Rubens Akira Kuana é poeta, arquiteto e urbanista, mestrando em filosofia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depois do café, dedico um tempo para leituras. Até o almoço, faço um esforço para evitar entrar em redes sociais ou utilizar o celular.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que as leituras fluem melhor pela manhã. O trabalho de escrita pela tarde. Não tenho rituais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para escrita acadêmica, escrevo em períodos concentrados. Divido as metas em “blocos” semanais, quinzenais ou mensais, dependendo dos prazos estipulados pelas universidades ou revistas, por exemplo. Em relação a poemas, estabeleço metas diárias somente quando estou no processo de finalização de um projeto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Trabalhar com as condicionantes acadêmicas (normas, estrutura, concisão, etc.) muitas vezes consiste na minha maior dificuldade ao passar da pesquisa para a escrita. Pois a etapa de pesquisa é a virtualidade onde as ideias realmente estão soltas, chocando-se entre si. Qualquer caminho é possível de ser tomado. Mas, na medida em que passo da pesquisa para a escrita, sinto que vou “perdendo” algo dessa aventura especulativa. Até arrisco dizer que, quando passo da pesquisa para a escrita acadêmica, algo de singularmente divertido na atividade filosófica é deixado de lado.
Na poesia, assim como em um texto acadêmico, há condicionantes. Mas as condicionantes são de outra natureza. A partir das notas, cadernos e rascunhos, hesito em reflexões: tento identificar conceitos e temas. Compreender melhor a coesão do período em que as escrevi. Gosto de perceber as palavras e afetos que insistem. É como reler um diário. Esta tarefa também possui suas dificuldades: sinto que estou sempre por “começar” a escrever um poema. Quando um poema está finalmente “escrito”, me pergunto: é isto um poema? E, para mim, qualquer resposta para esta questão passa por encontrar o ridículo; o patético da poesia, e não o “sublime”.
Na verdade, quando sinto que há material o suficiente, percebo que a própria escrita é como uma pesquisa – e vice-versa. A pesquisa costuma envolver algum tipo de escrita: glosas, transcrições, anotações… A escrita é uma pesquisa no sentido de que muitas ideias só parecem ganhar forma quando tentamos traduzir um sentimento em palavras. Portanto, acredito que tanto a pesquisa quanto a escrita são processos que “constroem” mundos: imaginamos qual paisagem? Quais corpos? O sol ainda se põe no mesmo lugar? Qual o cheiro da grama naquela estação? Quão lento o tempo é capaz de passar? Se mover da pesquisa para a escrita e da escrita para a pesquisa é como se mover entre diferentes mundos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O tema da minha pesquisa de mestrado não é dos mais felizes: estudo as relações entre depressão e emergência climática. Toda vez que uma nova “anomalia” climática surge nos noticiários (por exemplo: o derretimento de geleiras, os efeitos das queimadas no pantanal, a extinção acelerada de animais e plantas) meio que dou uma travada. Então costumo tirar um tempo para descansar da escrita (retorno à pesquisa ou alterno entre diferentes projetos). O distanciamento me ajuda a reconhecer o que já fiz. Me ajuda a lembrar onde quero chegar e o porquê faço o que faço. Em relação à poesia, frequentemente traduzo poemas de língua inglesa. Então parece que estou sempre “escrevendo”, ou melhor, “reescrevendo” textos poéticos. Também levo as inseguranças mais graves para discutir em terapia (a saúde mental e os imperativos de produtividade na academia são tópicos urgentes!). E, sobretudo, conto com o fundamental apoio emocional das pessoas próximas a mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acho que reviso mais do que eu gostaria de admitir aqui. Como uma pessoa asiática, convivo com uma série de estereótipos que formaram meu corpo e minha mente desde cedo. Sinto uma exigência pelo “perfeccionismo”: um dos princípios do mito da “minoria modelo”. Isto é, como uma pessoa asiática, eu sinto que há uma grande pressão individual e social para que eu não erre. E, se eu erro, sinto uma culpa enorme. Tudo isso é muito perigoso, pois alimenta uma série sentimentos muito fortes de tristeza e punição dirigidos a mim mesmo. Como esses sentimentos de insegurança fazem parte do corpo em que vivo, há momentos muitos difíceis. Momentos em que não sei se estou caindo na mais pura paranoia: estou me auto-sabotando ou não? Pois reflito quase que diariamente sobre o que significa ser uma pessoa racializada: uma pessoa que tenta ser reconhecida no meio da branquitude; uma pessoa que tenta reconhecer seus próprios méritos no meio da branquitude. Consequentemente, tenho um número bastante restrito de pessoas de confiança com quem compartilho meus trabalhos antes de publicá-los ou submetê-los para publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tanto à mão quanto no computador (ou celular). Ocasionalmente, gravo algumas ideias através do microfone do celular. Evito moralizar ou fazer julgamentos definitivos a respeito da tecnologia e seus usos individuais e sociais. Confesso que acho bem chata essa ideia heideggeriana do mundo moderno dominado pela técnica, onde a humanidade está condenada pelo seu progresso científico. As empresas do Vale do Silício nos vigiam e decidem eleições? Sim. Os algoritmos intencionalmente nos alienam e nos deprimem? Sim. Mas o futuro não está dado. E como diria Yuk Hui, técnica sempre é cosmotécnica: onde houver mundo e vida, haverá alguma espécie de técnica. Ou seja, quais cosmologias sustentam nossas técnicas e tecnologias?
Portanto, a meu ver, a questão não é somente qual é a minha relação com a tecnologia, mas qual é minha concepção de mundo e vida? Obviamente, eu não “faço” mundos sozinho. Então qualquer concepção “minha” sempre será “nossa”. Mas existem várias coletividades, vários “nós”. Por exemplo, plantas são coletividades e a clorofila das plantas é uma técnica; uma tecnologia. Através da clorofila, a planta está ativamente produzindo um mundo que possibilita a existência do próprio mundo “humano”. Isto é, a planta possibilita as condições metafísicas e materiais de toda tecnologia “humana”. Os modos como diferentes tecnologias e mundos se relacionam é o que realmente me interessa.
Minha relação com a tecnologia, portanto, consiste em especular em como a tecnologia poderia nos ajudar a tecer alianças e estar ciente dos riscos envolvidos. Como criamos mundos? Que cuidado devemos tomar? Quem ouviremos desta vez? Por exemplo, às vezes eu gosto de imaginar tudo o que a internet poderia ser ou poderia ter sido antes de poucas empresas bilionárias (como google e facebook) colonizarem nossas vidas e sonhos. Gosto de imaginar outros mundos possíveis: mundos repletos de vida; mundos onde desejamos viver. Não falo de uma “harmonia hippie” ou de uma “redenção religiosa”. Falo do seguinte: o que poderíamos aprender com as pedras, plantas e/ou animais a respeito dos modos com que pensamos a vida? Sonhar é uma pragmática. E a vida é um tipo de “tecnologia” (o que não significa necessariamente um criador onipotente ou um mecanicismo finalista ou determinista). Em outras palavras: o que um fungo e a internet têm em comum? O que eles têm de diferente? Esse é o tipo de relação que eu gostaria de ter com a tecnologia: uma relação de hesitação; lentidão; entrelaçamento; complicação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que minhas ideias vêm do ambiente ao meu redor. Seja de um tweet engraçado, seja de alguma conversa ou observação na rua: uma pessoa, uma árvore, um gato… Acho que minhas ideias vêm desses intervalos de atenção. Por exemplo, quando eu passo minha atenção do celular para uma refeição. Ou do atraso do ônibus para um livro em minhas mãos. Se há algum hábito é o de tentar manter-me aberto ao mundo: aos seres vivos e “não-vivos” (o que achamos que não está vivo). É como uma prática de meditação. Mente, alma e ambiente relacionam-se de uma forma muito curiosa. E o corpo é essa “superfície profunda” que está no limite. Sempre no limite. Sempre questionando o que é um limite. Acho que minhas ideias vêm daí: limites e relações. Intervalos e atenção.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Desde que me formei em arquitetura e urbanismo e entrei no mestrado em filosofia, acredito que uma grande mudança é a tentativa do cultivo de uma atenção imanente. Eu leio um texto (meu ou não) e me pergunto qual é a concepção de tempo ou natureza que o texto assume. Disso decorre a leitura política e ontológica que faço do texto. Quais alianças o texto deseja traçar? Falo de complicações situadas entre gênero, raça, classe, sexualidade, religião, espécie… Gosto de, como diria Donna Haraway, “ficar com o problema” ao invés de “resolvê-lo”. Escrever, portanto, é um jeito de “ficar com o problema”.
Meu período de experiência em uma organização comunista também foi algo que me marcou muito. Aprendi como o liberalismo opera como produtor de “dados” e “consensos”: desde sua relação com a escravização até a despolitização contemporânea da esfera pública. O convívio com camaradas que se dedicam diariamente a conciliar teoria e prática é definitivamente uma coisa que tento trazer para a escrita. Isabelle Stengers disse certa vez que se “a denúncia ao capitalismo fosse eficiente, o capitalismo estaria morto há muito tempo”. Portanto, acredito que a escrita – tanto acadêmica quanto artística – não pode ser reduzida a mais uma denúncia, a mais um “insight”. É uma questão de pragmática. Mas esta questão vai muito além da escrita: são as alianças que formamos para além dos textos. É o alimento que colocamos em nosso prato. É a luta pelo fim de todo tipo de polícia e prisão.
Mas se o ato de escrita é um ato político, de que forma posso escrever sem cair em um estilo panfletário ou em uma “voz de autoridade”? Isto é, como escrever sem me tornar o sujeito moderno que “iluminará as massas”? Acadêmicos e poetas possuem uma forte tendência à egotrip. Preocupam-se em conquistar audiências, ao invés de formar alianças. Ou, pior, transformam alianças em um meio para conquistar audiências. Logo, a construção de alianças se torna espetacular e performática: hashtags, síndrome de branco salvador, gaslight, assédio, terror psicológico, silenciamento, pacto de mediocridade, tokenismo…
Poetas, em especial, gostam de falar que a poesia é uma “forma de resistência”. Mas quando eu vejo que a maioria do que é lido, editado e compartilhado no Brasil são homens brancos liberais do Sudeste, eu me pergunto: que tipo de resistência é essa? Em que momento a escrita se torna algo muito mais semelhante a um exercício de polícia? Formar alianças é uma prática que exige calma, escuta e cuidado. Crítica não é “cancelamento”. Racismo, machismo, elitismo… Não há como separar a poesia ou a academia de sua comunidade; de suas condicionantes estruturais.
E, por fim, me pergunto cada vez mais o que significa escrever com meu corpo ásiatico. Pois, como um homem amarelo, o que significa escrever no Brasil, um país onde as pessoas fetichizam a Ásia; religiões e corpos asiáticos? O que significa escrever em um país onde as pessoas raramente reconhecem que pessoas asiáticas sofrem racismo diariamente? Hoje, percebo que muito do que escrevi no passado foi para agradar uma audiência branca. Isto é, escrevia para ser aceito pela branquitude. Mas se eu pudesse voltar no tempo, diria para mim mesmo: “Rubens, você não é branco. Você nunca foi branco. Você nunca será branco. E você não entende seu corpo como um corpo racializado porque a branquitude é um dispositivo identitário de privilégios e opressão”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há um projeto filosófico que eu gostaria de escrever: se Lacan retorna a Freud através de Lévi-Strauss, ele também o faz através da filosofia leste-asiática clássica. Em especial, a filosofia chinesa. Conceitos taoistas e budistas de vazio e não-eu comunicam-se com os conceitos lacanianos de semblante e não-sentido. Uma leitura cosmológica da psicanálise seria capaz de perverter sua leitura hegeliana do tempo. Mas para tocar este projeto, eu provavelmente teria que aprender chinês, já que não há tanta coisa traduzida em português ou inglês. E eu com certeza precisaria de uma bolsa de doutorado. Mas ei, o que custa sonhar?
O livro que eu gostaria de ler e acho que ainda não existe é uma versão leste-asiática do clássico “O Atlântico Negro” de Paul Gilroy. Algo como “O Pacífico Amarelo”. Uma obra meio de introdução meio intermediária que relate a história entre a América e o leste da Ásia. A escravização de pessoas japonesas por missionários portugueses no século 16 e os efeitos do Ocidente no Japão imperialista; as diversas diásporas e os campos de concentração para japoneses nos EUA e Brasil durante a Segunda Guerra Mundial; a obsessão de poetas brancos pelo haikai e religiões asiáticas; até os dias de hoje com a febre do K-pop e o cinema sul-coreano, a iminência da China como potência econômica e a sinofobia dos supremacistas brancos. Seria um livro longo, mas extremamente necessário.