Sérgio Alcides é poeta, crítico literário e professor da Faculdade de Letras da UFMG.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não é todo dia que escrevo. Tenho horror a rotina. Por sorte, arranjei um ganha-pão que me permite ter uma semana variada. Às vezes dou aula de manhã. Às vezes, não. Quando estou em casa, às vezes descanso, às vezes trabalho, não necessariamente escrevendo. O importante para mim é me dar o direito a uma certa lentidão matinal, a uma introspecção também. É o meu tempo de misantropia sob controle. Então, se tenho aula, acordo mais cedo para garantir esse lapso. Nunca escrevo nada nesse período. A não ser e-mail – e mesmo isso costumo evitar. De manhã gosto de ler, tomando café. E essa primeira leitura, prefiro que não tenha relação direta com meu trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor depois das 10h, de manhã, e depois das 16h, à tarde. Demoro a me concentrar. Não sigo nenhum rito, mas tenho hábitos. Café, de manhã, é indispensável. E no final da tarde sinto fome. Outra alimentação necessária é o pão dos dicionários, que sempre adorei. Antes só trabalhava cercado desses livrões. Hoje eles ficam no alto da estante atrás de mim – ociosos, porque passei a usar os incríveis recursos da internet. Então escrevo numa tela, enquanto várias outras ficam abertas, com obras de referência. Não sei como alguém pode escrever ou ler sem ter sempre um dicionário à mão, uma enciclopédia. Hoje cada um tem uma biblioteca de Babel embaixo do teclado. Mas não sei se quem já nasceu neste outro mundo sabe valorizar essa disponibilidade toda. Se eu não temesse o risco de soar como um reacionário, talvez dissesse que a prática de virar páginas nos habilita a abrir links de um modo mais avisado – e a tirar melhor proveito de tanta laranja madura na beira da estrada. Mas não digo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta constante. Não posso ter, porque não escrevo uma coisa só. Como um romancista, por exemplo, que pode se disciplinar para escrever um pouco todo dia. É raro o dia em que não escrevo alguma coisa. Mas é raríssima a semana em que não escrevo duas ou até três coisas diferentes: ou crítica literária, ou artigo universitário, ou poema, ou tradução sei lá do quê. Desse jeito, o planejamento fica inviável. Estou sempre devendo um artigo a alguém, um ensaio, uma tradução. De maneira que minha escrita em geral é feita ao som de latidos. Gosto muito daquele poeta inglês, dos chamados metafísicos, o Andrew Marvell. Ele me explicaria de um modo mais elegante: “And at my back I always hear / Time’s winged chariot hurrying near” (algo como “E sempre ouço atrás de mim / Do Tempo o alado carro aproximar-se”).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou muito obsessivo. Essa etapa da pesquisa me suga irresistivelmente. E tenho um enorme prazer nesse acúmulo de dados, notas, reflexões. Maior do que no ato mesmo de escrever. Chega um momento em que fico totalmente impregnado. E aí, duas coisas podem acontecer: ou a escrita se impõe e me leva até o fim, ou me perco e acabo não escrevendo a coisa nunca mais. Imagino que, para muita gente, vai ficando mais fácil com a idade entregar para o papel ou para a tela as palavras pretendidas ou prometidas. Comigo acontece o contrário. Quanto mais “sabido” (e quanto mais vivido), mais difícil vai se tornando o trabalho. Tenho saudade de uma certa liberação interior, que hoje reconheço como ingênua, que me permitia o risco de entrar correndo num salão escuro cheio de cristaleiras e objetos preciosos, sem derrubar nada até chegar do outro lado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação fabrica a droga que, no fim, acaba com ela. E essa droga vicia… Não se chama “adrenalina”?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não reviso muito, mas tomo o cuidado de entregar um texto correto. O que é inútil, porque existem os revisores profissionais, que nunca deixam de introduzir algum estrago, embora às vezes se esqueçam de corrigir as distrações que sempre passam. Como vivemos num país que se recusa a ensinar uma língua oficial a todos, então surgem esses especialistas. São verdadeiros dita-regras, criados em estufas gramaticais, hermeticamente isoladas da menor sombra de criatividade, e impenetráveis para o alto português do Brasil. Mesmo não sendo leitores, tornam-se a polícia dos escritores. E têm uma autoridade ilimitada, já que ninguém saberia contestá-los. O trabalho deles é passar uma espécie de photoshop linguístico em tudo o que é texto, uniformizando tudo, nivelando tudo a esse padrão lustroso, depilado, que não tem nenhuma celulite, mas também não tem nenhum viço.
Felizmente, a poesia parece amedrontar esses meganhas. Como eles não têm a menor noção do que seja, então se intimidam e renunciam à sua vigilância sempre alerta. Isso deve ter a ver com o prestígio meio místico que os poetas ainda têm, ou, se não, com sua fama de doidos. O revisor tem medo de tocar no poema e levar um safanão. Isso é um alívio. Poucas vezes publiquei um texto – principalmente na imprensa, mas não só – sem ter o desgosto de constatar a interferência nociva de revisores rodas-duras. Mas isso nunca aconteceu com nenhum poema meu ou traduzido por mim.
Ainda bem! Porque eu próprio nunca abandono um poema até o último minuto antes da publicação. Enquanto não me impedem de mexer mais, é como se nada estivesse pronto, tudo ainda seja passível de emenda. No meu último livro de poemas, cheguei a fazer uma alteração por um telefonema interurbano. Imagino a cara do editor, atônito, obrigando-se a abrir o arquivo já paginado e revisto, para trocar uma preposição.
Pode ser que isso tenha a ver com uma insegurança. Mas não acho que seja assim. Tem mais a ver, por um lado, com um trabalho que não para, por ser tão mental e provavelmente até neuronal; e, por outro, com um senso do dever, uma responsabilidade de autor: aquilo depende de você enquanto não for público.
Ontem mesmo assisti no YouTube a uma gravação antiga em que o João Gilberto está “passando o som” antes de um show que ia fazer, na Bahia. Era quase uma tortura para o pessoal técnico. O músico no palco, tocando e cantando sem parar, pedindo mais volume, menos graves, mais brilho, mas não tanto, um pouco menos de contraste, mais textura, isso e aquilo. “Venha cá, Salomão: clareia a voz um pouco mais”. E ele parecia nunca ficar saciado de testes. Várias outras pessoas envolvidas – eletricistas, iluminadores, carregadores, sei lá – andando de um lado para o outro, com as mãos na cintura, esperavam uma definição. Um tipo grisalho, de blazer, com pinta de produtor executivo, tentava convencer o artista de que já estava tudo bem. A mulher dele também se impacientava (nesse tempo era a Miúcha). Mas para ele nada o impediria de exigir o máximo possível. “Os comecíssimos das palavras”, pediu. “Para já não ser só á”. Então existia algum ajuste que levasse a captação do som a essa fineza de sintonia. Se esse ajuste existe, então o artista se sente obrigado a buscá-lo. É seu dever. Até ficar satisfeito e improvisar: “É só no samba que eu sinto prazer / E a voz está boooaaa”…
Um poeta, conforme o caso, também pode ser do tipo que requer essa paciência salomônica. A ponto de questionar em cada palavra até os comecíssimos e os finérrimos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Às vezes anoto alguma coisa a mão. Às vezes em guardanapo de papel. Mas, para valer, é no computador mesmo. Assim como, muito jovem, era na máquina de escrever – uma velha Olivetti supostamente portátil, que pertencia ao meu avô e desafiava a magreza do meu muque na hora de ser transportada.
Não tenho problema com tecnologia. Tento me adaptar. Mas não a mistifico. E não me deslumbro fácil. Percebo mais ou menos em que tipo de canoa estamos embarcados, tenho uma noção dos perigos. O poder planetário das grandes corporações, as consequências cognitivas dos hábitos de comunicação em rede, o atrelamento de cada clique a algoritmos ocultos que possibilitam uma vigilância universal, sem precedentes – tudo parece constranger cada vez mais a alçada das liberdades individuais, da mesma forma que tende a espremer o espaço da vida interior – que, pelo que sei, é onde mora a consciência… Essas coisas me metem medo. Tento observá-las sem cair na tentação de um conservadorismo que considero desprezível, ou de uma nostalgia borocoxô.
Mesmo assim, não deixo de reconhecer que o passado não tão distante nos oferecia algumas regalias atualmente impensáveis. Por exemplo, tínhamos a palavra “alienação”, que nos prestou relevantes serviços. Na circunstância atual, virou um traste. Que ironia… A própria alienação se acha alienada. Para esta escala industrial, global e terabáitica de sujeição compulsória de toda dignidade humana ao imperativo do consumo, estamos precisando de outra palavra.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei de onde vêm as ideias. O Armando Freitas Filho sempre cita uns versos de Drummond que, eu acho, se aplicam aqui: “não são jornais / nem deslizar de lancha entre camélias: / é toda a minha vida que joguei”. São da “Consideração do poema”, na abertura da Rosa do povo. Mas poderiam ser de uma consideração de tudo o que tem valor existencial e desperta uma pessoa para si mesma, para os seus modos próprios de seguir adiante e enxergar ao seu redor. As ideias devem vir desse repertório acumulado, disso que é ter a vida toda jogada, se entendemos bem em que acepção se dá esse verbo aí, na qual está implicada uma aposta altíssima e definitiva. De maneira que até se torna inconcebível essa proposição de cultivar hábitos ou sei lá o que mais, com uma determinada finalidade intelectual ou artística. Estou falando de um cultivo mais intransitivo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Para mim essa pergunta fica ambígua, porque de fato escrevi uma tese, para obter um título acadêmico e seguir minha carreira de professor universitário. O que eu diria a mim mesmo, se pudesse voltar a essa tese? Talvez dissesse: caia fora! Procure outra profissão, porque daqui a dez anos o Brasil nem será mais uma democracia; a década de 1990 que você pensa ter deixado para trás voltará com virulência redobrada, e com ela a perseguição a toda excelência e a tudo o que ameaça emancipar o Brasil de sua eterna sina colonial. A vendetta neoliberal fará de tudo para extinguir o sistema público de educação superior, e de repente você verá que todas as esperanças da sua geração – que foi a do movimento das Diretas Já! – estão sendo destruídas. Pare de gastar seus neurônios à toa!
Eu talvez dissesse isso a mim mesmo. Mas com certeza não me daria ouvidos. Estava totalmente absorto, tinha posto ali o coração inteiro, e o coração é maior que as orelhas. Em seis meses, pouco mais ou menos, redigi a tese que se elaborou na minha cabeça ao longo de dez anos, sobre as desavenças de Sá de Miranda no século XVI. E eu já estava a ponto de pela segunda vez ser jubilado da pós-graduação. Uma hora, quando o carro alado do Tempo ia quase me atropelando, finalmente me sentei e comecei a escrever até chegar ao fim, trezentas laudas depois.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que nunca comecei nem vou começar, porque não tenho mais “mundo bastante, nem tempo” (citando Marvell de novo), seria aprender a ler partitura. Para ouvir música como leio um poema, acompanhando cada nota, muito por dentro da forma e alerta para os artifícios, os segredos da arte. É claro, isso tem a desvantagem de aumentar o desprazer de ouvir a música ruim, pelo maior “conhecimento de causa”. Mas aí bastará tapar os ouvidos e fechar a partitura, assim como fecho o livro de um mau poeta, por mais consagrado e festejado que seja, para não ter esse mesmo incômodo. E isso funciona muito bem, aliás. Você fecha o livro e é como se aquela versalhada nem existisse. (Por sorte a poesia ruim ainda não toca no rádio nem é ouvida em alto volume no apartamento do vizinho).
De todos os livros que ainda não existem (que são tantos!), é difícil dizer qual eu mais gostaria de ler. Uma resposta chique seria: a continuação da Poética, de Aristóteles, que, dizem, trata da comédia. Mas este é um livro que existe, apenas não foi encontrado até hoje. Há de ser. No arco de tantos séculos, não faria tanta diferença uma obra antiga reaparecer só no XXI e não no XV, quando acharam a parte que hoje conhecemos, sobre a poesia e a tragédia. Todo esse intervalo – os tempos modernos, mais a modernidade, mais a era de Wesley Safadão – não faz tanta diferença assim, se considerarmos que o livro foi pensado e escrito há mais de dois mil e trezentos anos.
Embora seja interessante especular sobre as circunstâncias históricas da descoberta que há de acontecer, quando comparadas com as da descoberta já acontecida. Porque a Poética teve um impacto considerável na poesia do Renascimento e em muita coisa que veio depois, não só na poesia mas também no teatro. Mas assim foi porque essa descoberta era contemporânea da invenção do humanismo, como afirmação de uma razão laica, independente da tutela acadêmica de eméritos eclesiásticos medievais. Pouco depois, dentro do mesmo contexto, esse bebê de mil e oitocentos anos foi embalado pelos mesmos pensadores que redescobriram também o ceticismo antigo, e davam os primeiros passos para a filosofia poder ser moderna.
Se o restante da Poética ressurgisse hoje, seria um upload e tanto. Mas coincidiria com a extinção final daqueles horizontes que viram a primeira parte reaparecer. A possibilidade de reflexão fora dos muros universitários, a salvo de dogmatismos, becas e capelos, numa “república das letras” relativamente autônoma, não é muito promissora em meio às atuais posterioridades. Em boa consonância com a propalada “pós-verdade”, a academia hoje acolhe com entusiasmo pop também a “pós-crítica” e o “pós-humanismo”.
Minguando a esfera pública, fora dos muros, mingua também dentro deles o que a universidade tem de melhor, que é seu poder de aprofundamento, elaboração continuada e metódica do conhecimento e da cultura, assim como a transmissão às gerações mais novas desse tesouro e de formas de cultivá-lo, reinventá-lo, vivê-lo no tempo. E se enrijece o lado ruim da academia, normativo, retentivo, com a prepotência hierárquica do seu clericato. Mesmo que este se disfarce hoje com uma batina “descolada”, com os fumos de contracultura do professor sesquicentenário e semiapoplético que palestra pela milionésima vez sobre “a emergência do novo”.
Muito mais emergencial seria uma segunda parte da Poética… Imagine! O que faria hoje o Prof. Dr. Fancy Brain se lhe caísse nas mãos o rolo antigo do precioso texto? Googlaria o currículo Lattes do autor? Denunciaria o universalismo conservador de Aristóteles? Citaria Walter Benjamin?