Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista, editor do Flash Fiction e autor de Na Eternidade Sempre é Domingo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo sempre que possível bem cedo e uma das primeiras coisas que faço é preparar uma garrafa de água com gelo e a erva de tereré na cuia. Se fico em casa, é uma certeza cristalina; se saio, dependendo de para onde vou, levo o teris junto. Só consigo comer algumas horas depois de acordar. Esse primeiro momento, ainda relativamente intocado pelas interrupções frequentes do dia, em especial no que tange às notificações de e-mail, WhatsApp, Messenger, etc., é o momento de maior clareza, que favorece o maior foco. Já vi gente que demora a esquentar o motor; eu fico lesado no período da tarde. Ajuda que moro numa cidade extremamente quente, Cuiabá, e o calorão amolece mesmo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Descobri com o tempo que sou uma pessoa que produz mais e melhor pela manhã. Quanto mais cedo melhor. Fiz umas experiências de acordar quatro da matina pra prevenir qualquer interrupção e seguir manhã adentro até o almoço. Pena que não virou regra. Uma manhã inteira ou quase inteira dedicada à escrita me soa um trunfo. Mas nem sempre isso é possível e já acabei escrevendo à tarde, à noite, de madrugada, numas horas espremidas entre afazeres; o deadline é bom pra acabar com a acomodação. Isso varia também de acordo com o fluxo de trabalho (no meu trabalho regular, de alguns anos já, com contabilidade, tenho horários flexíveis, o que ajuda) e eventuais frilas na área da literatura. De ritual, só mesmo o tereré. O silêncio é ideal, mas já me vi obrigado a ouvir música (instrumental) pra tapar algum ruído ou conversa. Mandei fazer uma mesa mais alta que privilegia minha altura, e é onde prefiro escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente, em períodos concentrados. Mas depende do projeto. Enquanto escrevia meu primeiro livro publicado, o Na Eternidade Sempre é Domingo, mantive uma rotina bem inescrupulosa de horário, por exemplo. Semana passada terminei um conto de seis mil palavras que exigiu bastante pesquisa, e que devido ao deadline estourado me tomou dezenas de horas de dedicação numa única semana, jogando pra frente outros compromissos. Já nessa semana tive que recuperar os compromissos e não escrevi nada de ficção. No futuro próximo pretendo me dedicar a um romance ainda nos estágios iniciais, e isso deve me colocar numa rotina bem mais exigente e diária, ainda que equilibrada com outros afazeres, já que o romance é mesmo uma criatura de intimidade.
Quanto a metas de produção, quando não estou apenas no estágio de pesquisa (se necessária) pruma história, ou de revisão, e sim de primeira escrita, costumo estipular um mínimo de mil a duas mil palavras, dependendo do tempo que tenho disponível (prum meio-período, cerca de quatro horas, duas mil me parece um bom mínimo). Na revisão isso fica mais difícil de quantificar, mas sem dúvida gasto mais tempo revisando qualquer coisa que escrevendo. O processo de lapidação é bastante cruel, e no meu caso consiste mais em cortar e alterar. Dificilmente adiciono material novo ao primeiro draft de algo nas revisões.
Claro que isso também varia de acordo com o gênero. Pros minicontos que publico no Flash Fiction há mais de cinco anos, e que se situam entre trezentas e mil palavras, costumo fazer uma primeira versão e algumas revisões em até duas horas, e guardar por alguns dias para revisar mais algumas vezes antes da publicação no site. Isso me dá uma média de três horas em cima de cada texto. Mas isso varia. Alguns levaram mais tempo, outros nasceram fragmentados, etc. Mas pruma média, seria isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No Flash, normalmente tenho só um lampejo. É uma imagem, um personagem, uma fala, um conceito. Escrevo o primeiro parágrafo sem saber como vem o segundo, e raramente sei o final antes de chegar muito perto dele. É o clássico discovery writing. É vantajoso, do ponto de vista da brevidade, porque permite a elipse de muitos detalhes que faltariam num conto maior e não faltam no mini, já que ele pode ser e é melhor que seja apenas um recorte de um mundo não totalmente formado, não totalmente descrito, um mergulho numa ambientação mais sustentada pela sensação de atravessamento que pela da permanência. Não lembro de ter feito pesquisa prum flash; lembro de ter feito pesquisa pra outras histórias maiores e usado parte dessa pesquisa pra fazer um flash imprevisto.
Pra contos maiores, paro pra delinear o que pretendo fazer. Venho da literatura especulativa (fantasia e FC) e não nego a importância que lego ao enredo no meu trabalho. Mas em primeiro lugar vem a construção do personagem, ou dos personagens. Quem é, de onde vem, traumas e desejos, sua voz. Tenho focado em fazer uma minibio de cada um, testar sua voz em um pequeno trecho ou relato isolado. Definidos os personagens e conceitos, passo a fazer o escalonamento, um esqueleto inicial, de alguns pontos importantes (nunca o final). Escrevo uma cena, paro, reviso, volto pro esqueleto, releio, altero, faço pesquisa, altero um monte de coisas. Faço outra cena. Volto pra primeira, apago, descarto. E assim vou indo.
Ao longo desse caminho posso ter crises de direcionamento ou de resolução de algo espinhoso no plot, e nesses casos abro um arquivo à parte de terapia intensiva. Estabeleço os elementos concretos, já definidos. Elenco as dúvidas. Vou me convencendo do que cola, do que não cola; vira um diário de brainstorming bem fajuto, mas no fim das contas as coisas se conectam, as pontas se fecham, passo a voltar e reler e alterar no original e na sequência risco esse documento conforme as ideias são usadas ou descartadas ou alteradas. Cada história é uma exploração bastante particular. Juntando, esses documentos soltos de testes, bios e brainstorming costumam ser bem mais gordos do que o próprio texto.
Também tenho um tique: não comento nada da história com ninguém antes de terminá-la. Se crucial por algum motivo, dou as linhas gerais, mas mesmo isso periga já afetar meu tesão. Quanto menos delimitada a narrativa na minha cabeça antes de se delimitar em seu formato próprio, melhor. Definir é como tolher um universo rico de possibilidades, e prestar uma versão fajuta e piorada (porque radicalmente lógica e desprovida das sensibilidades do texto escrito) de algo que às vezes só impressiona mesmo pela espécie de beleza subjetiva que se constrói na minha cabeça. Eventualmente terei que reduzir isso a algo palpável e lógico, e uma frustração decorrente da inabilidade de transferir essa riqueza pode surgir; mas que isso seja feito direto no texto, e não antes, principalmente numa conversa, onde não nego ser bem menos capaz de desenhar uma narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca tive bloqueio. Tenho, às vezes, longos períodos de confabulação e de pesquisa, afastado da produção ficcional em si. Mas se decido fazer, consigo, ainda que nem sempre o resultado me agrade. Jogo muita coisa fora. Já a procrastinação é um grande problema. E eu sou, pro meu azar, um freak de organização. Minha mesa tem que estar sempre ajeitada. A louça na pia lavada. Se sei que preciso postar algo nos correios pela manhã e vou escrever pela manhã, sempre quero resolver essa coisa antes e deixar tudo ajeitado pro período de produção, que acaba remanejado pro fim dessa janela, agora encolhido, minado do tesão que é começar com a coisa de uma vez. Isso me atrapalha muito.
Também sou refém da santa dúbia dos escritores: a internet. Semana passada mesmo eu tava pesquisando o que é que os indígenas guatós bebiam tradicionalmente em seus aterrados (resposta: a chicha da seiva de acuri) e acabei num fórum gringo pesquisando que edições tavam reunidas no último encadernado do BPRD, a wishlist da Amazon piscando noutra aba, mais umas três páginas da Wikipedia abrindo e relinkando e… Ou seja. Autocontrole e foco são essenciais. Celular no silencioso mais ainda, melhor se tiver noutro cômodo da casa. Aliás, produzir fora de casa, num lugar como um escritório, em que esse é o único objetivo, é a melhor coisa, com a chance de distração drasticamente reduzida. Já tive oportunidade e se pudesse só escreveria assim.
O medo de não corresponder às expectativas: bem, é a vida. Me alegro com o fato de ler textos antigos meus e ver que são bostas fumegantes e os mais recentes nem tanto. Saber que vamos melhorando com o tempo é um alento. Ansiedade com projetos longos: não tenho, adoro os desgramados. Tenho receio é de entrar em furada, e isso costuma envolver projetos coletivos, que carecem do esforço e comprometimento de outras pessoas. Um projeto literário solo, que é só teu, que nasce duma vontade genuína tua, não corre o risco de fracassar. Você pode não conseguir terminar, nunca publicar, nem chegar com ele onde queria, mas pelo menos isso serve de oficina, de experiência naquilo que você achou, na época, que era a melhor coisa a se fazer. E isso faz parte, pra mim não é desperdício algum.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso trocentas vezes. O mot juste é um fdp temperamental. Muitos já disseram que um texto nunca tá pronto; ele é abandonado. Concordo. Enquanto houver brecha de deadline, haverá revisão. Reviso o texto completo em voz alta pelo menos uma vez também, pra sentir o ritmo. E sempre, sempre procuro leituras alheias antes de bater o martelo, depois das muitas revisões mas antes da última. Num mundo ideal, em todo projeto e livro haveria um editor experiente e massacrante atrelado, mas não costuma ser o caso no mundo da literatura independente brasileira, por falta de dinheiro, tempo e uma série de circunstâncias.
Prezo demais o olho do leitor experiente, o que não escreve, mas lê com frequência (que aponta generalidades e sensações que, como diz o Neil Gaiman, costumam ser mais importantes que as identificações exatas de supostos erros), assim como o de escritores amigos, que sempre atuam num regime de massacre mesmo, que é a única coisa que presta. Tapinha nas costas é um vacilo. Também já contratei leitura crítica.
Considero essa troca de impressões sempre benéfica porque ficamos perdidos no nosso próprio castelo e não notamos mais suas sujeiras e buracos. Não tenho preciosismo de encarar minha literatura como algo que não é exclusivamente meu, sagrado, intocável depois que evapora dos dedos, acima das demandas do mercado e das impurezas da vontade alheia. Uma das minhas escritoras preferidas, a Kelly Link, já disse em entrevistas que as ideias dela não raro vem de convites como “Kelly, tô fazendo uma antologia de contos de dragões. Faz um aí, belê?” e pronto, nasce dessa demanda. A história é toda dela, mas foi instada por essa fonte externa, não raro uma fonte pagante, no caso, o que é melhor ainda. Ao mesmo tempo, depois de receber o input e deixar o texto pronto pra publicação, uma vez publicado (em papel ou não) e circulado, aí via de regra já me desligo das pirações balzaquianas de reescrever aquilo, perco a força, o tesão, a pulsão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Computador, sempre. Acho escrever à mão um porre, lento pra cacilda, e isso ficou mais circunscrito à época de escola. Só faço se não tiver outro jeito. Ando com meus cadernos, blocos, anotações de celular, e servem pruma ideia solta, um teste de voz, uma conjectura. Nunca pro texto de fato. Mexo, corto, recorto, reatravesso tanto que acho perda de tempo não fazer direto no notebook. Quando comecei a escrever pensando que era pra valer, digamos assim, lá pelos 12 anos, usava uma velha máquina de escrever da minha mãe. Aí depois redigitava tudo no computador. Santa paciência…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que escritor é a criatura que mais ouve essa pergunta. E a resposta nunca é exata, certa, e é dificilmente a mesma pra pessoa em diferentes períodos. Porque ela é movediça tal qual o processo de escrita. É meio que num lamaçal difícil de mapear que nasce qualquer história. Uma resposta clichê que mais se aproxima creio que seja: de tudo. Das impressões colhidas ao longo da vida, da sombra dum gato que te assustou quando você tinha três anos ao mosquito que você viu morto na janela da lanchonete enquanto pescava uma cebola caída do sanduíche na travessa suja do balcão. Das leituras e dos filmes e das peças de teatro, do jeito de falar da sua mãe, e do peido que sua tia soltava dormindo. Tudo pode virar história, e inspirar de forma consciente – ou inconsciente.
Quanto aos hábitos pra se manter criativo, penso que o criador artístico desenvolve uma habilidade tal qual um instinto animal. Me refiro a algo que vai além da óbvia fruição em número considerável de outras obras de arte de variados nichos e formatos que formam um grande repositório referencial (há uma grande escritora que não seja uma leitora voraz, por exemplo?) pra ser canibalizado. Me refiro a uma predisposição de se manter aberto às impressões da vida. Nem todo escritor tem a verve, mais comum no campo jornalístico, de se meter a experimentar outra vida ou outras vidas como fez o Gay Talese; muitos não saem do conforto da sua rotina, de seu círculo de amigos de sempre e da família, de seus empregos inglórios e dos cafundós que apelam à sua estima; mas mesmo esses universos contidos são sempre plurais e únicos, e o jeito de falar de um, as histórias de outro, a ritualística da vida em seus detalhes, acima dos conflitos explosivos e visíveis pra todos, é que instituem, creio, essa matéria prima que vira arte; é essa habilidade que te faz ler como ninguém o jeito que teu avô segura o cigarro entre os dedos, e o jeito que ele puxa aquele filtro com o beiço espremido e solta a fumaça piscando devagar, e ninguém mais percebe com tanta clareza que é justo nesse momento que ele não consegue esconder que ama viver, por mais que diga sempre o contrário, e que te faz traduzir essa sensação num personagem que não é ele mas também é ele.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho certeza que vai mudar demais ainda. Mas já aprendi, no tempo que faço o que faço, que bater a cabeça sempre no mesmo lugar é bobeira. Então certas coisas que aprendi lentamente, hoje sei os atalhos. Pressinto que uma cena não vai funcionar na 1ª pessoa depois de alguns parágrafos, não lá no meio; sei que a pesquisa não é suficiente pra ambientação que tô planejando; que um personagem não tem voz e não vai segurar um conto; que uma história simplesmente não tem coração que a bombeie e tem que ser jogada fora o quanto antes, substituída pela mesma história com outra roupagem. O funcional, o físico, o laboral, isso não muda. Muda que você vai apodrecendo e precisa investir em cadeiras melhores.
Não diria nada ao meu eu jovem, que escrevia lá atrás. Acho que ele cumpriu o papel dele, fez os erros que precisou fazer, e acertou pouco mas acertou o suficiente pra eu que chegasse aqui. Gostaria de me aconselhar hoje em dia mesmo: “senta e escreve, desgraçado, para de enrolar”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos. Acho que o legítimo artista sempre vai ter ideias de projetos de sobra, e vai morrer com alguns enfiados na garganta. A dificuldade é saber em qual a gente vai investir alguns anos, porque esses anos não voltam. Podemos errar, claro, mas é bom acertar de vez em quando. São tantos os livros que eu quero ler que já existem que se pensar nos que não existem posso ter um piripaque. No além-vida, me sentarei na biblioteca do Sonhar pra ler o que os meus escritores preferidos não realizaram em vida; aqui, me contento com o que já fizeram.