Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP e realizou estudos de pós-doutoramento junto ao Institute of Comparative Law in Africa (ICLA).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho. Para mim, é fundamental acordar cedo. Nem sempre consigo. Mas, sem dúvida, começar o dia tarde me dá uma sensação de fadiga física e ansiedade emocional. Isso atrapalha o rendimento do meu dia e consequentemente a minha escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Rendo bem pela manhã. Quando não consigo, nos finais de semana, costumo escrever até não ter mais forças, madrugada a dentro. Isso não é saudável, pois, como dito antes, o dia seguinte é meio perdido, mas, quando você percebe que as ideias estão lhe chamando e que a escrita está fluindo, é muito difícil parar. Eu não diria ritual, mas, claro, tenho os meus cacoetes. Não gosto de relógio no pulso, nem de barulho que não seja o de alguma música, normalmente clássica (mas nem sempre). Um café sempre cai bem, desde que não haja abuso, para que não me traga dor de cabeça. Deixo o telefone um pouco distante, para, pelo menos, diminuir a facilidade de ceder ao vício de checar mensagens ou ficar conectado às redes sociais. Daí em diante, é se entregar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não há um único dia em que eu não escreva. A não ser em hipóteses muito raras, eu costumo escrever todos os dias. O que muda é a intensidade. Quando, num avião, ou mesmo num parque, ou restaurante, você rabisca algo num caderno, ou deixa anotado uma ideia num celular, você está escrevendo. Eu sou assim. Todos os dias, sem exceção, há algo escrito, de alguma forma, em algum lugar. Isso será resgatado posteriormente, desenvolvido, até chegar a uma forma final. Eu não diria que tenho metas. Mas, para mim, escrita é prática. Sem praticar, você não afia a mente nem as habilidades.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu chamo isso de “arrumar a casa”. Imagine que você comprou toda a mobília e olhou para sua casa e viu aquela quantidade imensa de coisa dentro dela. Nada mais desafiador, e recompensador, do que arrumar a casa. Pensar, olhar, testar, colocar tudo em cada lugar, ir percebendo a harmonia, ir trocando, lidar com as dúvidas, perguntar, mostrar para alguém. Escrever, para mim, é isso. Essas notas, ou mesmo a pesquisa, é a minha mobília. A partir delas eu vou mudando, encaixando, testando até encontrar harmonia. Depois disso, vem a parte mais difícil, que é a forma final. Esse é aquele momento da arrumação da casa que você fica medindo a distância dos controles remotos em cima da mesa, para saber se estão igualmente próximos uns dos outros. É a cereja do bolo. Coisa de gente bitolada mesmo. Sou assim com a forma final dos meus textos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim, a escrita é que me domina, me controla. Ela é quem me governa, não o contrário. Por isso disse antes que não tenho metas diárias. A escrita tem sua velocidade própria, sua forma de interagir com o escritor, seu jeito de ser. Não adianta teimar com ela. Se ela se irritar, ela some. Comigo, funciona na base do sentimento. Sou capaz de procrastinar algo por dias. Fico só nas notinhas, nas anotações, nos rabiscos superficiais. De repente, a escrita te chama. Você sente. E aí, pronto! É uma correnteza irrefreável. Você vai escrevendo e se libertando. Aquilo simplesmente sai. Quando você olha, passa a vista no papel, você tem certeza de que não pode ter feito aquilo sozinho. Por isso eu digo: é a escrita que governa o escritor, não o contrário.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não dá para contar. É coisa de louco. Reviso muitas vezes. Tem um momento que chega a ser ridículo. Você fica trocando preposição e perguntando para a pessoa com quem você troca impressões o que ela achou. A pessoa não nota, e aí você se magoa. É engraçado. Poucos textos meus não contam com a revisão da Rebeca, minha esposa. Só se ela não puder, se for uma coisa que escape ao meu controle. Não sendo assim, ela sempre lê tudo. Ela tem paciência, é criteriosa, não fica revisando a língua somente, ela tenta entender a mensagem, sentir o poder que aquele texto tem. Eu tenho a imensa sorte de ter me apaixonado, e ter me casado, com uma mulher disposta a ler meus textos cujo sobrenome é do ramo: Drummond de Andrade. O “Tio Carlos”, como ela chama, é “tio-bisavô” dela. Então, de alguma forma, é ela a quem eu molesto trocando palavras, pedindo opinião e acordando no meio da madrugada perguntando o que achou do trecho que ela já leu dezenas de vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
100% computador. À mão só algumas notas, ideias e coisas mais iniciais. Raramente, muito raramente, escrevo um texto à mão. Lido bem com o computador. Não tenho dificuldades com isso. Mas sinto mais articulação em computadores fixos do que nos laptops. Não que não consiga escrever um texto num laptop, mas, por alguma razão que não sei explicar, o computador fixo me dá mais articulação na escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu observo o cotidiano. Nada pode ser mais rico do que o cotidiano. Meia hora passando a timeline no facebook é suficiente para explodir de ideias. São muitas as possibilidades. Quando você está num carro, e passa por certo lugar, vem mais ideias. Lendo os jornais, ouvindo as discussões do rádio, conversando com pessoas simples…, é no cotidiano que eu encontro a fonte da minha inspiração. Para mim, os dilemas do dia-a-dia são o ápice da sofisticação em termos de ideias para escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Maturidade. Sem dúvida nenhuma, maturidade. Tem texto meu, escrito na juventude, com 17 ou 18 anos, que eu tenho vergonha de ler. Eu gargalho quando leio. Era muita excitação, muita vontade de ser visto, ser notado. Cada trecho anunciava uma espécie de apocalipse. Tudo com muito adjetivo, muita emoção. Hoje não é mais assim. Não escrevo como se estivesse gritando. Isso mudou. Mudou a escrita, porque mudou o escritor. É interessante esse processo. Se eu pudesse voltar atrás, talvez eu fosse mais cuidadoso com as palavras e as adjetivações. Às vezes você pode machucar as pessoas com o uso de um adjetivo que é claramente inapropriado, mas que você usa tentando, com aquilo, chocar, chamar a atenção. Isso traz arrependimentos e banaliza suas opiniões. Mas, enfim, não carrego isso como um fardo. Era o jovem que eu era. Passou.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever sobre a África do Sul, não só pelo aspecto jurídico, mas a respeito das lições de liderança que tive quando morei lá. São tantas lições, tão sinceras, tão genuínas, tão tocantes, que eu sinceramente preciso dividir com as pessoas. Mas eu ainda não consegui. Mas eu irei conseguir no futuro. Eu queria ler um livro sobre as heroínas e os heróis negros do Brasil. Algo verdadeiro, mostrando suas aflições, suas angústias e como eles superaram suas dificuldades. Queria que fosse um livro autêntico, sincero, que mostrasse todos os negros e negras que engrandeceram a si e a sua gente por meio da reafirmação de sua dignidade em seus atos, suas iniciativas, suas atitudes. Eu não me lembro de ter visto algo assim, tirando um ou outro material mais singelo. Esse seria, sem dúvida, o livro sobre o qual eu me debruçaria.