Sara Albuquerque é escritora, autora de sete centímetros de língua (Patuá, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pela manhã, como geralmente estou sozinha, gosto de preparar e apreciar o café da manhã, sempre assistindo a algum vídeo de literatura, filosofia, psicanálise, estudos feministas e afins. Em especial, estou sempre atenta aos canais da Casa do Saber, da Casa Bondelê, do Literatamy, do Sobre elas e do TEDx, todos na plataforma youtube. Após, sempre relembro o que pretendo fazer durante o dia (listinha que provavelmente organizei no dia anterior). A primeira coisa, antes de começar a ler/escrever, é responder aos e-mails e mensagens pendentes nas redes sociais.
Depois de vinte e sete anos convivendo comigo, percebi que funciono muito melhor me estabelecendo prazos e listas de afazeres, no que diz respeito aos meus compromissos profissionais. Tenho um arquivo no computador que se chama “agenda” (infelizmente, por questões relacionadas à saúde, tenho dificuldade de escrever à mão). Nela, colaciono todos os concursos literários que pretendo participar, os prazos para envio de textos para revistas acadêmicas ou de criação literária, as tarefas domésticas, as leituras do mês, enfim. Sinto uma satisfação orgástica em ir riscando os afazeres cumpridos. Pode parecer chato para alguns. Para mim, no entanto, foi o mecanismo que encontrei para dar conta de tantas coisas da labuta diária, principalmente porque trabalho em muitos projetos paralelos ao mesmo tempo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nos dias em que não tenho aula ou outro compromisso laboral, prefiro começar a escrever no período da manhã. Mas atentem que escolho o verbo “começar”, pois tenho a impressão que as horas matinais são mais aceleradas e nunca consigo concluir o que me proponho. Talvez, isso aconteça em virtude de que me demoro a engatar no processo mais fluido da escrita. Geralmente, preciso reler os parágrafos anteriores (às vezes, o capítulo inteiro anterior) para dar continuidade a narrativa. Nesta releitura, o olhar revisor é constante, de forma que dedico ainda mais tempo nessa revisitação. Nos dias em que começo de manhã, percebo que os horários mais produtivos são das 14h às 18h.
Acredito que tenho, sim, um certo ritual de preparação: 1) coloco sempre (sempre!) o celular no “modo avião” (caso não o faça, as redes sociais e as constantes notificações dos aplicativos me dispersam); 2) possuo sempre um copo de água à disposição na escrivaninha (bebo muita, muita água, durante o processo); 3) deixo ao alcance da mão meu dicionário analógico impresso (o atual é da Lexicon, do Francisco Ferreira de Santos Azevedo), meu moleskine e alguns post its, para anotar algum lembrete ou ideia-para-maturar-depois que, porventura, tenha me surgido durante a escritura; 4) abro o dicionário eletrônico Houaiss de Língua portuguesa, no computador (bastante prático e rápido); 5) confiro o acesso à internet, pois costumo fazer muita pesquisa virtual, concomitante ao processo de escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo poemas quase diariamente, em especial antes de dormir, no bloco de notas de celular. Esses poemas revelam muito das minhas reflexões cotidianas e das circunstâncias sociais e políticas em que estou inserida. São pensamentos mais urgentes, que precisam, de alguma maneira, ser colocados para fora o mais rápido possível. A poesia tem se mostrado como a melhor forma.
Quanto à prosa, meu gênero favorito é o conto. Geralmente, depois de pesquisar sobre o assunto, todo o processo (escrever+revisar+revisar+revisar+revisar) leva meses. Tem contos meus que demoraram anos para virem a ser publicados, a exemplo do “Inocência”, escrito durante o Laboratório SESC de Literatura, em 2015, e publicado somente em agosto de 2018, na Revista Estação Literária. Mas não escrevo todos os dias. Às vezes, devido às outras atribuições, não sobra disposição. Procuro, no entanto, manter-me sempre escrevendo durante a semana (poemas ou prosa), principalmente quando trabalho com narrativas mais longas (como novelas ou roteiros de animação infantil), pois corro o risco de perder o ritmo da história, caso a deixe de molho por muito tempo.
Sobre as metas de escrita (como quantidade de páginas por dia), eu as costumo me propor, mas de modo bem flexível. Afinal, o objetivo da proposição é impulsionar o movimento da escrita, e não me frustrar por não ter conseguido atingi-la. No início da minha primeira novela “Tina”, propus-me a escrever três páginas por dia. Não alcancei e mudei para duas. Depois de um tempo, passei a escrever três a quatro, sem precisar me estipular um número previamente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu me demoro em todo o processo. Faço muitas conexões de imagens e palavras, ainda no campo do pensamento, antes de efetivamente escrever no computador. Demoro, primeiro, na escolha da narradora mais adequada àquela narrativa, se primeira ou terceira pessoa, se intrusa, qual seu nível de imersão junto à personagem central (se houver), qual sua estrutura frasal e linguagem mais apropriada, dentre tantas outras questões. Em regra, este dispêndio de tempo, logo de início, me evita de modificar a narradora lá na frente, quando do texto já parcial ou totalmente escrito, embora eu não hesite em proceder com viscerais mudanças caso perceba, apenas depois, que a história ficaria melhor contada, sob outro olhar.
Demoro muito também na construção dos períodos e parágrafos como um todo. A primeira frase, principalmente. Sinto que das vezes em que, depois de sequentes lapidações, escrevi uma primeira frase “bem acabada”, o resto do texto escorre com mais leveza. Talvez seja só impressão, também. Porque, em todo o processo, me observo perfeccionista, insegura e autocrítica, quem sabe, em excesso. Isso não me paralisa os dedos. Mas, com certeza, me impede um fluxo de escrita mais célere, o que, antes, já enxerguei como sendo um “problema”. Hoje, não mais, é o meu mecanismo. Aprendi a me respeitar.
Outra coisa que concluí decorrente da escritura da minha primeira novela (“Tina”) é que, por mais pesquisa que tenhamos feito, nunca teremos compendiado tudo, lido tudo, detalhado tudo. E que bom. Escrever é um constante desafio de conhecer mais, buscar mais, escavar mais. Eu gosto. Para alguns, isso é angustiante. Já fui testemunha de depoimentos de colegas escritores que comentam estar paralisados na escrita, pois ainda não se sentem “preparados o suficiente”, seja porque acham que devem ler isso e aquilo, ou estudar isso e aquilo, antes de colocar a mão na massa. De certo, cada caso é um caso. Às vezes, é mesmo necessário mais pesquisa e conhecimento de conteúdo essenciais para o desenvolvimento da história e, nesse caso, sem aqueles, empacamos. Mas, em muitos, o que vejo é uma vontade incessante de querer saber “tudo de tudo” o qual julga imprescindível para a escrita, e aí não se autorizam a dar sequer o pontapé inicial. A meu ver, um esforço pouco produtivo. Muitas das intuições, das novas ideias criativas, das pedras no caminho da escrita só serão percebidas durante a escritura. E a pesquisa faz parte da escrita, do próprio processo de caminhar.
Com isso, friso, não quero dizer que a pesquisa prévia é desnecessária. Pelo contrário. Só me arrisco a escrever aquilo sobre o qual tenho conhecimento e, para isso, estudo muito. E a pesquisa não se restringe à seara dos livros (embora, hoje, seja a principal), mas, sim, ao que for necessário. Às vezes, é preciso viajar, literalmente. Às vezes, é preciso vivenciar a partir do próprio corpo. Pelo menos, é assim que me percebo. Por exemplo, para construir uma personagem que fazia teatro, na novela “Tina”, eu mesma entrei num Laboratório de Artes cênicas e criei um diário onde anotei todas as aulas, o que me serviu de adubo na descrição das cenas, na narrativa ficcional.
Sobre isso, inclusive, tenho mantido um outro diário (de criação), onde anoto todas as peculiaridades do processo de escrita (ideias novas, leituras convergentes, mudanças ao longo da jornada, como nome de personagem ou conflitos externos etc). Como sinto essa necessidade de organização, o diário, com certeza, se faz como suporte de todo o caos criativo, ajudando-me a visualizar melhor toda a história. Fora isso, é uma forma de guardar a genética de toda uma criação, um espaço para me autoconhecer enquanto escritora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Engraçado isso. Mas eu pouco procrastino para escrever. Da vez que me percebi o fazendo, compreendi que era por causa do medo de colocar o ponto final na minha primeira novela (“Tina”), antes de recomeçar todo o processo de revisão. Estava há quase dois anos envolvida pela narrativa e sabia que faltavam poucos capítulos para o fim. Neste momento, adiei o quanto pude a sensação de luto.
Acho que lido com a ansiedade escrevendo (para terem uma ideia, escrevi um livro inteiro decorrente de um período de meses em depressão profunda). Escrever é minha forma de colocar as inquietações para fora. A arte, de maneira geral, é o que me salva dos meus demônios.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes. Reviso, inclusive, durante o processo de escrita. Sou destas escritoras que só conseguem ir adiante no parágrafo seguinte, depois de terem lapidado seguidas vezes o parágrafo anterior.
Os poemas, não costumo mostrar a terceiros, antes da publicação. Mas as prosas, sim. Elegi minha irmã e meu esposo como meus “leitores particulares” (para usar a expressão que Cecília Salles traz no livro “Gesto inacabado”). Mais recentemente, tenho também alguns amigos escritores com quem troco materiais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho diários pessoais desde os meus dez anos de idade (2001). No entanto, em 2011, fui diagnosticada com uma doença neurológica, chamada “síndrome/câimbra do escritor” (irônico, não é mesmo?). Trata-se de uma distonia focal que dificulta os movimentos de pinça das mãos (a exemplo de segurar a caneta para escrever). Desde então, como é uma doença degenerativa, passei a trocar tudo pelo computador, com o objetivo de retardar seu avanço. Por já me encontrar numa fase em que sinto muitas dores/espasmos ao digitar muito, adicionei a aba “dictate” ao meu word, o que me possibilita ditar o texto em português. Ainda não o uso muito. Terei que passar por um processo de readaptação mais lento e paciente. A verdade é que, no final das contas, a tecnologia, para mim, é uma forma de acessibilidade. Sinto-me feliz em ter nascido numa época com estas possibilidades.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Concordo com a escritora Noemi Jaffe quando ela enuncia, como um dos princípios da escrita ficcional, que “são as palavras que conduzem as ideias, não o contrário”. Nesse caso, a conhecida “inspiração”, embora tenha uma parte de mistério, nasce a partir da disponibilidade do escritor, do estar aberto para perceber e criar. Deste modo, sim, percebo que minhas ideias e seus desencadeamentos surgem a partir da observação, em seu sentido mais amplo. Observar enquanto lê, caminha, conversa, come, caga, toma banho. Procuro me manter atenta aos detalhes.
Para me manter criativa, além de ler muito, penso que o audiovisual (filmes e séries, atualmente) é uma fonte direta para minhas criações. Por exemplo, ontem mesmo, assisti a um filme, no cinema, chamado “As herdeiras” (de Marcelo Martinessi), onde há uma cena em que uma personagem arranca um adesivo de “vende-se” do vidro do carro. Na mesma hora, pensei “vou escrever uma cena onde uma personagem retira um adesivo de algum lugar”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria “calma, Sara, não se apresse com a publicação dos seus escritos”. Antes, eu sentia muita ansiedade de publicar tudo que escrevia, mesmo que apenas nas redes sociais ou no blog. Mas cada texto exige um tempo de maturação diferente. Tenho textos publicados (de um passado mais distante), os quais acho ainda muito verdinhos e pouco refletidos. Além disso, estão espalhados por um monte de revistas e antologias diferentes, aos quais poucos leitores tiveram possibilidade de acesso. Quem sabe, um dia, eu resolva reunir estes contos num livro apenas, editados e revisados por uma Sara mais crítica, mais consciente de seu papel enquanto escritora no mundo.
Acho que, agora, sou menos ansiosa (hahaha, que estranho escrever esta frase, mas é real). Pelo menos, quanto à publicação. Eu só escrevo e vou deixando ali, sem tanta pressa de imediata leitura por outros.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma história de literatura fantástica na cabeça, a qual nunca sentei para escrever. Sempre surgem novos projetos, a meu ver, mais próximos da minha necessidade atual de falar sobre. Mas acredito no poder da literatura fantástica para aproximar os leitores e fazê-los refletir sobre temáticas que, no campo do real, sempre parecem muito “difíceis” de serem tratadas.
Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe, não consigo chegar a uma resposta. O que posso dizer é que sentia falta de livros (embora não tivesse muita consciência disso), onde as personagens mulheres fossem representadas em sua diversidade, retratadas longe de estereótipos e rótulos machistas; em que essas mesmas mulheres não fossem sempre levadas a vivenciar tragédias por irem de encontro às regras opressoras da sociedade. E isso é tão importante. Queria eu, na infância e adolescência, ter lido estas outras histórias fora do padrão mulher-delicada-princesa-à-espera-do-príncipe, pois, infelizmente, estas últimas moldaram muito do meu jeito de ser durante anos, legitimando um comportamento de passividade e subalternidade, como sendo o mais “correto”, em termos de possibilidades de existência.
Hoje, tenho não só tido a oportunidade de ver várias escritoras contemporâneas construindo narrativas sob outras perspectivas, como ter acesso a escritoras do passado (silenciadas e apagadas da história, por décadas) que já também escreviam nessa mesma linha. Tem muita coisa boa para ser lida ainda. Quem me dera ter tempo o suficiente para dar conta de tudo.