Samara Belchior é poeta e professora, formada em história e filosofia.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia lentamente. Preciso de tempo. Definitivamente não funciono direito de manhã.
Antes do apocalipse pandêmico eu caminhava até uma escola municipal, onde dava aula no primeiro período do dia. Pra eu acordar de verdade para o dia, pegava carona na energia dos meus estudantes ou de uma xícara de café. Em tempos de “novo normal” e trabalho remoto, o início do dia fica ainda mais engasgado, mas não há outra saída: espreguiçar e encarar uma xícara de chá ou café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O fim da tarde, a noite, a madrugada são meus horários de maior atividade, progressivamente. Nestes períodos pareço ter sido afetada o suficiente pelo dia e já recolhi memórias afetivas.
Para escrever preciso ter sido afetada. Somos afetados o tempo inteiro, inclusive de maneira inconsciente, mas o quanto a gente acessa disso? Meu ritual de preparação para a escrita é permitir ao meu interior recordar, refazer, entrar em contato com as afetações vividas, através da respiração, atenção e observação. Muito do afeto sofrido ao longo do meu dia pode ter simplesmente passado sem que eu tenha me atentado, por isso a importância de fechar os olhos e respirar, é como abrir uma porta para os afetos se organizarem e se mostrarem. Abro esta porta, sento e observo.
Não é sempre assim, não é sempre igual, assim como a vida também não é previsível. Em alguns dias os afetos vem de maneira tão intensa que não resta outra alternativa a não ser escrever no momento imediato; em outros dias mesmo com a caneta e o papel na mão e munida da vontade de produzir algo, não acontece ou o resultado não agrada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, não tenho uma meta de escrita diária. Escrever para mim é uma necessidade existencial, eu escrevo para encontrar sentido na vida, então é muito difícil que eu passe uma semana inteira sem escrever nada, por exemplo.
É que, pra além disso, existem outras atividades importantes, auxiliares da escrita, ao meu ver – ler, ler, ler; praticar outras atividades artísticas aguçadoras da percepção como fazer fotografias, vídeos curtos, atividades relacionadas à música, e elas ocorrem intercaladamente conforme sinto necessidade. Nos primeiros dias de 2021 eu estava em uma casinha de campo na praia, cheia de natureza, com um rio atrás da casa. Sentei numa pedra com o caderno e caneta na mão, fechei os olhos, ouvi, respirei – não escrevi nada naquele momento, não aconteceu. Daí optei por fazer uma sequência de fotografias e vídeos e mais tarde a poesia veio, quando eu já não estava na casa de campo mais, quando os eventos já tinham se concentrado e elaborado por conta própria, mas em mim.
Escrever não é um processo ou experiência simples de descrever, não cabe em tabelas. A escrita parece ter o poder de transpor o quanto racionamos e racionalizamos nosso tempo, o quanto padronizamos comportamentos; fazer poesia ou prosa poética me parece ato de rebeldia, uma possibilidade de subverter o uso da palavra, de expandir seu potencial para além de seus usos convencionais e é daí mesmo que não me parece caber a ideia de estabelecer metas diárias para a minha escrita, isto talvez configuraria em uma rendição à produtividade, em coisificar aquilo que, ao contrário, me mostra que sou humana. A arte, mas a escrita em especial, é meu reduto de humanidade. Com isto não pretendo dizer que não seja necessário aprimorar a escrita, conhecer técnicas ou mesmo praticar. Todos esses elementos são necessários, mas quando espremidos demais sobre nós, acredito que deixemos de fazer arte para produzir obrigação.
Abro um parêntesis para dizer que a escrita não é a atividade que me insere no mundo do trabalho atualmente, sendo assim a minha percepção não é a de um autor que faz isso como atividade produtiva e que pode apresentar outra visão sobre este mesmo ponto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso da poesia, primeiro a escrita flui, um tanto desorganizada, caótica, semelhante ao que ocorre na associação livre psicanalítica, deixo as coisas irem aparecendo conforme respiro, depois vem um trabalho de releitura, pesquisa, edição, questionamentos sobre o escrito. Outras vezes pequenas notas aparecidas como insights permanecem guardadas por um tempo e ao serem revisitadas podem se organizar como poemas: penso a diagramação, pontuação, efeitos sonoros e/ou imagéticos.
Sobre a prosa, seja um romance, um conto, acho o processo um tanto menos intuitivo, exige um cronograma mais extenso, períodos de pausa para gerar distanciamento e criticidade mais aguçadas sobre o que já foi produzido, diálogos com os personagens, leituras de pesquisa. A escrita acontece de um jeito bem mais espaçado. Tento respeitar meu processo de aprendizagem quanto à escrita do romance, isso inclui fazer oficinas de escrita criativa e leituras de obras clássicas e contemporâneas. Mas a pesquisa acaba por ser secundária ao meu enredo, primeiro as ideias se aglutinam, depois a pesquisa prova sua viabilidade ou descarte. Então não deixa de haver intuição também neste processo.
O que tenho aprendido sobre meu processo de escrita é que não adianta eu tentar torná-lo muito racional, cabível em fórmulas. Existem situações nas quais me sinto pulsando todos os seres, uma aglomeração se forma dentro e escrever é desaprisionar toda essa coisa que cresce demais para ficar morando dentro de mim, ela precisa nascer com urgência, ignora normas de etiqueta, é inconveniente, suja, selvagem. Depois que ela emerge, aí sim vem a borracha, a edição, um pouco mais de civilidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Compartilho as minhas travas com outras pessoas que escrevem. Falar sobre as travas me parece essencial, acabamos por encontrar sugestões e soluções coletivas. O próprio processo de escrita me aparece como coletivo. Encontrar os pares na escrita é muito fundamental, pense que muitos iniciantes – como eu – escrevem há anos, muitos desde criança, mas não se permitiam mostrar os escritos e nem mesmo se viam como escritores. Superar o medo, encontrar uma voz na escrita, contornar a síndrome de impostor, investir em projetos longos, tudo isso não pode acontecer de modo solitário. Faço parte de grupos de mulheres escritoras, fui salva muitas vezes por eles.
Outra saída é escrever, numa espécie de diário, sobre as próprias travas. Elas acabam por ser tornar também objeto de escrita.
E por último, mas não menos importante, vem o espaço: não adianta ficar forçando algo que não está acontecendo, aproveito o espaço que me permito, me dou, para recarregar as energias. Como recarrego? Leio referências e inspirações, assisto filmes relacionados à minha temática ou gêneros de filmes geradores de gatilho para minha escrita, faço uma caminhada na praça e converso com a natureza.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Chamo meus poemas de experimentais, eles vibram aquilo que se organizou no momento de atenção plena, no refazer do dia ou de determinadas situações e nas imagens que observei ao permitir aos meus pensamentos passearem diante de mim. Os poemas não são alvo de extensa revisão, alguns saem praticamente prontos, outros podem descansar um dia ou dois, outros descansam mais, alguns nem são publicados.
Há anos escrevo um romance intimista, ele já se alterou bastante conforme fui estudando e fazendo cursos de escrita, para ele tenho alguns leitores beta, amigas e amigos escritores ou não.
Acredito que se autocompreender como escritora ou escritor leva bem um tempo, nem nós mesmos temos sempre claro o que é que estamos fazendo ou se estamos fazendo certo. O mercado editorial faz parecer o seguinte: se você escreve e não tem nada publicado, então você não é escritora. Essa pressão leva uma galera iniciante a correr desesperadamente para publicar por publicar, para alcançar o status de escritor quando, muito provavelmente, ser escritora ou escritor se trate muito mais de traçar esse caminho de autoconhecimento, o qual passa pelo coletivo, na troca com escritores diversos. Então sim, eu mostro meus trabalhos, eu leio os trabalhos de outros colegas e isto foi essencial para adentrar neste caminho de autoconhecimento no qual me encontro. Vejo nesta troca um processo e, viver processos na Era da ansiedade não é simples, mas é necessário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tanto a caneta quanto o computador ou o celular são igualmente úteis para mim. Geralmente escrevo meus poemas em um caderno sem pauta, gosto da ideia de poder fazer várias versões de um mesmo poema e tê-las disponíveis no papel. Eu também gosto de escrever à mão por me remeter à atividade artesanal, a própria letra cursiva é uma espécie de desenho, carrega identidade. Mas esses mesmos poemas acabam indo para um arquivo que mantenho no meu computador.
Eu ainda não publiquei um livro, então, boa parte do que escrevo é enviado para chamadas de revistas e afins e/ou publicado na minha conta do Instagram. Para publicar no Insta, trabalho com diagramação de imagens que dialoguem com o poema em questão e, para isso, me utilizo da tecnologia disponível via aplicativos de celular. O Instagram foi uma ferramenta importante naquela história de encontrar meus pares e fazer parte de grupos de escritoras, especialmente nestes tempos pandêmicos.
Para o romance intimista que está em curso, uso o computador, mas mesmo assim mantenho um caderno no qual anoto detalhes do romance, desabafos do processo, sugestões de criação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do quanto me afeto pelos eventos, pela observação dos eventos e daquilo que me rodeia. Trago comigo o hábito de me permitir assustar com o mundo, estranhar e questionar mesmo aquilo que já se tornou cotidiano: lugares, pessoas, situações. Estranhar ativa minha curiosidade e imaginação. Minhas temáticas, por hora, caminham pela holística, corpo, psique, imagens bizarras e fortes da relação do corpo com o entorno, do corpo e psique com o processo produtivo capitalista. A formação em História e Filosofia com certeza desempenham um forte papel nesse estranhamento e delas extraio lentes para observar o mundo, me permitir afetar e finalmente criar.
Meu principal hábito para a criatividade é o de ser curiosa, pareço uma criança na idade dos porquês. Curiosidade e observação andam juntas, assim como também a pesquisa. Mas existe um outro elemento neste processo que é o da empatia, tentar estar no lugar do outro, tentar entender o outro e sua relação com seu corpo, com o mundo, com o entorno. Um outro ser humano é um mundo inteiro a ser desvendado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aprendi a escrever antes de ir para o pré, minha mãe foi minha alfabetizadora. Foi aprender a escrever e começar a compor versinhos sobre o vento, o tempo o silêncio – eu devia ter uns sete anos de idade quando fiz o primeiro poema. Por um tempo, escrever se tratou somente de uma forma de sobreviver à atividade acelerada do meu pensamento em querer recolher o mundo inteiro dentro. Iniciar a escrita de um romance intimista foi uma proposta de um amigo da área da Análise do Discurso, quando tive meu primeiro episódio de depressão ele propôs a escrita como catártica e me incentivou a investir nela.
É recente meu contato com cursos, oficinas, leituras, ferramentas de aprimoramento da escrita em geral. E neste sentido observo o quanto ganhei, não apenas por aprender técnicas, mas por aprender a acreditar na potência vital da arte, cada vez mais. Tenho ainda muito por aprender e não acredito num ponto final para o processo de aprendizagem. Há um enorme horizonte em aberto, nisto está a beleza de criar, nas possibilidades, nas inumeráveis possibilidades.
Pensando dessa maneira, se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos eu os teria deixado ser exatamente como foram, o aperfeiçoamento é fruto deste processo, de ter revisitado cadernos e mais cadernos e percebido o que deveria ser conservado e o que deveria ser descartado em meu modo de escrever. A cada momento de minha vida escrevo como escrevo, como posso escrever. Hoje, mais consciente deste processo, escrevo como posso e isto significa que busco ser capaz de superar minha própria escrita e andar na direção do horizonte cheio de possibilidades. Possibilidades geram desconforto, desafios, estranheza e o que seria a arte senão uma reunidora destes elementos?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de produzir um projeto que envolvesse fotografia e poesia, provavelmente com a temática corpo e poesia, explorar a sinestesia com a palavra e a imagem, propor uma quebra de limites entre corpo e natureza, corpo e mundo.
Um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, provavelmente não seria um livro de ler somente, seria uma obra de arte sem limites físicos. Para não ser tão abstrata, embora seja difícil expressar do que estou falando, deixo como referência o filme A Chegada (2016) do diretor Denis Villeneuve e o ensaio As portas da percepção de Aldous Huxley. Entendo a linguagem escrita e mesmo a falada como uma mediação daquilo que ainda não pudemos acessar diretamente. Nestas referências, algo neste sentido é apresentado, ou pelo menos se especula sobre.