Sabine Mendes Lima Moura é escritora, roteirista e diretora da Editora Nua.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tento! Quando há eventos na parte na manhã, não consigo muito… Mas, em geral, gosto de acordar não muito cedo – entre às sete e meia e às nove da manhã – e ter uma hora para mim. Como minha filha já está na faculdade e minha esposa acorda direto para trabalhar, é fácil manter essa horinha independente. Posso usá-la para me exercitar em casa mesmo, caminhar, meditar ou ler. Às vezes, serve apenas para acordar devagar – algo que considero um luxo, depois de anos dando aula às sete da manhã. Nesse caso, fico deitada mesmo, contemplando o nascer do sol ou minha esposa, dedicando-me a fazer as coisas mais devagar antes de encarar o turbilhão de tarefas do dia a dia. Uma coisa que me atrapalha bastante são as redes sociais – o automatismo de acordar e buscar o celular, já entrando no Instagram. Não consigo simplesmente deixar para lá porque me ajudam com o trabalho de divulgação. Então, de uns tempos para cá, agendei isso também para mais tarde e procuro preservar essa primeira hora, ao menos, como um momento de reflexão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por anos, escrevi quase exclusivamente à noite. De fato, sou uma pessoa noturna, mas, desde que deixei meus empregos em horário comercial e passei a atuar como editora, tradutora e revisora freelancer, percebi que um dos maiores desafios nesse estilo de vida é a organização do tempo. Testei vários formatos: inclusive acordar bem tarde e cuidar do que dependia de comércio, bancos e telefonemas para, depois, escrever madrugada adentro. Não funcionou. Abri uma editora ano passado e todos os contatos que preciso fazer com membros da equipe e fornecedores acontecem em horário comercial. Além disso, eu já vinha sentindo a necessidade de aprender a escrever em qualquer horário. Quando eu era professora, o tempo que me sobrava era à noite e cansei de virar madrugadas escrevendo para dar conta de finalizar romances, mesmo tendo de dar aula às sete da manhã. Até que li On Becoming a Writer, da Dorothea Brande, uma das obras que mais impactou minha formação como escritora. Quase todos os manuais de escrita falam sobre processos criativos e técnicas, ignorando que, antes de qualquer coisa, precisamos construir-nos como escritores. Então, Brande propõe uma série de exercícios: escrever em diferentes turnos, escrever mesmo que não haja inspiração – como um ato mais ou menos mecânico – para ver o que surge, escrever em diferentes suportes (computador, celular, cadernos, pôsteres etc.). Cheguei a usá-los com meus alunos da PUC-Rio em uma oficina de escrita criativa. O objetivo não era que produzíssemos um texto incrível, mas que aprendessemos a reconhecer nossos processos de escrita: nossas resistências, temas eternos, jeitos mais e menos confortáveis de produzir. Para mim, pensar sobre a escrita como um trabalho – como um ofício a partir do qual contribuo para o mundo e com o qual tenho de aprender a lidar – abriu a possibilidade de escrever em vários horários, saindo da minha zona de conforto. Então, hoje, escrevo em qualquer horário, de acordo com o que me programei para fazer, e não tenho rituais, exatamente, mas uma única condição: preciso ter uma mesa de escritora. A mesa pode ser bem simples, de preferência não desmontável, e eu não preciso utilizá-la sempre – muitas vezes, opto por escrever sentada na cama, no sofá ou em uma parte não explorada da casa, para arejar as ideias. Mesmo assim, ela tem de estar lá. Sobre ela, deixo apenas meu computador e alguns indicadores de força pessoal que variam com o tempo. Nesse momento, há uma caneca com canetas e duas varinhas mágicas, uma mini claquete de cinema, uma mini árvore de Natal e uma mini lata de lixo reciclável. Todas foram presentes de grandes amigas e amigos, marcando momentos e temas importantes para mim, menos a arvorezinha – que está aqui, porque eu amo decorações de Natal.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente, dedico entre três e quatro horas diárias a meus projetos pessoais. Pode haver uma ou duas horas extras de escrita como freelancer, em que desenvolvo materiais didáticos, manuais e outros tipos de escrita técnica. Adoro a ideia de começar o dia submergindo no livro da vez, mas nem sempre consigo. Às vezes, a pressão dos calendários da editora ou de freela é tão grande, que prefiro bater meta logo cedo e ficar livre para criar livremente mais tarde. Mas sempre tenho metas, também, para minha escrita pessoal. Uma amiga ensinou-me a balancear expectativas e prioridades a partir de uma tabelinha que inclui custo do projeto (em termos de esforço), prazer envolvido e retorno (se é algo mais ou menos comercial, que apoia ou não minha carreira etc.). Então, a cada dois meses mais ou menos, eu revejo as mil e uma ideias que tenho para livros, avalio se já me sinto pronta pra começar ou se ainda estou no período de gestação e faço a tabelinha. Nem sempre escolho aquela que vai me dar mais retorno – tento ter uma dieta balanceada em termos de esforço, prazer e retorno. Eleito o projeto, estruturo capítulos de maneira geral, prevejo mais ou menos quantos meses serão necessários para dar conta daquele projeto e divido o número de capítulos pelo número de dias disponíveis. Minha meta diária está sempre associada ao projeto – não é um número de palavras randômico por dia a menos que isso faça sentido para a estrutura do projeto. Também incluo uma semana de edição e uma semana de revisão. Há momentos em que os livros parecem ganhar vida própria e cobrar certa urgência – não me deixam pensar em qualquer outra coisa. Nesses dias, extrapolo o limite de quatro horas diárias. Sinto uma urgência difícil de explicar. Geralmente, acontece quando estou prestes a acabar a primeira versão. Dura pouco – no máximo, uma semana – e bagunça completamente minha rotina, mas é muito gostoso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu raramente compilo notas temáticas ou estruturais. Compilo frases, diálogos, cenas que guardo no celular e em cadernos como ferramentas para uso posterior, não relacionadas a uma obra em particular. Mesmo assim, não costumo ter muitas notas. Guardo coisas interessantes na cachola mesmo. Tenho apenas um projeto, um romance histórico, para o qual pedi o apoio de dois pesquisadores. Cordialmente, enviaram-me uma centena de textos, imagens e referências que ainda preciso estudar melhor. A questão é que esse projeto, por exemplo, ainda está no que entendo como fase de gestação. Eu tenho várias ideias, mas, depois de muita prática, sinto que já consigo perceber quando estou pronta (ou quando a ideia está pronta) para ser escrita. Costuma começar como uma inquietação, uma questão, algo que eu sinta que tem valor próprio, que seria bacana desenvolver, mas que não necessariamente tem vida própria – se eu sentasse para escrever, sairiam minhas reflexões sobre o assunto, meio desordenadas, sem nenhum tipo de fio condutor. Então, fico dando voltas nesse tipo de inquietação ou questão por muito tempo. Toda série, peça teatral, livro, conversa, cena cotidiana, evento em minha vida parece estar contribuindo de alguma forma para que a ideia enriqueça e vá ganhando corpo. Até o momento em que eu vejo uma estrutura: pode ser em capítulos, em seções, um rascunho de sinopse ou o arco de uma personagem em particular, com força suficiente para carregar uma história. Meu planejamento vai depender de como vi a estrutura – posso tanto dizer que hoje escrevo o momento em que Mariah resolve X quanto o capítulo 1, dependendo as necessidades de cada obra. Então, começo a escrever e pesquiso apenas durante o processo de escrita, para validar certas linhas narrativas, ampliar possibilidades cênicas ou embasar diálogos, alimentando a estrutura. Escrevo em vários gêneros e, talvez por isso, meu apego maior não esteja na pesquisa prévia, mas na criação de estruturas que funcionem para a obra e para o leitor. Como exemplo, posso citar minha próxima publicação – Você Unlimited – uma novela de ficção científica que sairá pela Editora Lendari. Sem dar muitos spoilers, posso dizer que a estrutura previa uma explicação científica para a reprogramação de pessoas como seres “autocriados”, com a aparência e as características de personalidade que desejassem exibir. Quando comecei a escrever, não tinha ideia de como justificaria isso: sabia apenas que precisava ser algo relacionado às práticas predatórias do capitalismo contemporâneo. Testei várias ideias e, com o apoio de um pesquisador em biologia molecular, percebi que uma delas contemplava o que eu já havia escrito sobre a hierarquia de corpos no mundo distópico da novela. Mas esse momento de consultoria ocorreu muito depois da definição da linha narrativa básica para a história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com planejamento, disciplina, metas e buscando ver a escrita como um trabalho, um ofício. Costumo dizer àqueles que estão começando que, se quisessem ser professores, padeiros ou jogadores de futebol, precisariam praticar muito, conhecer muito sobre suas próprias virtudes, dificuldades e limites pessoais, além de cuidarem de suas ferramenta de trabalho. A imagem do padeiro me ajuda muito. Como padeira de livros, eu reconheço o que é meu pãozinho francês básico, meu pão francês caprichado, meu pão doce básico e minha super criação inovadora, que pode não agradar aos clientes mais conservadores da padaria. Sei que meu forno é minha cabeça, que preciso ter horário para acordar, para me preparar e para esquentá-lo, bem como um conjunto de utensílios de cozinha – nada demais, um fone para bloquear ruídos externos com música, caso haja mais alguém na sala onde estou trabalhando, uma cadeira confortável onde possa cruzar as pernas do jeito que eu gosto, apoiando minhas costas herniadas, e um computador, contendo editor de texto simples e os arquivos do que já produzi antes. Com o tempo, fui entendendo quando cada texto está assado e quantas vezes tem de ir e voltar do forno, além de separar minha criação do gosto dos clientes. Só que demorou muito até que eu me visse como alguém que trabalha ao escrever. Sempre ouvi dizer que a escrita vinha da inspiração pura ou que era prova de talento inato e acreditava piamente nisso. O problema é que essas visões me deixavam refém e eu queria escrever. Queria porque queria. Gostava de escrever. Cansei de imaginar como seria escrever e não escrever. Cansei de me sentir imobilizada, pensando: “se não estou escrevendo, é porque não sou inspirada ou não tenho talento”. Essas crenças elitizam a tarefa do escritor e nos separam do resto da humanidade, como se fossemos uma espécie em particular, investida de dons transcendentes, acessíveis a poucos, e eu nunca gostei de me distanciar desse jeito. Soava estranho no fundo. Então, hoje eu sou apenas uma trabalhadora e, é claro, que tenho travas, procrastino, tenho medo de não corresponder às expectativas e fico ansiosa, mas me levanto e vou ao trabalho, tentando não ser muito dura comigo mesma. É difícil, mas busco saídas. Se estou travada, escrevo outra coisa da lista de projetos ou escrevo “não sei escrever, não sei escrever, tudo que eu escrevo é idiota” até me cansar dessa pegada – porque, acredite, uma hora a gente cansa até disso. Se sinto que estou procrastinando, escrevo diários, escrevo sobre o porquê de estar procrastinando, porque, ao menos, isso me mantém escrevendo. Se estou ansiosa com uma obra longa, dedico parte de meu tempo a editá-la ou revisar as possibilidades de publicação de um escrito antigo. E, quando não há maneira de superar o problema, assim de imediato, leio sobre como outras pessoas superaram esses problemas ou converso por horas com meus amigos, expondo meu medo e pedindo ajuda.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu divido, em minha cabeça, processos de edição e revisão. Editar, para mim, é rever o texto em busca de inadequações estruturais, temáticas, estilísticas e faço isso quantas vezes forem necessárias para que eu sinta que o material está redondo – nunca menos de duas vezes. Nessa etapa, busco dar mais força a personagens, enredos e propostas narrativas, além de resolver ritmos, abordar a obra como leitora (vendo o que me entedia, o que me parece corrido ou mal explicado, por exemplo) etc. Depois de bater o martelo nesse sentido, reviso em relação a usos gramaticais, não menos de três vezes. À medida que escrevo, gosto de ler trechos em voz alta para quem estiver disponível. Geralmente, minha esposa e minha filha. Isso faz parte do meu processo criativo e percebo as obras de uma forma completamente diferente apenas por estar lendo em voz alta, especialmente no que diz respeito a ritmo. Também pego muitos errinhos de digitação nesse processo, mesmo antes da revisão. Às vezes, envio para amigos que possam se interessar pelo tema, mas não trabalho com um leitor beta único. Tenho muita dificuldade de pedir ajuda nesse sentido, porque me sinto incomodando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Há anos, escrevo no computador, mas tenho livros rascunhados em cadernos. A tecnologia me ajuda muito e, quando perto do fim de uma obra, chego a rascunhar parágrafos inteiros no Whatsapp, em editores de texto do celular ou e-mails que enviarei para mim mesma, caso esteja fora de casa. Nessa fase, o livro não sai da minha cabeça – a questão inicial está quase se resolvendo – e, portanto, não respeita horários.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não tenho noção de onde vêm minhas ideias. Sempre tive muitas e não sei precisar como começam a me intrigar e em que momento se constituem como ideias para a escrita. Há pouco tempo, surgiu-me um pensamento interessante quando assistia a um documentário na Netflix. Se você me perguntar de que se tratava, não saberei responder, mas sei que o gostinho que eu senti é do tipo que volta: daqui a pouco, começa a me atazanar sob a forma de cenas, conexões, até gerar uma estrutura visível. Quando encontro algo assim, verbalizo para quem estiver a meu lado. Algo como: “nossa! Isso daria um romance assim assado!” E esqueço. Não anoto em lugar nenhum, só deixo ali marinando em copresença. A essa altura, já sei que vai voltar quando estiver mais pronto ou quando eu estiver mais disponível. Quanto a hábitos, não faço nada com o objetivo de me manter criativa. Eu preciso ser criativa e, quando começo a me sentir mal, já sei que é porque não estou criando. É meio ao contrário: sinto falta de criar e incluo toques de criação em tudo o que eu faço, mesmo que não seja requisitado. Eu leio muito, assisto a muitos filmes e séries, e procuro, conscientemente, não estar em contato apenas com o que está mais na moda. Cuido da minha alimentação cultural, não porque quero ser mais criativa, mas porque os valores embutidos em produtos pré-fabricados para consumo, assim como sua estrutura repetitiva, me fazem mal. Mesmo que o objetivo seja outro, talvez essa preocupação tenha algum efeito grande em minhas práticas criativas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o que mais mudou foi meu autoconhecimento em relação a como escrevo. Eu diria à Sabine criança: “Menina, olha só, te juro que não adianta sentar pra escrever sua grande obra – aquela que vai conquistar o mundo e provar a todos que você pode, de fato, escrever. Isso só te paralisa e não dá certo! Aproveita que você é novinha e brinca de escrever, curte escrever, escreve de várias formas diferentes e vai vendo como você se sente com cada uma, vai explorando seus pontos fortes e fracos. Porque, no final das contas, não adianta o mundo inteiro dizer que seu livro é bacana se você não viveu o processo. E não adianta todo mundo te reconhecer como escritora se você mesma discorda.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um monte! Quero escrever meu romance histórico, um manual de escrita diferenciado e um livro que compile minha produção teatral, para mencionar alguns. Difícil dizer do que não existe, mas posso comentar o que não conheço: romances estilo Bridget Jones a partir do lugar de fala de mulheres lésbicas; livros de metodologia de ensino queer, porque já existem artigos sobre o tema, mas, que eu saiba, ainda não temos um livro que apresente, de forma sistemática, as aplicações da teoria queer às práticas pedagógicas para além dos estudos de caso compilados; literatura fantástica afrofuturista, mesclando relato e ficção histórica para dar conta de eventos invisibilizados da cultura afro-brasileira. Como roteirista, consegui fazer alguns curtas experimentais em primeira pessoa – com o objetivo de colocar a plateia no lugar de personagem e carregá-la pela linha narrativa – algo que, na escrita, seria o equivalente a escrever em segunda pessoa. Esse tipo de pesquisa também me interessa muito: o quão aberto ao leitor um livro pode ser sem perder sua linha narrativa? O quão colaborativa a linha narrativa pode ser? Então, gostaria de ler romances em segunda pessoa e obras colaborativas em todos os gêneros que não caíssem no lugar do RPG ou dos livrinhos “Escolha sua aventura”, mas brincassem com isso. Contar uma história dando esse tipo de espaço para a participação dos leitores é um desafio enorme.