Samantha Abreu é professora, pesquisadora e escritora, autora de A pequena mão da criança morta (2018, Penalux).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há alguns anos tenho tentando estabelecer uma rotina diária, principalmente em relação à necessidade de escrita acadêmica. Estou no meio da escrita de uma dissertação e ser disciplinada tem sido uma fissura, embora sem muito sucesso, infelizmente. Normalmente e menos do que eu gostaria, acordo entre oito e nove da manhã, tomo café e sento para me dedicar às pesquisas, leituras e escrita do texto. O problema é que me disperso muito lendo outras coisas, vendo temas que não estão ligados ao meu projeto e acabo não fazendo o tempo render. Mais ainda quando tenho muita coisa acontecendo na vida, daí percebo claramente que fico com a energia e a concentração completamente desfocadas. Quando me dou conta, a manhã já acabou e outra fase do dia começa. Enfim, sou uma procrastinadora exemplar e não muito raro estou acordando em desespero porque o prazo que eu tinha acabou esgotando. Gosto muito mais de dedicar meu tempo pra ler coisas, pensar, refletir e ter ideias do que escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já tive várias fases. Já tive época de produzir muito à noite. Hoje já não tenho certeza, pois é quando mais me perco lendo e pesquisando por prazer e não por trabalho. Na verdade, percebi que hoje o horário em que mais gosto de escrever é à tarde, pois sempre me parece que é a parte do dia que mais dura e que o que produzo rende mais. No entanto, assumi outros compromissos nesse turno e tive, obrigatoriamente, que me adaptar a escrever de manhã e, nesse caso, meu único ritual é o café preto e um pão com manteiga. Vale dizer que, aqui, me refiro à escrita como trabalho de pesquisa e ao meu projeto da dissertação, pois quando se trata da escrita literária, sempre produzo em horários não programados, inconstantes. Muitas vezes em momentos nos quais sequer tenho como anotar uma ideia: dirigindo, no banho, andando cheia de sacolas na mão. Já produzi muito em momentos altamente entediantes como reuniões, aulas ruins, salas de espera, etc. Aliás, o tédio quase sempre me coloca em momentos de letargia profunda, e estes momentos têm sido bem reflexivos e produtivos pra mim… uma ironia. Eu produzo mais quando vivo o tédio profundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A respeito da minha escrita acadêmica, não tenho meta diária, mas procuro trabalhar com alguns prazos que estabeleço. Mas, como já comentei, não sou uma pessoa disciplinada e costumo, com frequência, produzir quando o desespero já ameaça o prazo. Não escrevo todos os dias, embora devesse.
Sobre a escrita literária, tenho menos constância e linearidade ainda. Escrevo quando tenho uma ideia ou quando estou numa fase de produção poética por conta da confluência de uma série de fatores que vão desde a possibilidade do ócio e da reflexão até a influência de um pensamento aflorado. Assim, não tem periodicidade alguma. Nunca tive e, suspeito, nunca terei.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu funciono melhor quando faço as duas coisas quase juntas, seguidas. Vou pesquisando e produzindo. É que quanto mais leio e pesquiso, mais penso sobre as coisas e mais ideias me aparecem. E como não sou muito boa em preservar e guardar ideias… preciso fazer com que elas se tornem produção o quanto antes, pois se não aproveitá-las assim que elas surgirem, a tendência é que eu as esqueça.
Não tenho muita dificuldade pra começar um texto. A partir do momento em que tenho uma imagem do que quero e preciso escrever, o texto flui. Meu desafio está justamente no tempo anterior: aquele de que preciso para me nutrir de informações e, depois, torná-las um texto pessoal. Este, sim, é um processo irregular: pode acontecer de o estalo ser imediato, mas, muitas vezes, minha maturação é lenta e complexa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Pra mim, as travas são angustiantes. Minha indisciplina me causa alguns problemas com prazos e acabo, muitas vezes, produzindo na hora do desespero. Além disso, tenho muito problema com fôlego de escrita. Sou poeta, meus textos são essencialmente curtos e, por isso, escrever projetos longos – como, por exemplo, o que estou fazendo agora na dissertação – é quase um tormento. Na lógica racional de um texto acadêmico, acabo sempre sendo objetiva demais, dando respostas práticas e explanações muito diretas. Sofro com a extensão, sofro pra dar corpo ao texto, pra avançar em número de páginas. Minha aflição é a de que sempre me parece que já escrevi muito, sendo que ainda não saí de meia dúzia de páginas. Aí, me sinto impedida, frustrada e acabo travando pra valer. São nestes momentos que preciso ainda mais de um tempo de reflexão e de ócio total voltado ao pensamento, ao silêncio e solidão. Só que, infelizmente, essas ocasiões não são comuns nem fáceis de conseguir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Mas o vício da escrita engana os olhos, sempre achei isso. Já aconteceu de revisar textos inúmeras vezes e, mesmo assim, não enxergar erros óbvios que outra pessoa viu assim que bateu o olho. Por isso, sempre que possível e que há disponibilidade, peço para que outra pessoa leia.
No caso do meu último livro, o A pequena mão da criança morta, mesmo depois te ter revisado e alterado diversas vezes, pedi para que uma amiga escritora, a Beatriz Bajo, lesse. Quando ela me retornou, indicou repetições de algumas palavras em vários poemas. Eu devia estar tão fixada no tema e na ideia do livro, que algumas palavras se tornaram recorrentes em todos os textos. E só percebi isso depois que ela disse. Foi essencial, pois consegui não só fazer alterações nos textos como, também, substituir alguns que estavam sobrando ali.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nossa relação é ótima. Escrevo sempre pelo computador, sempre. Eu só não me adaptei ainda com dois hábitos tecnológicos: ler pelo computador (PDF, e-books, etc.) nem escrever textos pelo celular. São duas coisas muito difíceis pra mim. Para a leitura, ainda preciso do papel, dos meus rabiscos e anotações. Para escrever, ainda preciso de um espaço maior, teclado maior, uma folha de Word grande em frente ao meu rosto.
De resto, faço bom uso de quaisquer recursos que a tecnologia me ofereça e que facilite minha vida, sempre.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Algumas pessoas riem quando eu digo: eu produzo no ócio. Minhas ideias surgem no tédio, na suspensão do tempo, das horas. Eu preciso ficar parada, imóvel… e aí a reflexão me leva a produzir. Por isso os momentos de apatia me são tão bons: reuniões chatas, salas de espera, palestras e debates irrelevantes, enfim… as situações chatas pra qualquer pessoa são as que mais contribuem para que eu abstraia o universo ao meu redor e vá parar em um lugar de profunda reflexão e invenção. Eu adoro tardes solitárias em casa, ligar a televisão em qualquer programa bem descartável e entediante, deixar o volume bem baixo, quase inaudível, parecendo uma fala ao longe. Esse quase-sono, uma quase ausência do espaço e tempo, me deixam maravilhada com possibilidades de criação poética. A letargia é meu hábito salvador.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A ansiedade. Mais jovem, eu era, como a maioria dos jovens, muito afoita. Eu pensava em algo e escrevia. Hoje, quando leio textos dessa época, percebo imaturidade, precipitação, falta de aprofundamento reflexivo e linguístico.
Ainda persigo um processo aprofundado no caos poético, uma dimensão que reflita diretamente no corpo do texto, na linguagem, na imagem poética. Por isso, hoje acho o tempo de reflexão tão importante quanto o texto. Às vezes, até mais importante que o próprio texto.
Olhando para a Samantha de quinze anos atrás, eu diria para que ela pensasse mais sobre o que escreve, buscasse ideias mais aprofundadas, pra que ela se acalmasse e aproveitasse pra desenvolver o que futuramente seria seu grande aliado: o tédio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de desenvolver uma escrita extensa, ter o fôlego da ficção, escrever narrativas. Ainda não comecei e não me sinto pronta pra tentar, mas tenho muita vontade. O único livro que eu quero ler e ainda não existe é o meu próximo, que traz meus ensaios sobre um corpo translúcido, quase desmaterializado, um manual sobre a busca por uma capacidade de abstração. Também gostaria de ler inúmeros livros que já existem e não consigo ler, não vejo a hora da desobrigação produtiva em que tudo o que me reste seja um profundo hedonismo literário, social, político. Este é o meu grande objetivo de vida.