um lance de dados jamais abolirá o acaso, o poema capital da modernidade. Isso me inspira muito. Leio Haroldo, e ele me inspira. Estudo a obra de Yosa Buson, que, aliás, já traduzi, quer dizer, alguns haikus dele… Leio muito literatura indígena. Agora há pouco reli Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues, que contém uns poemas e uns contos em nheengatu lindíssimos… Mas, acima de tudo, olho os insetos e os helicópteros, o cães e os automóveis, o mar e a torneira… e vou tentando alterar a minha perspectiva humana para construir uma galáxia de imagens ínfimas, porém transbordante… Chamo isso de “idolatria poética”, que é a medida exata do meu paganismo, do meu animismo inato. Ah, não posso me esquecer das longas sessões em que passo folheando livros sobre arte abstrata e relendo os escritos fulminantes de Malevich e Mondrian (eles anunciaram o “imaterial”, aquilo que está além da “grade” da janela ou da cortina negra). Este último, Mondrian, escreveu um ensaio sobre arte abstrata na forma de uma peça de teatro; adotei isso em Caligrafias, onde uma ema, um cosmonauta e um jardineiro “doudo” se encontram num planeta minúsculo que é só uma caverna e lá dentro discutem o projeto de fazer um jardim, não se sabe onde.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha linguagem sempre foi imagética; a prosopopeia é uma figura de linguagem muito proeminente na minha poesia, assim como o símile. De repente, por exigência dessa linguagem, tive de “mudar”, ou ousar um pouco mais de outro modo: ela me solicitou, se posso dizer assim, novos formatos, daí parti para a caligrafia, a poesia gráfica. Posso talvez concluir que estou me alimentando de mim mesmo e explorando aquilo que não explorei em anos passados. Em lugar de fazer uma antologia da minha poesia, aos 60 anos de idade (que farei em 2019), estou relendo-a para desenvolver aquilo que nela ficou só sugerido ou esboçado…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu não gosto de ler poesia em voz alta, de cantar poesia nem de dançar poesia. Conheço poetas brasileiros que fazem isso às vezes até muito bem. São admiráveis. Eu quero é expor a minha poesia. Queria fazer um “totem pole” para exibir numa galeria de arte, por exemplo, um tipo de uma coluna infinita (pago tributo ao mestre Brancusi) de cadernetas de descritos. Descrevo esse projeto (que ainda é só um sonho) no meu livro A idolatria poética ou a febre de imagens, que saiu em 2017.