Schleiden Nunes Pimenta é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para mim é rotineiro não ter rotina. Este tipo de ambiguidade é algo que permeia tudo que escrevo. Há qualquer coisa de inconformismo, de incômodo, de insatisfação. Às vezes penso em manter uma rotina, e, de repente, já saí do planejado ao me pegar divagando que “rotina rimaria com…” (risos) O meu dia sempre começa com indagações nada rotineiras.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Também não há preparação para escrever, embora um café frio seja bem-vindo. Isto porque a melhor preparação para a minha escrita é o incômodo. O café quente, o sofá macio… não! Definitivamente. Passo o café, levo para onde eu estiver, e, quando percebo, ele já esfriou. Daí, bebo. Existe uma razão por trás disso que não seja apenas uma mera procrastinação ou “medo do café quente”.
Não acredito ser o tipo de escritor impulsionado por um ambiente ou por causas tranquilas, praia, caipirinha, pé na areia (como está na moda cantar).
Há coisa mais incômoda do que café frio? Ou, o que pode haver de errado com um café quentinho? Não é assim que nos acostumamos a tomá-lo? Mas se estiver frio… “Deus, que merda é isso? Por que você me serviu assim?” Existem tantas cogitações ou possibilidades…
A todo momento, aonde quer que vamos, ou estejamos, as pessoas te servem café. Um mineiro sabe o que é isso. “Entra, pega um golinho…”. Tem rosquinha, pão de queijo. Mas, embora o convite seja acolhedor…
A todo momento a vida nos serve xícaras frias de café. As quentes, embora gostosas, não são tão fugazes? Por quanto tempo permanecem assim? Vinte minutos? Ou algumas horas na garrafa térmica? Percebo que é tudo aparência. Na essência, o café está sempre frio. Nós que nos acostumamos a não ver. Não há preparação para isso.
Os insights, o lapso que me faz perceber que aquele frio me incomoda, é o instante de escrever: às vezes, sobre o quão cruel pode ser o trabalho em uma lavoura; noutras, no quão emocionante é o carinho da mãe que o prepara para seus filhos antes de irem à escola. Mas o aroma é sempre de café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há um ano não escrevo. O curioso disto é que se trata de um sintoma de tudo o que contei nas suas questões anteriores. Como escrever se a temperatura abaixa demais? Se aquele café está tão gelado que te paraliza? Te assusta, te faz travar até o maxilar? É preciso de um pouco, nem que seja um pouco, de não sei o quê.
Lembro-me que, ainda na adolescência, comecei a escrever crônicas de cunho político, incentivado pela minha professora de português. Eu escrevia, ela dizia que estava bom, mas me mandava reescrever do zero. Depois, ao ler o segundo texto, elogiava: “Temperatura ideal”.
Uma vez, disse-lhe que jamais conseguiria escrever um livro, um romance, porque mal começava a escrever uma crônica e já queria terminá-la. Impaciência. Queria tomá-la! Passar para outras, jogar fora; engoli-la sem apreciar. Acontece a mesma coisa quando desenho ou pinto algum quadro. Seu conselho foi para não pensar no romance; para pensar nos beijos, nos olhares… para simplesmente pôr as ideias no papel e, um dia, quem sabe, reuni-los numa só estória que fizesse sentido. Vai flertando…
Passei até a gostar de cachaça com essa coisa de apreciar.
Aprendi naquela época, quando terminei meu primeiro romance, a vivenciar cada momento da escrita; mas, também, que as coisas conversam. Tudo conversa; estão conversando em todo lugar.
Às vezes, elas me chamam para uma prosa rápida; noutras, para uma noitada. Como vou definir uma meta? Escrever, para mim, é conversar com as coisas; não há meta porque não há objetivo. Coisas têm vida e vidas não podem ser (e não são) metas. Só há uma reunião entre amigos sem hora para começar ou acabar.
Pode ser em casa, no banheiro, em pé no meio de uma avenida de mão dupla, os carros passando, a caderneta e a caneta em mãos, as buzinas ao redor te contando coisas absurdas, delírios, devaneios de todo tipo…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ah, funciona de forma diversa. Há um momento de flerte… que pode durar anos – ou segundos! Mas, geralmente, não há pesquisas, não há incursão nas suas redes sociais ou qualquer stalker. Não, não quero stalkear ninguém… Aqui também sou flexível. Estou aberto para relacionamentos longos, breves, separações… Alguns duraram meses; outros, como minha obra O Assassino Vocabular, oito dias e meio, ao som de Pink Floyd, até chegar lá. A Bruxa de Paris já se prolonga por longuíssimos dois anos e meio ao som de Florence and the Machine. Cada obra é uma surpresa, com sua própria trilha sonora, suas próprias exigências, seu próprio cheiro, até. Acontece assim.
Mas faz um ano que nenhuma ideia me procura. A escrita se assemelha muito à realidade (risos), o que me faz lembrar da minha juventude.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lidar com travas, medos e ansiedades é exatamente isto. Lidar com elas.
Primeiro, por que não considerar que a trava não é uma trava? Talvez seja tão somente um desinteresse! Continua a ser como um relacionamento. Nem todos vão para frente, nem sempre há casamento, nem sempre era o que ilusionávamos ser ou ter.
Mais do que temer as expectativas dos outros, importante é repensar as nossas próprias expectativas! Quer dizer… para um escritor como eu, que mais me sinto um “medium” do que qualquer coisa, de qualquer ideia, do que um criador onipotente e imaculado, não deve ser possível alimentar expectativas.
Continuo a seguir o conselho da minha professora. Tem que saber apreciar…
Às vezes, quão assustador pode ser pedir em casamento uma relação de poucos meses ou meros dias? Você acabou de conhecer a “ideia” e já quer que ela venda milhares de livros! É preciso calma! Não a afugente tão rápido assim. Talvez ela seja uma ideia caseira, com seu brilho especial, mas que não curte muito os holofotes ou exposição…
Temos a terrível noção de que a ideia é nossa. Não! É tão óbvio que não! Não exercemos qualquer controle sobre a sua chegada ou partida e temos que agradecê-las por terem nos encontrado.
A questão é… se você está com travas, com medos, com ansiedades ou procrastinações… já pensou em conversar sobre isto com seu “parceiro”? Sua obra, sua escrita, sua ideia, não é algo morto, inanimado; há energia, desejo, vida própria se movimentando ali. Muito se fala sobre “Ah, não estou na vibe”, ou “Que vibe boa em que estou!” E não é isso? Só acho que não é uma vibe sua para com você mesmo. Eis a prova, para mim: a vibe sempre envolve você com algum outro ponto de vibração. Se não, não haveria tensão para vibrar.
Escreva sobre a crise; dê um tempo, talvez, para recomeçar. E, se por acaso o relacionamento tenha ficado insustentável, se o fim for inevitável, que seja bem feito! Dois, três capítulos maravilhosos! Renomeie, reconceitue! Qual o problema de um romance se tornar um conto ou um poema mesmo que trágico? Diga “Este poeminha tem um romance inteiro dentro de si”.
Escrever é se relacionar.
Mas, também, preciso dizer que a escrita não é só poesia, por mais que a vejamos como algo belo, natural ou para além do bem e do mal. Qualquer coisa assim. É claro, falo dela como se fosse assim, mas é como a dramaturgia. A maioria dos atores diz que, por mais que atue e que tenha uma vasta experiência no teatro, sempre sente “aquele frio” no estômago ao subir novamente ao palco.
É assim. Por mais que eu tenha essa “relação diplomática” com a escrita, existe algo de penoso – por assim dizer. Percebe-se algo de torturante, às vezes. Imagino que aconteça com todo artista. É terrível sentir-se amarrado, preso, querendo escrever mas não conseguindo ou se esforçando e não gostando do que foi escrito. Além disso existem as “crises”… Elas sempre vêm, vão e voltam, estão sempre presentes. O desejo de rasgar tudo que escrevi, a sensação de que nunca escrevi algo realmente bom, o impulso de parar de escrever. Quantos escritores não deixaram em testamento para que suas obras todas fossem queimadas?
Quando digo “as ideias não me procuram há um ano” pode até soar como algo bonitinho, romântico – uma comédia romântica, talvez. Mas nem sempre. Talvez nunca seja. Tem mais a ver com “minha mente e meu espírito estão em um caos total há um ano” ou “há um ano estou no inferno e não consigo me encontrar”. Sabe?
A crise, assim como meus TOC’s, estão sempre aqui. Chegam sem aviso, vão quando não há mais esperança de melhorar. Mas o que é isso? Quer dizer… o que isso significa? Sei que, não fossem as crises, se não fosse esse detalhe, qualquer sofrimento, alguma coisa que nos leve a pensar sobre as dificuldades que fazem parte da nossa própria existência, enfim… Teríamos ideias realmente belas para escrever? Meu poema épico “Cogiei, Imãnei, Bravatei” nasceu daí, fala e tenta explicar como funciona meu transtorno obsessivo compulsivo por meio de uma alegoria. É belo? Não sei! Pode ser para uns, feio para outros. Mas não é essa a conotação de “belo” que reflito. O belo sim, está para além do bem e do mal.
Continua a ser uma relação. Penso na lama, penso na lótus, penso em quão maravilhosa ela é meio ao improvável ou impossível.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sabe a sensação de reviver algo mas como se fosse pela primeira vez? Consigo isto a cada etapa. Antes de tudo, o transe, ou transa, de caneta e papel; depois, o frenesi da digitação; então a revisão que nada mais é do que a releitura básica; e, por fim, o enquadramento final que faço por meio do PDF.
É curioso como que, em cada formato, o texto adquire texturas diferentes, sabores próprios, como que a cada troca de roupas ele se faz renovado. A letra é vaidosa. Gosta de atenção.
Mas tudo tem limite. Meu primeiro livro, meu maior caso de amor – e que já dura 700 páginas –, não aguenta mais as minhas dicas, conselhos e revisões. Para ser bem sincero, nem eu. É hora de aceitarmo-nos como somos. Só falta uma editora que queira nos casar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia, decerto, ajuda. Conheci minha esposa por meio dela. Mas não é nela que as coisas se concretizam, se é que posso dizer assim. O toque, a textura, o transe, o deslizar da ponta da caneta e as curvas de cada letra… cada significado, cada sugestão… tudo significa uma arte tão sublime! Há quem goste de rapidez, da facilidade, de um alimento pronto, de um alho já cortado ou um molho de tomate já enlatado. Eu prefiro fazer tudo na hora.
O curioso, também, é que sinto muita diferença “substancial” entre a escrita e a digitação. Algum mecanismo se move diferente, dentro da minha mente, no ato da digitação ou da escrita propriamente dita. As ideias se relacionam comigo de forma diversa, em uma velocidade diferente; o vocabulário também não é igual; sinto que a inspiração não é a mesma. Percebo que, durante a escrita, consigo focar o que é realmente essencial; ao passo que, durante a digitação, tudo vem em uma avalanche tão forte que, embora eu consiga produzir mais e perceber mais caminhos, o essencial se perde. Quase tudo que escrevi até hoje foi, literalmente, escrito (creio que 95% no final das contas). Depois, transferido para o computador. Sim, elas sobreviverão com um eventual fim da internet ou a um apocalipse zumbi. Isso é o que me tranquiliza. Ou não (risos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Certamente a cultura, o acesso à informação e o ensino, enfim, qualquer espécie de capacitação, nos ajuda – assim como o seu excesso, saturação ou inconsistência pode nos confundir. Mas não creio que sejam a fonte das ideias essenciais. Acredito nas ideias como energias, vibrações, impulsos ou reflexos que mais têm a ver com a sua sensibilidade perante determinadas situações. Atenção! É preciso estar atento. Não à toa, mesmo obras puramente fantasiosas guardam relação com as experiências que seus autores viveram. Posso citar Tolkien, que transferiu para O Senhor dos Aneis as suas experiências na primeira guerra mundial, embora, dentro do mesmo gênero narrativo, possa citar Martin e a influência que o mero conhecimento da Guerra das Rosas (que ele não vivenciou) teve em O Jogo dos Tronos. Neste caso, percebemos que o conhecimento nos ajuda a construir ideias acessórias, apoiadoras, que enfeitam ou enriquecem nossas estórias. Mas e a ideia fundamental? Digo, o que nos impulsiona de verdade? A razão de tudo? Aquilo que queremos, consciente ou inconscientemente, dizer? Isto só vem se estivermos abertos e atentos para dialogar.
O que estamos abertos, sensíveis, para ver? Por quais portões queremos entrar?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Por dez anos escrevi freneticamente. São mais de 15 obras, dentre os quais romances, livros de contos e de poemas, diversas premiações literárias, e às vezes me pergunto se nesse percurso todo aconteceram melhoras.
Como um nerd que cresceu na décade de 90 e por conhecer as consequências da aventura de se voltar no tempo (como em Flash ou em De Volta para o Futuro), eu não diria nada para o “eu mesmo” lá de trás. Sei as consequências terríveis que isso pode ter, os paradoxos temporais que isso pode causar (risos). Porém, guardo em bom lugar uma frase que minha esposa me disse não faz muito tempo. Nas suas palavras, “Hoje você escreve melhor do que escrevia quando começou. Mas eu prefiro a escrita de antes”.
Deixei assim, vago – mas ao mesmo tempo tão complexo. Não faço questão de responder; de procurar o cerne da questão. Basta refletir, internalizar, sem achar que tudo tem respostas, soluções, motivos racionais, casamentos no capítulo final…
Isto não é tão literário?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho a trauma de ver ideias que tive serem publicadas por outras pessoas, ao longo do mundo, antes de mim. Livros, séries, filmes… coisas que me levam a reforçar a teoria de um mundo das ideias, uma comunicação espiritual ou qualquer plano vibracional que, assim como o vento, se move ao redor do planeta constantemente; leva e traz cheiros, insetos, sementes, sensações; ondas que levam e devolvem garrafas com estórias para contarmos, para perpetuarmos um romance, um acontecimento, uma existência.
Diante de tal reflexão metafísica, transcendental (ou o que muitos podem considerar simples delírio ou neurose) é que respondo às suas últimas questões. Qual livro eu gostaria de ler? Qual livro eu gostaria de escrever?
Alguém, que esteja com os portais abertos, ou sentindo a mesma vibração que eu, haverá de ouvir as “minhas” ideias viajando por aí.