Saulo Dourado é escritor baiano.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo às 6h30, no máximo 7h, mesmo nos dias em que eu não preciso ir de manhã para o colégio (por obrigação de trabalho, não mais por formação, o que, comparativamente, é algum consolo), e defino com minha companheira se o café-da-manhã será cuscuz, inhame ou beiju. Às vezes caminho com ela na orla próxima, da Praia da Paciência ao Largo da Mariquita no Rio Vermelho, às vezes me sento no sofá e me perco em algum grupo de WhatsApp, quando, na verdade, deveria ler as minhas últimas compras da livraria. Estou na entressafra de um livro entregue nesta mesma semana para a editora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acabei de passar pela criação de um romance, o meu primeiro (tenho um par de livros de contos e outro par de juvenis). Foram dois anos de escrita, com cinco tratamentos, três consultas a grandes amigos, duas revisões totais e uma releitura final que quase me rendeu uma estafa. Chama-se O borbulhar do gênio e é um romance histórico… Escrever uma história já ocorrida é ótimo para quem está aprendendo os mecanismos da narrativa longa, pois os fatos estão disponíveis e o estilo é o mais exigido, mas sem poder solucionar apenas pela imaginação, o trabalho se torna um diálogo rigoroso entre realidade e ficção… Não foi fácil. O ritual foi reler, a cada dia da cena a ser escrita, os registros de seu acontecimento na tal realidade, e, como o pintor que pode ver o modelo, transmutar com as tintas próprias aquilo que só a ficção alcança.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não sinto necessidade de me expressar por um texto, sinto necessidade de contar uma história. Posso passar um mês sem me dizer em uma linha, mas quando surge a trama de um conto, é um final de semana inteiro só digitando. Herdei de minha família materna, sangue paraibano, um ímpeto que faz de uma meta de atividade um foco “encutido” (expressão sertaneja) e se teima a fazer até terminar, mesmo contra todos os limites do cansaço. Eu me acostumei com o método para as narrativas curtas, e assim fiz meus dois livros de contos, O autor do leão e O mar e seus descontentes. Quando, porém, fui para o romance, tive uma pane: não seria mais possível terminar logo, e do contrário, não fazer logo ou não fazer intensamente me punha a perder o fio da história. A solução foi aprender, em uma oficina de séries de TV que entrei quase por acaso, os mecanismos de um roteiro longo: compor cenas, sequências, arcos e pontos de virada. Assim o meu lado paraibano ficava satisfeito por cada cena completa, como o todo de uma parte.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu faço o texto em camadas. Com alguma pesquisa eu já emendo uma versão de rascunho, já que, depois, com mais referências, será melhor acrescentar e refazer do que criar do zero. O excesso de pesquisa pode levar a uma insegurança que a composição por tratamentos (mais um ponto para os roteiristas) salva. E por outro lado, mais importante do que a pesquisa, para mim, é ter a intuição correta dos desejos de meu personagem, conhecer ao menos seu problema central, seu caráter e sua tentativa de solução de existência. Diante de uma história, eu me pergunto: qual é o destino trágico desta pessoa (partindo do princípio que toda pessoa tem ao menos um e que não há vida humana sem alguma tragicidade)? A narrativa o fará surgir. Assim que descubro e defino o ponto de vista do narrador, escrevo, mesmo que não reste mais uma palavra desta primeira versão nos meses seguintes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu me pus em um problema: acabo de recriar historicamente a relação entre Ruy Barbosa e Castro Alves, os maiores ícones de meu estado, famosos nacionalmente, a partir do fato de terem os dois convivido por quase uma década em três cidades diferentes como colegas de estudos. Tenho o receio (excitado, é verdade) de brincar com uma tradição e me perder em detalhes, errar linguagens, ênfases, interpretações históricas… A História é cheia de minúcias, como procurar saber se em 1868 já havia iluminação a gás na Rua da Aurora em Recife ou ter certeza que uma palavra era dita naqueles tempos, se uma roupa era usada, etc. Não fiz, neste caso, a imaginação como um fator forte, quis seguir a história tal como a contam. A ficção foi a edição e colagem dos fatos, o alcance do íntimo de cada um dos dois, e por isso como me custou permanecer na verossimilhança e na veracidade a um só baile. Tive ansiedade de terminar e jurei ter terminado pelo menos quatro vezes. Cada amigo me puxou de volta nas quatro vezes, e na quinta vez foi o editor que me puxou ao contrário: está terminado porque imprimiremos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quando termino alguma versão, não quando o texto está em curso. Do contrário, ver que o capítulo 1 está terrivelmente mal escrito emperra a criação do capítulo 2. Assim, escrevo os capítulos na sequência e só depois atuo retrospectivamente e por partes. A exceção vem dos períodos em que as obrigações da vida lá fora me obrigam a um afastamento de criação por dias ou semanas. Eu passo a reler o que já fiz para pegar de volta a atmosfera e reviso.
Terminado um tratamento, em que sempre me iludo ter terminado de vez, envio para o mesmo amigo-escritor que me acompanha desde os 14 anos: Breno Fernandes. É o meu leitor ideal, pois aprecia tanto um bom estilo quanto uma narrativa de intriga. Com O Borbulhar do Gênio, tive a leitura caprichada da amiga Maria Rita Kehl. A partir de um comentário, ela me convenceu a trocar a narrativa de primeira pessoa para terceira pessoa. Reescrevi o livro nessa perspectiva e gostei muito mais. Não adianta, é preciso ter um olhar que veja a história a partir da palavra nua, não da relação entre intenção e palavra, e isto é o leitor. Acreditar que o escritor deve bastar-se é uma bobagem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apenas no computador, sempre, mas uma coisa aprendi: a melhor forma para se revisar um original é imprimi-lo e riscá-lo o máximo possível. Peçam aos neurologistas para explicar, mas sei que há um fato: o olho diante do texto impresso é outro, é tomado por outra vontade de remendar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio tanta ficção quanto não-ficção. História, biografias e filosofia (leitura de ofício) me atiçam especialmente. Na História vejo os enredos ainda não contados, tal como nas biografias gosto de identificar as questões existenciais e quais, inclusive, levaram alguém a seu desfecho, por decisão ou por fatalidade. A filosofia me ajuda a pensar o caráter, o risco de uma escolha, os arquétipos e as metáforas de uma ação. Assim, já me aconteceu de no meio de um tratado duríssimo pensar em um enredo para solucioná-lo ou para tornar um conceito mais visceral. Outro hábito é viver a rotina besta, mesquinha, burocrática, e ter o lado da ficção na cabeça para aguentar uma fila de tabelionato às 13h.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O gosto pela simplicidade da linguagem, a tentativa da clareza como uma virtude, a vontade real de compreender mais o outro do que a mim mesmo, isto é, compor um personagem e não me confessar (e nesta projeção sincera, acabo conhecendo muito mais a mim mesmo). Eu diria para o meu passado: não complique, narre, lembre-se que a literatura é sonho e mito, não falatórios.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Isto é segredo. Superstições da Bahia.