Sara Tironi é mestra em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
“Mornings are for coffee and contemplation” – diria o Xerife Hopper, personagem de David Harbour na já não tão nova série “Stranger Things”. Isso é essencialmente o que eu procuro em uma rotina matinal saudável: sair da cama e, dentro do possível, reservar tempo suficiente para café e contemplação.
Os motivos para tanto são basicamente dois. Em primeiro lugar, confesso que em algum momento da vida desenvolvi alguma espécie de adição por cafeína (da qual não me orgulho). Assim, se não tomar café na primeira hora do dia, enxaquecas podem aparecer a qualquer minuto (e se não comer algo junto com o café, dou espaço para a gastrite). Em segundo lugar, a prática contemplativa me ajuda a selecionar algumas prioridades para o meu dia e a acalmar minha ansiedade.
Claro que, com a pressa do cotidiano, nem sempre consigo ter o tempo que gostaria para apreciar a primeira refeição do dia, a tranquilidade e o silêncio das manhãs. Verdade seja dita: na maioria das vezes, esse momento se resume a tomar apressada uma caneca cheia de café e a comer umas fatias de pão com geleia. Enquanto isso, alterno meu estado de espírito entre me desesperar por todos problemas que ainda não resolvi e esperar pelo melhor.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na parte da manhã costumo estar mais descansada, com a mente menos agitada e mais predisposta a acreditar que o dia será produtivo. As horas matutinas são, assim, as melhores para qualquer coisa que eu precise ou decida fazer.
Meus rituais de preparação para a escrita consistem básica e sistematicamente em: arrumar minimamente minha escrivaninha, de forma a ao menos esconder a bagunça que restou do dia anterior; encher minha garrafa de água para me manter hidratada enquanto escrevo; colocar ao meu alcance os livros que devo utilizar ao longo do dia, bem como um caderno, canetas e lápis para anotações e fichamentos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu queria muito conseguir escrever um pouco todos os dias. Acredito (e dizem por aí que) é o ideal. No entanto, até o momento, apenas conquistei essa façanha em oportunidades que consigo contar nos dedos. Os fins de semana e algumas noites mal dormidas acabam sendo meus maiores aliados grande parte das vezes. Apesar de ser essa uma dinâmica indesejada e indesejável, foi (e ainda é) impreterível em muitos momentos. Explico.
Meu percurso na academia e minha relação com a pesquisa científica ainda está engatinhando. Essa é uma fase bastante árdua para sistematização de processos de escrita, principalmente quando se é uma estudante brasileira da área de humanas (mais especificamente, de direito). Nesse momento, constantemente precisamos dividir nossa dedicação à pesquisa e à escrita com aulas, leituras e atividades acadêmicas paralelas e mandatórias (para citar o mínimo). Com o tempo, é possível também que surjam compromissos profissionais, uma vez que conseguir financiamento apropriado para que possamos nos devotar integralmente a uma pesquisa em direito tem sido uma missão quase e cada vez mais difícil, infelizmente. E não estou nem considerando a parte (ainda mais significativa) em que precisamos manter relações familiares, sociais, cuidar da saúde física e mental e ainda cumprir as pequenas tarefas do dia a dia (como discutir com as/os colegas de república o rodízio de pessoas para tirar o lixo do banheiro).
Acho importante lembrar (inclusive para mim mesma) que essas circunstâncias existem. Quando estamos dando nossos primeiros passos na pesquisa científica, muitas vezes nos sentimos incompetentes e frustradas(os) por tentarmos seguir padrões e metas irreais para organizarmos nossa produção acadêmica. Existe sempre uma cobrança – explícita ou velada, externa ou interna – para que sejamos produtivos de forma constante. O segredo parece ser sempre “planejar tudo direitinho, não acumular tarefas e, principalmente, não deixar nada para a última hora”. Talvez o segredo até seja esse mesmo. Mas a real é que, nessa fase, frequentemente dá para ser tudo, menos suficientemente sistemática(o) para escrever um pouco todos os dias.
Nesse cenário, costumo pensar que aceitar essa realidade, além de ser uma condescendência necessária comigo mesma, é também parte do processo produtivo. Perco menos tempo me culpando por todos os dias em que não escrevo e aproveito melhor os minutos que surgem livres. Sigo desejando e me esforçando para não sacrificar tantos finais de semana (ou tanto tempo dos meus finais de semana). Mas enquanto esse dia não chega, vou aceitando que escrever em períodos concentrados é o que temos para hoje.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depois de ter uma ideia mais ou menos genérica sobre o que pretendo escrever, sempre procuro conversar com professoras, professores e/ou colegas para discutir a viabilidade da discussão que pretendo propor e receber sugestões de material bibliográfico pertinente.
Durante a leitura do material levantado, vou fazendo notas e fichamentos até conseguir estabelecer um recorte temático mais específico e ter em mente a estrutura do texto que pretendo produzir. Ao longo desse trajeto, continuo mantendo contato com outras pessoas e compartilhando com elas minhas reflexões. Gosto de verificar constantemente se meu raciocínio faz sentido para mais alguém além de mim mesma. Ademais, receber críticas e sugestões no decorrer de todo o processo de escrita é sempre útil e necessário.
Compiladas as notas e fichamentos, tento elaborar a estrutura do texto. Dou títulos provisórios aos principais itens e subitens já em sua ordem, da introdução até as considerações finais. Dentro de cada subparte, também busco esboçar o que quero escrever em cada parágrafo, com frases bem simples e sem qualquer maior elaboração. Apenas transcrevo meus pensamentos na ordem em que vão fluindo, conectando cada ideia às suas respectivas referências.
Esse processo me auxilia bastante com as travas de escrita (já avançando para a próxima pergunta). Uma vez que as ideias estão assentadas no documento eletrônico, posso me movimentar de um item para o outro sem necessariamente seguir de forma ordenada sua distribuição. Assim, se eu travo em um tópico, posso tentar desenvolver o seguinte sem grandes prejuízos à coerência e à coesão do trabalho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sobre as travas de escrita, respondi no item anterior.
No que diz respeito a como eu lido com a procrastinação, já adianto: lido mal. Mas em meu contínuo processo de melhorar nesse aspecto, tenho tentado primeiramente entender o que realmente devo considerar como procrastinação. Muitas vezes quando estou debruçada em uma produção acadêmica, em qualquer de suas fases, perco meus parâmetros de períodos de trabalho e acredito que preciso ler e escrever durante todas as horas possíveis. Mas descansos também são importantes e delimitar momentos para tanto me ajudam a manter o foco na escrita no âmbito do tempo reservado para ela.
Já em relação a como eu lido com o medo de não corresponder às expectativas e à ansiedade de trabalhar em projetos longos, a primeira coisa que tenho a dizer é que, durante algum tempo, lidei com essas questões com o auxílio de uma psicóloga. O ambiente acadêmico pode ser altamente estressante e acarretar quadros de depressão ou ansiedade (ou ao menos cooperar com quadros pré-existentes), ainda que funcionais. Isso tem sido questionado e demonstrado nacional e internacionalmente por diferentes estudos empíricos nas áreas de medicina e psicologia. Aos poucos, esse tema vem deixando de ser um tabu, mas, mesmo assim, ainda somos muito resistentes à possibilidade de procurar ajuda profissional para lidar com os sentimentos de incapacidade, frustração, ansiedade, síndrome do impostor, falta de motivação e tantos outros. Tendo em conta essa questão, muitas universidades já estão incrementando seus programas de atendimento à saúde mental das(os) estudantes. Mas tão importante quanto melhorar o acesso é ampliar a conscientização de que buscar ajuda profissional é necessário e não há nenhuma vergonha nisso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre reviso algumas vezes um texto logo após terminá-lo. Sempre que possível, reviso novamente alguns dias depois, quando minha leitura está menos viciada. Ainda, se o prazo me permite, encaminho essa primeira versão final às professoras, professores ou colegas com quem tenho discutido o tema desde o início do trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia tem melhorado significativamente. Eu costumava ser mais apegada a materiais impressos e a papéis. Agora, principalmente por razões de logística (e também de consciência ambiental), tenho buscado utilizar cada vez mais arquivos eletrônicos e compor meus rascunhos diretamente no computador. Mas ainda faço a maior parte das minhas notas e fichamentos à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos contextos em que me encontro. Nos momentos em que estive (como estou agora) ligada a um programa de ensino, os materiais de leitura propostos no curso são meu maior incentivo para pensar criticamente sobre questões do dia a dia, das quais tomo conhecimento em ambientes de trabalho ou mesmo em situações familiares e pessoais. Minhas principais inquietações em relação ao direito à educação e aos direitos da infância, por exemplo, começaram por conta da minha convivência com o meu irmão mais novo, o Gi, que então não tinha nem dez anos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua dissertação?
Ainda que essa entrevista não seja um bom exemplo disso, juro que estou ficando mais concisa e objetiva. Se pudesse voltar à escrita da minha tese, eu diria a mim mesma: “querida Sara, favor usar menos palavras e sentenças mais curtas no seu processo de exposição do necessário”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há algum tempo penso que gostaria de unir meu principal passatempo (que é desenhar) à minha produção escrita. Essa ideia não é inovadora. Recentemente, Nick Sousanis elaborou sua tese de doutorado em educação, na Universidade de Columbia, no formato de HQ. Intitulada “Unflattening” (“Desaplanar”, na versão brasileira), seu trabalho discutiu justamente sobre a importância do pensamento visual no processo de ensino e aprendizagem. No Brasil, André Toral, já em 1999, já havia produzido a HQ “Adeus chamego brasileiro: uma história da guerra do Paraguai” a partir de sua tese de doutorado apresentada no Departamento de História da Universidade de São Paulo. Seria ótimo ver no meio acadêmico mais iniciativas como essas, que exploram e valorizam diferentes formas de comunicação, divulgação e apreensão de conteúdo.