Ruy Espinheira Filho é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho propriamente rotina matinal, mas trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha melhor hora para trabalhar é a manhã. Sinto-me mais disposto. Meu pai, advogado, era trabalhador noturno, lembro-me das madrugadas em que acordava com o ruído da máquina de escrever. Meu filho, Mario, jornalista, também é. Eu sou matinal. É pela manhã que escrevo os artigos para jornal, trato da correspondência e, quando Anima canta, vou à minha literatura.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como já disse, só escrevo literatura quando Anima canta. O que varia muito, é claro. Em certos dias escrevo por horas, noutros – muitos outros – não escrevo nada. Assim, não tenho uma meta de escrita diária. A escrita diária só existe (e aí creio que tenha de existir) quando estou escrevendo um romance, mas até agora só escrevi quatro romances…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita sempre foi para mim um mistério. Criança ainda, não entendia a compulsão para escrever. Eu lia, lia, depois queria escrever contos, poemas… Os amigos brincando e eu ali naquela luta. Uma luta que me deslumbrava, sim, mas como era frustrante… E não contava nada a ninguém, é claro.
Quanto à pesquisa para a escrita, o que faço é geralmente alimentado pelas vivências e leituras. Compilações de nota eu já fiz para outros escritos – como dissertação de mestrado (sobre Jorge de Lima), tese de doutorado (sobre Mário de Andrade) e meu livro sobre Manuel Bandeira. Para os romances usei quase sempre a memória. Porque é mesmo com a memória que o autor escreve. É uma riqueza especial. Ela é um passado ficcionalizado, ou poetisado (porque a memória é ficcionista e poética), e o passado é a única coisa que nós temos, porque o futuro é apenas uma possibilidade e o presente acabou de passar… Mas quem colocou bem a natureza da arte foi Mário de Andrade, que, numa carta a Anita Malfatti, em resposta à correspondência em que a pintora definira o artista como um “transmissor de beleza” e dizia desejar ter um Debret e um Rugendas em casa por estar sentindo vontade de “fazer um quadro com sabor daquela gente”, escreveu que o artista “não é transmissor de beleza, é criador”; que “transmitir a gente pode transmitir, de fato, em elementos alheios e sabor de outra gente, mas criar só pode ser com as próprias forças”; e, finalmente, que a questão não é fazer “moderno”, cubismo, surrealismo e coisas assim”, porque a arte, “que não é só beleza, por mais pensada, é feita com carne, sangue, espírito e tumulto de amor”. Pois é: carne, sangue, espírito e tumulto de amor…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho propriamente travas da escrita, porque não sou eu que vou à literatura, é ela que vem – ou não – a mim. Se não vier, não vem, não sofro com isso, sei que um dia voltará… Quanto a corresponder às expectativas, que expectativas? A dos críticos, a dos professores, a de outros escritores? Não penso nisso. Como não me iludo com a glória literária, pois há muitos gloriosos por aí que só me inspiram desprezo. Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, no meu caso só quando escrevi romances e ensaios. Aliás, só no caso dos ensaios, pois tinha que atender a prazos universitários. O livro sobre Bandeira eu fiz depois, independentemente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes, uns mais, outros menos. Não, não mostro meus trabalhos a ninguém. Alguns saem publicados aqui e ali, num jornal, numa revista. Mas leitor de livro antes da publicação, não.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Poesia, só à mão, tirante umas duas ou três exceções. A prosa vai direto para o computador. Sou homem do tempo da máquina de escrever, pode-se imaginar como gosto do computador…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm da vida, assim como as emoções. No caso da criação propriamente dita, as emoções são mais importantes. Sem emoção não se cria nenhuma literatura que preste. No mais, não cultivo hábito algum para me manter criativo. O que faço é ler muito e pensar muito na literatura. Já disse em entrevista e repito aqui: para mim, literatura e vida são a mesma coisa. Pois com o que é que eu escrevo? Com a vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No processo de escrita não creio que tenha mudado nada. É a velha compulsão, o canto de Anima. E muitas vezes um espanto. A gente vê algo assim, por exemplo, num trecho de Álvaro de Campos:
Depois de escrever, leio…
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto?
Isto é melhor do que eu…
Assim é, sem estas surpresas, estes espantos, não se faz arte alguma. Ela vem de um lugar mais profundo do que a da inteligência solar, a de Animus. Com relação à minha tese de doutorado Tumulto de amor e outros tumultos, publicada pela Record em 2001, eu diria a mim mesmo que poderia burilar uma coisinha aqui e ali, quem sabe? Mas essencialmente foi o que eu quis dizer na época – e que defendo ainda hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu pensei em escrever um livro sobre a formação poética de Drummond, fiz várias leituras nesse sentido, cheguei a escrever a abertura – e resolvi que não escreveria mais ensaios, minha idade exigia que o tempo que me restava deveria ser todo dedicado à minha própria obra. Quanto a um livro que gostaria de ler e que ainda não existe? Talvez o livro de poemas que Vinícius de Moraes esqueceu num táxi. Mas penso no que se perdeu na Biblioteca de Alexandria. Ou nas memórias de Machado de Assis. E no que Homero e Shakespeare escreveram sobre o seu processo de escrita…