Roniwalter Jatobá é jornalista e escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As manhãs para mim são as mais comuns e rotineiras. Durante anos atrás, tomava o café matinal e ia trabalhar. O dia todo me ocupava em escrever textos jornalísticos para as revistas que fazia ou colaborações para outras editoras. Mais recentemente, agora já aposentado, a rotina mudou muito pouco: tomo o café da manhã, respondo e-mails, parabenizo os amigos que aniversariam no Facebook e, ali pelas 10h30, vou para a academia cuidar do corpo. Durante toda a minha fase adulta, sempre sobrevivi de outra profissão, seja como operário no ABC ou jornalista na Editora Abril. Só me sobravam, portanto, as noites e os finais de semana. Horas sagradas para a leitura e a escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor?
Escrevo geralmente à noite, em horas tardias. Gosto do silêncio e da solidão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo devagar. Sigo sempre o conselho do crítico Otto Maria Carpeaux, que dizia que o estilo é a escolha do que deve ficar na página escrita e o que deve ser omitido. É a escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. Na literatura é preciso muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca escolho o assunto dos meus trabalhos, às vezes tenho uma vaga intuição. Deixo rolar. São as personagens, no momento da criação, que delineiam o ritmo e o prosseguimento da história. A vida de Ciriaco Martins, um conto que está no livro Sabor de química, é um exemplo. Numa viagem à Bahia, descobri que, em Bananeiras, onde viviam meus pais, não havia cães nas ruas, um fato incomum. Perguntei a meu pai por quê. Ele disse que alguém, durante as madrugadas, havia matado todos os cachorros vadios. Pesquisei, então, tudo sobre o assunto, até as diversas formas de sacrificar o animal. Conheci as ervas que matavam instantaneamente, a técnica, a sutil aproximação com os bichos. Voltei a São Paulo com aquilo na cabeça. Uma noite, despejei tudo no papel. Ao alvorecer, tinha escrito vinte páginas. Levei para um amigo na Abril e pedi para ele fazer uma leitura. Desde que foi publicado, não mexi em nenhuma linha. É uma história cruel. É uma crítica dura à situação do país, uma análise que é obrigação do escritor fazer. Por que amaciar ou maquiar a realidade do país? Isso seria uma desonestidade intelectual. Os personagens dos meus livros são pessoas que vagam num mundo próprio e recriado artisticamente. Ou seja, eles são criados para gerar um comentário emocionado sobre as condições do ser humano na face da Terra. São personagens que, como eu, estão preocupados, num mundo difícil de viver e conviver, em realizar-se plenamente como seres humanos, em assumir sua própria humanidade. Na novela Tiziu, presente no volume No chão da fábrica, fiz assim. Agostinho foi criado como um personagem que, no final da vida, sabe que está voltando para uma desolação, para uma cidade natal que não existe mais. Acho que a saída dele de São Paulo, de ônibus, é cinematográfica. Quando a máquina do tempo se movimenta, acentua-se o pathos (no sentido grego, paixão que faz sofrer) do personagem. Está voltando para morrer, ele sabe. Por isso a revelação que São Paulo é uma ilusão, uma miragem. Agostinho e Ciriaco, portanto, refletem apenas o outro lado do sonho de desenvolvimento industrial do país. Gostaria que eles, às vezes patéticos, desesperados, mas humanos, iluminassem um pouco a miséria da nossa condição humana.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido bem. Não fico angustiado se a inspiração não vem. Não tenho interesse em publicar um livro atrás do outro. Assim, enquanto a literatura não vem, tenho me dedicado a breves biografias para a Editora Nova Alexandria. A coleção “Jovens sem fronteiras”, da qual fazem parte cinco livros que escrevi, tem como objetivo contar a infância e a adolescência de pessoas interessantes da história num caldeirão em que se misturam experiências de vida, fatos, reconstituição histórica e, para torná-lo de agradável leitura, uma pitada de ficção. As obras mostram o papel apaixonante de autênticos pioneiros e transformadores, cada um a seu modo, de respectivas sociedades de seu tempo. Para dizer a verdade, nunca tinha pensado em escrever um livro sobre Ernesto Guevara, o Che. Mas, a Editora Nova Alexandria me convidou para escrevê-lo para a coleção que já havia enfocado o mesmo período de vida de John Lennon e Noel Rosa, ambos recriados com um toque ficcional. Foi o que fiz. Assim, a história do rapaz atormentado pela asma, que o deixava prostrado na cama, mas cheio de garra nos estudos e nos esportes, ganhou um toque de ficção e acho que vem agradando bastante aos jovens, sobretudo para aqueles que usam uma camiseta com a imagem do Che e não sabem nada ou apenas que ele foi um herói em Cuba. Há escassez de bons textos para o público jovem. Num limbo entre o leitor adulto e o infantil, os jovens sentem falta de bons textos, aqueles que deveriam mostrar como é viver num momento de formação da sua personalidade. Até acho que os bons escritores deveriam dedicar um pouco de seu tempo para escrever para jovens. Numa crônica na Folha de S. Paulo, o poeta Nelson Ascher comentou sobre uma das responsabilidades sociais do escritor, que é a de também formar novas gerações de leitores. “A qualidade dos livros infantis e juvenis publicados no Brasil durante os decênios recentes não nos leva a nos ufanarmos de nosso País”, diz Ascher. “Romancistas, contistas e poetas que desejem assegurar a existência de leitores futuros não estariam perdendo tempo caso se empenhassem em escrever, de quando em quando, bons livros para as crianças e adolescentes.”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Cito novamente a novela Tiziu. O título é simbólico. Conta a vida de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a história de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada. É um dos meus textos mais elaborados. Trabalhei quase oito anos para terminar 134 páginas de um romance denso, mas agradável de ler. A versão final, depois de muitas mudanças, foi publicada na primeira pessoa, com o personagem Agostinho narrando suas aventuras. Cortei muito. Fugi da pieguice, até mesmo das armadilhas ideológicas e do risco da defesa de tese em detrimento da ficção. É bom saber que, ao lidar com esse assunto, o perigo dos estereótipos espreita a cada página. Cortei, assim, muita coisa. Exigiu muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos. Ah, sempre busco a leitura de amigos que escrevem e que me ajudam muito com as suas preciosas leituras. Devo muito a Valdomiro Santana, Luiz Guedes e Ruy Espinheira Filho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Venho acompanhando a tecnologia. No princípio escrevia à mão, depois passei para a máquina de escrever e, hoje em dia, uso o computador em todo o processo. Sou favorável à tecnologia, claro, mas gosto de ter em mãos o livro em papel. Me sinto gratificado em ter em mãos aquele objeto transformador. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para o escritor Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. “Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais”, diz o escritor peruano. “Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.” Hoje, acredito, foi esse o legado de Campo Formoso, e tudo o que a cidade e o Colégio Presbiteriano Augusto Galvão representaram, na minha adolescência.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que dois fatores importantes me fizeram arriscar na literatura: muita leitura e vivência. Nasci em Campanário, Minas, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam ali desde o final da Segunda Grande Guerra, quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. No início da década de 1960, minha família resolveu voltar para o sertão baiano, indo morar nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei no então Ginásio Augusto Galvão, uma escola presbiteriana, onde fiz a descoberta da literatura. Na pequena e agradável cidade, por sinal, havia um oásis cultural. Cinema e teatro. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Dr. Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos. Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. na caatinga. Fui, então, ajudá-lo no caminhão. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era bacana e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que conheci quase todos os títulos da pequena biblioteca de Campo Formoso e travei conhecimento com os textos de Dostoievski, Gogol, Kafka e muitos outros. Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970. Aqui fui morar em São Miguel, na casa de uma família baiana, um exemplo de solidariedade. Casa, comida, roupa lavada e amizade. Era fevereiro. Até abril bati muita perna em busca de trabalho. Na Nitroquímica, a maior fábrica de São Miguel Paulista, e que empregava quase todo mundo que chegava da Bahia, não tinha vaga. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em Versus, Movimento e publicações da Abril, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sou um dos poucos autores que escrevem sobre o migrante nordestino. Não tenho intenção de mudar de assunto ou mesmo buscar modismos, o que é comum em grande parte dos escritores brasileiros. Sou um escritor obcecado com o trabalho que me propus a fazer nos começo dos anos 1970, que é dar voz ao trabalhador em São Paulo, principalmente o migrante mineiro e nordestino que vive na metrópole. Um exemplo disso está presente no meu último livro, lançado pela Editora Positivo, o romance juvenil Alguém para amar a vida inteira. Dois operários, Emília e Jacinto, vivem uma grande e difícil história de amor. Quanto a voltar à escrita dos primeiros textos, estou sempre voltando. Estou sempre reescrevendo meus escritos antigos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há anos, pesquiso um assunto para um possível romance histórico. A história se passa em 1926, na Chapada Diamantina, Bahia, durante a grande saga da Coluna Prestes na região. Ainda não o escrevi e por isso ainda não me acho amadurecido para mergulhar nessa fascinante aventura. Quero unir nesse livro o jornalismo e a literatura, uma solução antiga, mas sempre de difícil realização.
Nesse caso, gosto do exemplo do escritor norte-americano Ernest Hemingway. Ele dizia que fazer jornalismo leva o escritor a escrever com clareza e simplicidade. Mas é bom lembrar que a literatura exige algo a mais, pois nela é essencial entrar na consciência dos personagens, inclusive em suas idealizações. O profissional da notícia precisa da capacidade de se concentrar em meio ao imediatismo das ocorrências diárias. O escritor precisa de tempo para observar, analisar, compreender e se aprofundar. É esse livro, sem título, que gostaria de ler um dia, mas ele não existe ainda.