Samuel Malentacchi é poeta e psicanalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
sim, tenho. mas há variações no tema. (risos) geralmente, acordo cedo, no início da manhã, alimento meus gatos, passo um café e assisto ao jornal. depois leio. gosto de ler logo cedo. quando estava nos meus anos de formação em psicanálise, preferia ler e estudar pela madrugada. hoje não tenho mais esse pique. a rotina diária de trabalho e a idade batem fundo. tenho aceitado melhor meus limites.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
então, essa resposta seria um desdobramento da anterior. ler e escrever são experiências bem diferentes, mas paradoxalmente se encontram em mim. ao menos me faz sentido assim. já tive momentos, principalmente quando comecei a escrever poesia, na adolescência, em que não havia nenhum ritual ou hora pra isso. simplesmente vinha e era caótico. gostava de escrever de noite, de madrugada, quando aquela “ânsia análoga à ânsia”, como escreveu Augusto dos Anjos, machucava as ideias. não ter um ritual era um tipo de ritual, na verdade. uma predileção específica me acontecia com mais frequência: gostava muito de parar em algum boteco podre do bairro, beber rabo-de-galo e escrever ou ler. anotava ideias, trechos de versos que me ocorriam, pedaços de conversas que escutava, cenas de tretas ou então passava horas lendo, até fechar o lugar.
hoje em dia as coisas mudaram. veio a psicanálise, os anos de formação, especialização e, com isso, o trabalho no consultório. não parei de escrever poesia. pelo contrário. produzo mais e, se me permito dizer, melhor. estou mais inteiro naquilo que faço. fui me adaptando às necessidades que a profissão exige e descobri esse prazer: escrever pela manhã. funciono absolutamente melhor dessa forma. foi grata surpresa! geralmente depois do café, eu trabalho nos meus textos. mas há uma clara divisão no processo: ideias para poemas, contos, frases que a intuição me diz que serão utilizadas (ou seja, me permito um diálogo com menos resistência entre meu eu e meu inconsciente), os “esqueletos” de textos mais formais ou acadêmicos, continuo tendo caoticamente, mas anoto, compreendo, tento reter mentalmente e guardo. escrevo mesmo nas manhãs. claro que não é nada tão rígido ou sistemático, muitas vezes termino em outros momentos, ainda recorro à madrugada eventualmente, inclusive.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
já tentei me forçar a escrever diariamente. já me coloquei uma rotina espartana durante algum tempo. também já tentei colocar metas, coisa do tipo “escrever tantas palavras por dia” ou o que o valha. sabe o que aconteceu? nada! simplesmente não funciono assim. é fato! tenho aprendido a respeitar meus hiatos e meus vazios. sinto mais ou menos quando uma ideia prum texto me pega. sinto que vai rolar. brinco com ela. deixo ela vir e voltar. aparecer e sumir. talvez seja masoquista de minha parte, mas tento saborear, inclusive, a angústia que me bate quando a “inspiração” vai embora e parece que não voltará nunca mais; caio num abismo. é inevitável, então, tento tirar prazer dessa queda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
o começo é sempre um pouco beira de precipício. é vertiginoso. acho extremamente complicado. mas depois que as primeiras palavras aparecem, a coisa vai. na verdade, quase sempre começo a escrever ao mesmo tempo em que pesquiso. claro que não será o texto definitivo, nem nada do tipo, mas não há uma divisão exata entre o “momento I” e o “momento II”, os processos se misturam e acontecem mais ou menos simultaneamente. ao menos as ideias centrais que me nortearão no que pretendo escrever. isso acontece tanto para textos acadêmicos quanto para os literários. inclusive, na devida proporção, trato mais ou menos todos iguais: todo texto pra mim é literário.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
acho que falei um pouco disso na resposta da terceira pergunta, é um exercício de aprender a respeitar meus hiatos, tento receber bem o vazio que as “travas” me colocam. e respeito minha preguiça! as longas horas diárias no consultório me fazem aprender a respeitar o nada. tenho necessidade de nadas, é com eles que construo e desconstruo meu espaço interno e potencializo minhas “ferramentas de trabalho”, que tanto servem à escrita quanto ao encontro clínico: minha subjetividade & meu corpo. sobre o receio de não conseguir terminar um trabalho longo, ele sempre aparece. é inevitável. mas, bem, escrever é um risco, nunca sei se terminarei, de fato, o texto. trabalho com esse horizonte meio maluco.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
bastante. inúmeras. reviso, reescrevo, deixo o texto “descansar”, depois retomo. mas também varia de texto pra texto, de momento pra momento. num plano geral sou bem criterioso com isso. e sempre mostro meus trabalhos para outras pessoas. para minha companheira, amigos, amigas, gosto de saber das impressões, das críticas, dos pontos fracos, me agrada construir o texto a partir desse contato com o outro, embora ache a escrita egoísta e defendo que tenha de ser assim. no momento em que se escreve não há ninguém além do escritor. eis um paradoxo que me esforço em suportar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
já fui muito mais analógico. (risos) mas não tenho uma predileção específica, escrevo onde dá pra escrever. ando sempre com o famigerado “caderninho de escritor”, é um pouco caricatural e decadente, mas inevitável. também uso bastante o rascunho do celular. no computador escrevo tudo no bloco de notas. todos meus livros passaram por ele. mas, olha só, que fato curioso: pra te responder estas perguntas, abri o Word. (risos)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
tudo o que é inútil e não serve pra muita coisa me faz ideia. tudo aquilo que, por exemplo, numa conversa as pessoas descartam, esquecem e deixam pra lá, eu recolho. sou profissional dos restos. os ruídos que invariavelmente marcam nossos encontros com a alteridade também me agradam. a estranheza que o outro me causa é manancial de escrita. outra coisa que penso ser essencial é a leitura. não há escritor possível sem ela. ler vem antes de qualquer aspiração à escrita. acredito profundamente nisso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
parafraseando o título de um livro de Jorge Luis Borges, sou o mesmo, ainda que sendo outro. talvez esteja aprendendo a ser menos afobado e a olhar com mais ternura para minhas fendas, limites intelectuais e precariedades de existir. também noto que minhas ideias a respeito do que pretendo escrever se fazem mais claras. estou menos nublado. será?
não sei se diria algo específico. aceito que fiz o que podia no momento. gosto de deixar o passado passar. de todo modo, acho que diria: “relaxe, Samuel, você é estranho mesmo, escrever é encontrar o pior da gente e convidar pra tomar um drink”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
são dois, na verdade: escrever um romance e algo dentro da literatura infantil, prosa ou poesia. embora acredite que sem infância, sem o infantil de nós, não há poesia possível, tenho vontade de escrever algo específico. uma hora vai.
sobre a segunda parte da pergunta, não sei, viu. não tenho a pretensão de saber o que ainda não se sabe. mas pensei numa coisa agora. estou te respondendo estas perguntas e a tevê está ligada, acabei de ver uma propaganda de um “guru” dos negócios. ele irá ministrar um curso sobre “sucesso”. também escreveu, é claro, um livro sobre o assunto. então gostaria de ler um livro sobre o fracasso. sobre tudo o que não deu certo. escrito por um coaching para o erro. a sociedade do sucesso e do desempenho não tolera isso. esse imperativo é cruel e assassina qualquer possibilidade de humanidade em nós. mas isso é papo pra outra conversa. talvez já exista esse livro. você sabe? se sim, me indique!