S.Malizia é escritora, autora de “Arsayalalyur – Ponte de Luz”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Longe de ter uma rotina de escrita, meus dias iniciam normalmente com uma mistura de estresse, atraso e caos.
Assim como Mary Shelley, considero o caos como berço de minhas histórias, onde na tentativa de encontrar uma ordem para as ideias, vão sendo tecidas as histórias, geralmente, no balanço ruidoso do transporte coletivo, especialmente o metrô de São Paulo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As manhãs são decididamente meu período mais produtivo, quando não estou passando pelos famosos bloqueios criativos.
É relativa à ideia de ritual para escrever, pois depende de diversos fatores. Existem histórias que surgiram de um mero devaneio ou sonho, observação da vida na cidade através da janela de um ônibus, enquanto outras histórias iniciam com uma pesquisa meticulosa sobre os temas que serão abordados.
Por mais que o escritor seja protegido pela licença poética e tenha o aval da arte para fazer releituras de sua realidade, há momentos em que isso não cabe no texto e o mais correto é pesquisar, especialmente se trata-se de um assunto que não domino.
Outra prática que me acompanha é a montagem de uma playlist que seja compatível com o que pretendo escrever, pois me fornece um quadro mais vívido do que vou retratar, como numa obra audiovisual. A música adequada me faz imergir na história, a fim de torna-la o mais verossímil possível.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De maneira alguma. Sempre trabalhei longe das metas.
De início, para não me frustrar caso não as atinja e também por acreditar no processo criativo como algo espontâneo e subjetivo. Penso que há um decréscimo da qualidade do texto quando há muita pressão e prazos. A escrita deve ser antes de tudo um ato livre e que visa a libertação do outro, de seja qual for a cadeia que o prende.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ocorre algo curioso que é o seguinte: nunca penso que colhi informação suficiente, de modo que, às vezes, a escrita demora para começar.
Faço uma pesquisa antes de fazer a pesquisa propriamente dita. Os livros que vão compor a bibliografia básica também devem atender e se adequar ao meu próprio texto.
Por exemplo, no romance em processo, ‘Psychomachia’, os personagens são criações originais, porém têm traços de personalidades reais, como um dos protagonistas, Alain Stellamare, que possui características particulares de José Saramago e Hernán Cortéz, ou o personagem Filippo Brunelleschi, para o qual me baseei no famoso idealizador da cúpula de Santa Maria del Fiore.
Desta forma, no meio da trama estarão mescladas informações factuais de uma pesquisa histórica, mas com o intuito de fantasiar, apenas, como um jogo do ‘E se?’, como costumo dizer.
‘E se o arquiteto Filippo Brunelleschi fosse tentado a fazer um pacto com uma entidade das trevas para obter seu engenho?’ ou ‘E se Hernán Cortéz e Malinalli, personagens-chave da conquista espanhola fossem jogados em um mundo contemporâneo?’
Então, com essa série de questionamentos a história vai sendo criada, unindo em diferentes tramas, diferentes tecidos.
No entanto, há processos que são extremamente rápidos, como no conto ‘Tia Clóris’, fruto da observação de um saco de lixo de formato curioso boiando num córrego poluído, pela janela do metrô, que imediatamente associei às representações pictóricas de Ofélia e por aí seguiu até a conclusão, bem como na criação de ‘Healing Room’, iniciado depois de um questionamento sobre as fronteiras da realidade virtual e de como nos torna vulneráveis, após realizar um jogo interativo, parte do projeto do Instituto para a Ciência Noética – IONS, na sigla em inglês.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ainda não aceito totalmente a ideia de que procrastino, mesmo sendo esta uma imensa verdade. No entanto, compreendo hoje que o tempo para a maturação de algumas histórias seja necessário.
Desta forma, busco unir o útil ao agradável, direcionando a procrastinação para leituras que ao mesmo tempo me agradem, estejam em consonância com o tema sobre o qual estou escrevendo e forneçam mais recursos para fortalecer a narrativa. Assim, me proporciono uma auto-ilusão de que estou sendo produtiva de alguma forma, ainda que não propriamente manifesta na escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é decididamente a pior parte. E quando eu me vejo desistindo do projeto, de escrever, da vida, tão tortuoso é o caminho. Ali, as falhas assumem contornos de monstro devorador de sonhos e me questiono: ‘ Por que não escolho fazer outra coisa, mesmo?’
Ao longo da escrita, vou enviando os capítulos avulsos para apreciação, pois não consigo escrever em ordem cronológica e sim, como cenas que se interconectarão futuramente.
Costumo revisar uma vez para resolver problemas de pontuação, palavras repetidas, frases sem nexo. Após essa primeira lapidação, entrego o texto unificado à três pessoas de mais absoluta confiança, as quais chamo de ‘Tríade’.
São elas que me apontam possíveis bizarrices dentro da história, ideias não claras, pensamentos incompletos.
Assim que me deixam a par, tem início uma segunda revisão depois de corrigidas as falhas.
Caso o texto volte sem sugestões de alteração – o que é raro – concluo com a última checagem do texto, para confirmar que tudo está bem. Para meu sincero horror, quase nunca está.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes costumava escrever tudo à mão e vários cadernos eram preenchidos.
Agora, com as novas tecnologias e o fato de passar mais tempo em trânsito, chacoalhando em um transporte público que eu paguei para apanhar dentro dele, tenho usado o aplicativo Evernote.Gosto porque ele salva os trabalhos automaticamente, o que ajuda quando o celular trava ou tenho que guardá-lo, de repente, na iminência de um assalto.
É funcional, ainda que eu não domine todas as ferramentas e tem um recurso que salva o texto em nuvem, caso dê algum problema no celular que me tranquiliza.
O único problema é que preciso juntar todas as notas soltas em um único arquivo do Word depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nunca sei de onde elas vão surgir, mas às vezes vêm do lugar mais inusitado.
Lembro de uma entrevista com o Ignácio de Loyolla Brandão, na qual ele admitiu ter seguido duas pessoas só para ouvir o final da história que estava sendo contada.
Nunca cheguei a esse ponto, mas acredito que seja assim que funciona o ato criativo. Em pé de igualdade com a leitura constante e variada, boa parte das ideias são orgânicas, constituídas de partes de outras pessoas, de suas vidas, suas particularidades que merecem ser preservadas para a posteridade.
Utilizo nos livros e contos, bastante dessa parte de observação do cotidiano, de como pessoas reais se comportam, o que têm a dizer, seus sonhos, desilusões, suas guerras.
Acrescento a isso a minha projeção sobre os fatos que presencio e a recriação posterior, acrescida de muita leitura, música, filmes. Todos esses elementos fornecem o caldo primordial para a criação de uma história nova.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O mais notável talvez seja a dissociação da voz do outro – os outros autores que li e que são a viga mestra da minha escrita – da minha própria voz.
Todo escritor, por mais que seja doloroso admitir, começa emulando alguém e comigo não foi diferente, tanto que hoje ainda escuto ressoar nas minhas páginas, a voz da Marion Z.Bradley, alguma linha quebrada de José Saramago e sua prosopopeia, que dentro do estilo dele é admirável, mas não cabe no meu, ou a Lygia Fagundes Telles em seus textos insólitos, a alma ultrarromântica de Álvares de Azevedo, o pessimismo de Augusto dos Anjos, o spleen.Meus textos estão carregados dessas vozes, rescendem à coisa velha, dos tempos de outrora e isso é um vício do qual ainda não estou completamente livre, embora me policie mais. Somos o que lemos e, às vezes, o ato de emular passa a ser involuntário como um TIC.
O segundo ponto é perder o medo de ousar, deixando de atender às características dos personagens para atender às demandas impostas pelo público leitor, por exemplo, ou para onde tende o mercado. Se a escrita, como arte, não for livre, o que mais é?
Tenho visto muitas críticas sobre comportamentos de personagens, temas sensíveis, coisas que não podem ser escritas porque correm o risco de ser boicotadas, de gerar gatilhos, de ferir sentimentos. Isso me preocupa bastante, pois soa como censura, ainda que com boas intenções e me faz engessar meus personagens.
Eu escrevo terror/horror e nesse campo da ficção é possível ousar um pouco, ainda que as histórias toquem em um campo místico-religioso.
Quando me vem à mente essas travas, eu penso em livros como ‘Uma Duas’ de Eliane Brum e volto a entender que a natureza humana é sombria em sua origem e que não serve de nada negar essa parte, fingir que não existe e que vivemos em um idílico conto de fadas.
É necessário expor a miséria humana para que nos conscientizemos de que ela existe e que se crie um caminho para que seja trabalhada. Por isso, busco através da via do horror, do assombro, também trazer à luz esses fantasmas, ainda que travestidos de sonhos para que sejamos capazes de enfrentá-los futuramente e com a total e decepcionante certeza de que nada que eu crie em ficção alguma se iguala ao horror de saber-se pertencente à humanidade e que somos capazes de atos tão vis que fariam sair de cena, cabisbaixa, a pior das aberrações concebidas por nossa mente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projetos eu tenho vários, mas ainda não sou capaz de visualizar com clareza. Mais contos, um romance que vai encerrar o que eu chamo de ‘Trilogia da Ponte de Luz’, mesmo que ela não ocorra de fato, crônicas…
Um livro que eu queria ler mas não existe? Aquele cuja atmosfera seja tal que me permita voltar ao meu passado e viver ali toda vez que a existência atual me doa. Desta forma, talvez entre na resposta da primeira questão.