Rui Tinoco é psicólogo e escritor, autor de livros de poesia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nada de rotinas… Café sim… e depois encaixar espaço para a escrita nas rotinas profissionais e familiares. Pequenos nadas que vão permitindo somas que possibilitam poemários. Mas também ao contrário: ser dominando pelo texto que exige a presença do autor. Por vezes, visto essa máscara e então é o espaço da escrita que invade tudo. Há também textos que exigem continuidade como os de pendor narrativo e científico. Esses não se dão tão bem com a falta de rotinas: confesso que em mais de uma ocasião fui por eles abandonado e traído.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Novamente: gosto dos pequenos espaços – meia hora, se consigo, sozinho num café antes de trabalhar… Ou então na hora do almoço num restaurante sem movimento… dez minutos podem ser um verdadeiro manancial… ou durante a noite, se bem desperto.
Os formatos de escrita têm, eles próprios os seus ritmos. O poema imagético e breve, tipo kaiku, pode implicar somente um breve instante. As crónicas, contos ou formatos narrativos mais extensos exigem lentidão: o desenvolvimento de vozes, os personagens com as suas derivas próprias, ou o amadurecimento de um argumento com os seus diversos desdobramentos.
Skinner, um psicólogo behaviorista, muito centrado nos comportamentos e nas suas medições, comentou que a média de palavras na sua escrita científica era bastante inferior à sua escrita narrativa. Fundamentar as palavras com outros autores, implica estudo, enquanto que na escrita literária, para além da leitura de outros autores que depois se torna invisível, a espontaneidade é mais dominante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sem metas mais uma vez… penso que a escrita é um animal fugidio: espanta-se se é perseguido. Mas depois, quando as coisas correm de feição, deixa-se caçar e todo o processo pode tornar-se inebriante. O nosso Rei D. João II tinha uma expressão célebre que, creio, poder utilizar aqui: “há tempos de coruja e tempos de falcão”. A coruja pode significar, neste contexto, o tempo do crescimento invisível, a demorada fermentação das ideias e das palavras. O tempo do falcão é o momento em que tudo acontece… o voo picado da ave sobre a sua presa, a certeza absoluta do que vai acontecer.
Mesmo assim, às vezes, planeio escrever uma tarde mas depois sento-me e não consigo escrever nada: como se o branco nesses momentos se tornasse um espelho do meu desânimo. Da mesma forma, vejo o branco refletir a minha preguiça… É necessário vivermos outras coisas, pensarmos noutras coisas, estarmos com pessoas…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em termos de escrita científica, é necessária pesquisa e leituras antes de se conseguir aceder à palavra. Para isso, organizo um arquivo de fichas de leitura sobre os temas que ando a estudar e a partir dos quais desejo fazer algum trabalho – seja ao nível do artigo de opinião ou de artigo científico. Escrevo então e regresso às fichas para ver de que modo posso fundamentar ou consolidar melhor esta passagem ou aquela ou também de que forma essas outras vozes podem fazer evoluir a minha.
Em termos de poesia, tento descobrir a minha voz e as palavras que ela pode iluminar de determinada maneira. Socorro-me aqui do conceito de planos de imanência de Deleuze: descobrir um horizonte, uma estabilidade de onde possam brotar as frases e as metáforas. Noutras ocasiões, mais raramente, interessa-me estudar um campo semântico e a partir daí tentar o texto. Lembro-me concretamente de um poema sobre Gil Vicente: «a caça de amor é de altanaria». Andei uns tempos a informar-me sobre os vocábulos e conceitos envolvidos na caça com falcões – voo de espera, preia, caparão – é só depois me arrisquei à escrita (este texto ilustrou depois um livro sobre falcoaria).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como referi anteriormente procuro não forçar o branco. Não pretendo estar à procura de um texto, se bem que por vezes seja essa própria procura o motivo da escrita – como no texto “mesmo aqui neste branco” (Era Uma Vez o Branco, Volta d’Mar Edições, 2013, Nazaré):
mesmo aqui neste branco
vêm comigo ter rostos
como se a folha fosse também
ela a face visível
da memória. é difícil
ficar sozinho. as frases
sentam-se em redor, conversam
sem que lhes pece nada,
mas se as tento agarrar,
elas desatam aos gritinhos
e a fugir como se fossem
gregas ninfas de alvos seios
palpitantes.
É preciso saber esperar, esperar sem saber que se está a esperar. É preciso também aceitar: aceitar as nossas limitações e finitudes. A não escrita é uma dimensão central da escrita: como espaço de fermentação mas também como sombra, espaço em que o que tem de se decompor e desaparecer cessa de existir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A escrita científica necessita muito esse processo de depuração, mas também é mais limitada em termos de vocabulário e margem de manobra. O processo de publicação exige também outros olhares: o do orientador e dos arguentes nos casos das teses de mestrado ou doutoramento; o olhar dos revisores no caso de publicação em revista científica.
A liberdade literária é maior, refiro-me à escrita poética, aquela a que dedico mais tempo. Há textos que têm um nascimento instantâneo, outros que nascem na cabeça e depois têm um outro nascimento no momento da escrita propriamente dita. Outros nascimentos são mais teimosos, deparo-me com imperfeições e incompletudes que teimam e fazem nascer outras se as tentamos corrigir.
Coloco aqui a questão da finitude da escrita: quando um poema está terminado. Um segundo olhar do autor obriga a uma reescrita, a sua inclusão num poemário, um terceiro olhar do autor, obriga a mais acertos. Interessou-me, desde que conheci, o conceito de reviver os poemas proposto por Juan Ramón Jimenéz: este famoso autor revivia os poemas já publicados, voltando a reescrevê-los, no sentido de voltar a essa pequena aventura existencial num outro momento da sua vida – a obra poética como um imenso palimpsesto (escrita sobre escrita sobre escrita).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha escrita foi sempre à mão, em todos os formatos. A popularização dos meios informáticos acabou por mudar um pouco este estado de coisas. Assim, o formato científico e o artigo de opinião passaram a ser escritos e pensados diretamente no computador. Numa altura da minha vida profissional realizei entrevistas que depois desgravei (passei-as a suporte escrito). Interessa-me essa fluidez oral e às vezes ensaio textos que são imaginados em suporte oral, gravados e depois desgravados. Ultimamente tenho feito notas no smartphone mas não exatamente escrita – apenas apontamentos para regressar mais tarde.
Voltando à poesia: por ter sido o meu primeiro formato e o mais sólido em mim, permaneceu sempre na caneta e no papel – pequenos cadernos que vou colecionando.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vejo as coisas assim: vamos abrindo a janela da criatividade em nós (acredito que existe em todos nós). No meu caso é com palavras… depois estamos abertos ao quotidiano. Há momentos que nos vão impressionando e que podem ser melhor ou pior descritos em poemas ou noutros formatos. Às vezes ponho-me a pensar como será esta interação num compositor ou pintor: um gesto capaz de se transformar em som, uma posição corporal que servirá de base à criação de um quadro abstrato. Fico curioso sobre como será ver o mundo a partir destas perspetivas.
A curiosidade é uma das formas, a basilar, para nos mantermos ativos – curiosidade e investimento, entusiasmo pela vida. Existe também a vertente mais instrumental ou concreta: ler outros e cultivar a admiração pelas outras obras – admiração e gratidão pelo que nos podem ensinar; uma outra tem que ver com a anotação das ideias e o regresso uma e outra vez a elas. Cito aqui um aforismo de Antonio Porchia: “Se se observar sempre uma mesma coisa, não é possível vê-la”. É preciso ver e viver muitas coisas.
Um outro aspeto é a autocrítica, a capacidade de sermos capazes de destruir, riscar textos, abandonar coisas que não conseguimos pôr a funcionar. Faço isso em muitos momentos do processo criativo ao tentar aperfeiçoar um poema, ao deixá-lo, ir mas também outros momentos a construção de um poemário, por exemplo: é um momento em que revemos um dado percurso criativo e nos apercebemos de tendências que nos foram acompanhando, ainda sem rosto, durante todo esse momento de construção.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que os primeiros textos são mais ingénuos e primitivos. O autor acredita sem saber bem em quê, sem quem conhecer os gigantes e a impossibilidade de ultrapassá-los. As vivências também costumam ser mais intensas: as primeiras perdas, os primeiros amores. Gosto muito de procurar esses primeiros textos dos grandes autores. Sem essa inocência, como depois caminhar? Penso que, se tivesse a possibilidade de me dirigir a mim mesmo, ir-me-ia abster de fazê-lo: a inocência é, em parte, sacrossanta…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há algo de paradoxal na posição que a segunda interrogação pressupõe: como leitor sou sempre um leitor incompleto, aberto ao inesperado. Aliás é essa procura do inesperado, da surpresa, que me impele à leitura. Dão-se depois encontros excecionais em que podemos pensar: era mesmo este livro que precisava ler… mas é sempre um movimento retrospetivo.
Da mesma forma, nenhum escritor conseguiu escrever as suas obras completas, há sempre uma parte do sonho que permanece por escrever. Eça de Queiroz, por exemplo, imaginou, e começou a escrever, uma narrativa sobre uma espécie de Fausto português: eis um livro que gostaria de ler… Mas esta abertura, esta incompletude da leitura e da escrita é a vida a intrometer-se em tudo isto e é a vida a única coisa que temos…