Sergio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sempre tenho vários projetos, ensaios, artigos, posts e livros. Não é exatamente uma preferência. É uma necessidade. Eu tenho a disciplina de escrever — o que inclui ler muito, também — no mínimo quatro horas por dia. Estou sempre envolvido com peças de ficção e não-ficção. Frequentemente, estou cuidando de três, quatro projetos em simultâneo. Sempre fiz isto, desde meus tempos de vida acadêmica.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende do que esteja escrevendo. Para os ensaios sempre tenho um plano básico sobre o que pretendo, onde quero chegar e que tipo de informação vou precisar. As ficções, deixo fluir. Às vezes tenho uma frase ou imagem na cabeça e, a partir dela, vou em frente. Outras vezes, tenho uma ideia genérica sobre um determinado enredo.
Acho o começo parte essencial seja em um ensaio, seja em uma narrativa ficcional. No caso do ensaio, a ideia de um começo que anuncie o que vem depois, vem do início da minha vida profissional, na primeira juventude, como repórter. Na ficção, vem do fascínio pelos começos que são armadilhas estéticas que prendem você na narrativa. Gabriel Garcia Márquez era um mestre das primeiras frases. O início de Cem anos de solidão é inesquecível. O início de Metamorfose de Kafka. A frase inicial de Anna Karenina, de Tólstoi. O início de O estrangeiro, de Camus. A abertura de Os irmãos Karamazov de Dostoiévski. E, claro, o começo de Grande Sertão Veredas. A frase inicial de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado. Enfim, sou apaixonado pelos começos e isso me desafia muito a refletir sobre a abertura dos meus textos de ficção.
O final, às vezes me surpreende, porque eu não o havia visto antes de escrevê-lo. Tenho um certo fascínio por começar pelo fim e ver como o enredo se organiza. Fiz, isto em Que Mistério tem Clarice?. Mas, porque eu havia escrito o final e decidi começar por ele, o texto originalmente pensado para fechar a estória, acabou praticamente no meio da narrativa e ela me levou a outro final.
Nos ensaios, o final é a conclusão. A última frase é importante para fechar definitivamente o raciocínio. Na ficção, o final pode ficar em aberto, encerrar aquela narrativa, mas deixar uma porta aberta para a curiosidade futura do leitor.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu tenho o privilégio de morar em uma casa e construi meu escritório nos fundos do terreno. Escrevo cercado de árvores e é um ambiente muito silencioso. Mas, já escrevi dentro de aviões, em cafés e restaurantes, na praia, de frente para uma reserva de Mata Atlântica. Não tenho muita rotina, nem preciso de silêncio para escrever. Se puder ter silêncio, melhor. Se não, eu me adapto. Hoje em dia, dedico as manhãs a outras atividades e minhas tardes e noites à escrita. Mas, posso trocar uma pela outra facilmente, depende do que esteja a acontecer.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu me obrigo a escrever ou ler e escrever quatro horas por dia. Quando travo, se já estou com parte do texto escrito, volto para o começo e sempre encontro o fio da meada nesta releitura. Quando não, leio algo relacionado, fico pensando sobre o que quero escrever. Um conto meu, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, foi resultado deste esforço de escrever. Abri o computador, o cursor piscando na tela e não me vinha uma frase sequer à cabeça. Fiquei um tempão olhando aquele cursor, até que surgiram duas frases: “ O pequeno traço vertical piscando era enervante, exasperante, secante. Ficava ali, insolente, no branco vazio da tela, suposto papel, avisando-o de seu bloqueio.” Foi tudo que consegui naquele dia. No segundo dia, consegui avançar um pouco no primeiro parágrafo. No terceiro, consegui terminar o parágrafo. Só no quarto dia, o enredo se firmou e consegui destravar e completar o conto. É sobre o bloqueio de um escritor e o título, “O cursor”.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
O que me deu mais trabalho, na não-ficção, foi A era do imprevisto. Tinha que tratar de muitos campos de conhecimento para falar da grande transição que vivemos. Escrevi dezenas de versões dele. Foram alguns anos. Ao final, era um livro completamente diferente das primeiras versões. O Presidencialismo de Coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiro foi trabalhoso porque tive que fazer uma pesquisa bastante detalhada. Mas, eu tinha textos anteriores sobre o tema para me orientar. O problema surgiu quando dei por terminado. Fui reler e odiei o resultado. Deletei o arquivo, para não ter a tentação de reescrever um texto que, para mim, não tinha salvação. Só que eu estava a poucos meses da data em que havia me comprometido a entregar o livro à editora.
Na ficção, acho que o texto mais trabalhoso foi um conto, “O apartamento da avenida Atlântica”. Em geral não tenho dificuldade para desenvolver personagens femininas. Clarice foi construída com relativa facilidade, Nina, a filha dela também. Mas, neste conto, eu precisava entender como a personagem central crescia da pré-adolescência à idade adulta e fazer isto caber em uma narrativa curta. No romance O intérprete de borboletas, que ainda não foi publicado, tive bastante trabalho para resolver como tratar do apartamento entre o mundo dos brancos de classe média e o mundo dos negros de periferia. Quando terminei, pedi a um amigo negro que lesse criticamente o texto para me alertar sobre erros inconscientes de racismo. Também foi penoso dar voz, com credibilidade, a pessoas intolerantes e preconceituosas. Na verdade, escrever é sempre trabalhoso.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Nunca penso em quem vai ler o livro. Não me vejo escrevendo para ser lido. Muitos dos meus textos de ficção nascem de reflexões dos ensaios. De repente, me dou conta de que trato de certas questões que têm uma carga emocional, afetiva, que não consigo captar nos ensaios, mas posso apreender na ficção. Mas, há outros que nascem de uma imagem que me chamou atenção, uma memória banal, que me retorna repentinamente com um significado insuspeito. Na ficção, quando ela engata, eu passo a viver em diálogo com os personagens, que adquirem vida autônoma. Falam comigo, me impressionam, me encantam, me irritam. São eles que estão em minha mente enquanto escrevo.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Quando termino uma versão que me parece aceitável. Tenho alguns amigos aos quais recorro para ler esta versão criticamente. A primeira a ler meu manuscrito é Míriam Leitão. Eu sou também o primeiro a ler os manuscritos dela. É uma troca séria. Temos muita afinidade de gosto literário e algumas diferenças, também Ela é minha leitora mais crítica e minuciosa. Meu grande amigo, maestro e escritor, Ricardo Prado, lê todos os meus manuscritos de ficção. É um ótimo crítico, culto e inspirado. Minha amiga Heloisa Starling, historiadora e politóloga, tem uma enorme cultura literária. Ela é versátil e, como a Míriam, lê minha não-ficção e minha ficção. Afonso Borges, poeta e contista, um bom amigo, é outro leitor importante de meus textos. São sempre leituras que me ajudam a refinar o texto. Nunca envio para editores antes dessas “leituras beta”.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Desde o final da minha infância eu queria escrever. Meus primeiros textos, contos, escrevi na pré-adolescência. Fui trabalhar como repórter, aos 17 anos, porque queria escrever e achava que seria uma ocupação na qual poderia me dedicar à escrita e ganhar a vida. Não foi bem assim, mas me ajudou muito a polir meus textos e a escrever em qualquer ambiente. Aí por volta desta idade, eu já frequentava assiduamente o encontro anual de escritores que acontecia em Brasília. Ouvi uma palestra do Murilo Rubião e tive coragem de lhe pedir conselhos. Ele perguntou se eu tinha meus contos comigo. Eu tinha levado os três de que gostava mais. Ele leu os contos naquela noite e, no dia seguinte, me deu conselhos que nunca esqueci, principalmente sobre como escrever diálogos. Era uma pessoa muito generosa, esplêndido contista e teve um papel enorme na formação de escritores e na divulgação da literatura brasileira no suplemento do Minas Gerais. Não convivi com ele, mas amigos meus de Belo Horizonte que conviveram sempre me falam dessas qualidades dele.
O que ninguém me contou foi como seria difícil ser escritor no Brasil. Também, se alguém me tivesse contado, eu teria insistido de qualquer forma. Os livros foram meus companheiros mais importantes, desde minha infância no sertão de Minas Gerais.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
O autor brasileiro de minha predileção absoluta é Guimarães Rosa. Tenho a afinidade do sertão e das veredas, somos da mesma região e ele tinha uma relação de grande carga emocional com meu bisavô materno, “o médico do Curvelo” das narrativas de Guimarães Rosa e personagem do desfecho de Miguilim. Foi certamente uma influência, mas não na escrita, que a dele era muito pessoal e especial. Machado, desde o começo. E o conheci pela obra romântica. Garcia Márquez é outra presença marcante na minha formação literária. Kafka marcou muito minha juventude, assim como Herman Hesse. Outras presenças marcantes foram Hemingway, Sartre, Camus e Thomas Mann.
Meu estilo nasceu do encontro entre minha personalidade e minhas leituras, na fronteira entre ensaio e ficção.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Quando se trata de leituras existenciais marcantes, Grande Serão Veredas, A montanha mágica, O lobo da estepe e Crime e Castigo. Estes quatro são, disparados, os que mais recomendo, dependendo da pessoa e da hora. No dia a dia, costumo recomendar livros que acabei de ler. Aliás, faço isso quase diariamente em uma live com o Afonso Borges no Instagram, 15 minutos de papo. Sempre terminamos recomendando livros. Na temporada do ano passado, recomendei, entre outros, O avesso da pele, de Jefferson Tenório, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior e O que ela sussurra, de Noemi Jaffe.