Rubens Zárate é escritor, historiador e antropólogo.
Não tenho nenhuma rotina estabelecida para escrever. Escrevo de forma interrompida, sujeita a largos intervalos. Atravesso meses, e às vezes anos sem escrever, até que uma certa carga elétrica se acumule. Então, no intervalo de alguns dias, componho séries de, em média, 20, 30 ou mais unidades de textos encadeados, que formam um conjunto coerente. Penso que são o resultado de algo que já vinha sendo elaborado de modo não muito consciente.
Geralmente, um texto nasce, para mim, de uma imagem mental e sonora, polissêmica, que se desdobra em outras imagens; e este texto, por sua vez, se desdobra em outros textos. Nessas fases de produção, escrevo incessantemente, sem qualquer preparação ou método, principalmente nas horas que precedem o nascer do sol. Algumas composições se fazem de forma mais linear e sequencial; outras, do final para o início, de baixo para cima, ou a partir do centro, ou simultaneamente, em todos os sentidos. Alguns textos são mais planejados; outros, mais sonâmbulos.
Cada livro ou série de textos é uma experiência singular, irrepetível, impossível de ser sistematizada. Houve uma época em que eu escrevia mentalmente, caminhando; depois anotava, para não esquecer. Ou no trem, registrando as cenas que via pela janela, no trajeto entre a Estação da Luz e a Vila de Paranapiacaba.
O que me mobiliza para escrever é o que chamei, certa vez, de “pulsão anarquista da escrita”, ou, depois, “o animal escuro que em mim se escreve” – uma certa tensão física, sensorial e afetiva que precisa ser descarregada ou elaborada. Esse processo, no entanto, não é tão espontâneo ou automático como pode parecer à primeira vista; ele é precedido por um trabalho de pesquisa, não necessariamente literária, e que pode ou não resultar em criação literária.
Quanto às travas do processo criativo, tive, sim, uma experiência de bloqueio há cerca de 40 anos, depois de uma fase de produção intensa que resultou em meus três primeiros livretos. Naquele momento, minha linguagem se desintegrou, levou ao branco da página. Depois disso, não voltei a ter qualquer tipo de trava ou angústia de vazio criativo. Também não sinto receio de rejeição ou expectativa frustrada; escrevo primeiramente para mim mesmo. Melhor dizendo: há um outro que escreve para mim.
A revisão é permanente. Meus textos não têm ponto final, estão sempre em aberto, sendo reescritos. Na polaridade “escritor arquiteto” X “escritor mediúnico”, pendo mais para o segundo termo, embora ambos estejam presentes. Não vejo a criação como produto, mas como processo, como projeção do psiquismo e do corpo. Se o psiquismo está sempre em movimento e mutação, como a escrita também não estaria? Escrituras são palimpsestos, uma rasura perpétua. Cheguei a desenvolver um conceito de “escrita-metamorfose” (alusão a Ovídio e Apuleio) para me referir a isso.
Manuscrever ou digitar, para mim, é indiferente. Minha relação com tecnologia não é de atração (sou arcaico), mas também não chega a ser de repulsa, embora seja tardia (só há algumas semanas comprei meu primeiro smartfone!).
A escrita vem, antes de tudo, da experiência vivida. Mas o vivido não é só biografia, inclui a leitura de outros textos. Não só textos literários; também historiográficos, etnográficos, científicos, todo tipo de escrita, incluindo noticiários, histórias em quadrinhos, almanaques populares, letras de canção popular, textos de alquimia. Sempre fui muito intertextual: uma de minhas primeiras experiências literárias (eu tinha uns 15 anos) era uma paródia do Manifesto Antropófago de Oswald! Felizmente, queimei esse recuerdo, pouco depois.
Comecei a escrever literariamente por volta dos quinze anos, em 1975. Antes disso eu compunha historietas, contos góticos ou de science fiction, trovas, redações rimadas e metrificadas, mas sem intenções propriamente estéticas. Estudava pintura e pensava em me tornar artista plástico, até que me coloquei a questão: como seria fazer pintura com palavras? Por isso minha escrita sempre foi predominantemente fanopaica, imagética. Também tive forte influência do cinema, especialmente Herzog, Pasolini, Buñuel. Aliás, eu viria a trabalhar como programador de cineclube, anos mais tarde.
É difícil dizer o que mudou de lá para cá; talvez eu tenha me tornado mais lúdico, mais místico, mas também mais intelectual nos jogos de linguagem. Outra coisa. Até 1990, eu escrevia predominantemente poemas. A partir de então passe a ser mais sincrético: troquei a noção de gênero literário pelo cruzamento entre lírica, narrativa, tradução, ensaio, e mais: entre o texto literário e o não-literário. Já não faço poemas, faço simplesmente escrita experimental. Talvez o fragmento, por seu caráter híbrido, seja o que mais se aproxima de minha escrita atual. Meu penúltimo livreto publicado, Lolita em Prado de Bode, é uma série de etnopoemas em prosa, mas pode ser considerado também uma novela, um roman à clef. E é, igualmente, um trabalho de pesquisa historiográfica e tradução.
No momento estou fazendo uma pesquisa linguística e historiográfica de obras de astrólogos helenísticos como Ptolomeu, Marcus Manilius e Firmicus Maternus, que talvez resulte em algum processo de criação, não sei. De certo modo, isso está relacionado a uma releitura e reescritura de meu terceiro livreto, Medium Coeli, mas em uma chave inteiramente diferente.