Ronaldo Werneck é poeta e jornalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo minhas respostas respondendo ao próprio nome do projeto: “Como eu escrevo?”. Sempre com a esquerda. Não que eu esteja propriamente sempre de acordo com a esquerda (embora quase sempre sim), mas por imposição do destino: eu sou canhoto desde que me conheço. E não destro, mesmo porque destreza aqui passa longe. Na verdade, sou sempre lerdo (ou antes, atento, em particular no trabalho: leio, releio, reviso e reviso tudo o que escrevo), principalmente no começo do dia, que é sempre à tarde. Não, não tenho uma rotina matinal. Quer dizer, tenho sim: tomo café e durmo mais um pouco para descansar do trabalho noturno. Foi o que restou dos muitos anos de jornalismo e de “poemas & textos noturnos”, esse incessante escrever, esse trabalho noite aforadentro. Meu amigo, o saudoso poeta Afonso Félix de Souza, disse certa vez num poema pro grande cronista Antonio Maria: “Você, ave da noite/ Já eu ave do dia/ Antonio Maria”. Ou coisa parecida, pois estou citando de (e em) memória. Então, como Antonio Maria, também eu sou “ave da noite”. Assim começo o dia: dormindo, levado pelos sonhos meus. Mesmo porque não consigo – surrealismo à parte – sonhar os sonhos do outro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre à noite, como ficou claro no escuro da resposta anterior. Lendo e escrevendo. Anotando, anotando. Hábito antigo: sempre leio com uma caneta à mão, marcando uma palavra, uma frase, fragmentos que me chamam a atenção. De manhã, durmo. À tarde aconteço. Ou começo a. É quando as ideias voltam novamente a “clarear”, chova chuva, chova sol. É quando começo a retomar os trabalhos, de início lendo os jornais, vendo e-mails, compromissos etc. E me debruçando no(s) livro(s) que estou lendo no momento. É quando também vou rever o que escrevi (se e quando) na noite anterior e começo como sempre a corrigir, reescrever, como num ritual de preparação para retomar o fio da meada, continuar de onde parei. Esses escritos noturnos, automáticos, que só vão findar (quando findam) nas revisões feitas na parte da tarde do outro dia. E quando tenho trabalho sob encomenda, a coisa fica girando na cabeça. Antes de a escrita começar, faço uma coisa e outra, leio isso ou aquilo, coisas que às vezes nada têm a ver com o trabalho em questão. Parece displicência, mas não, estou sempre pensando no texto a ser feito, faço anotações esparsas aqui e ali, e vai e vem. Mas o texto mesmo sempre demora a sair, a tomar forma. Acaba que geralmente só começo a dar uma redação final na véspera do deadline. Aí realmente viro a noite e vazo o dia. Ave, Antonio Maria.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim e não. Se são crônicas para o meu blog, ou para outras mídias, como a Revista Eletrônica Rio Total, onde atualmente assino uma coluna quinzenal, a resposta é sim. Estou sempre anotando coisas aqui ou ali, a cada dia, até que eu considere o(s) texto(s) prontos. Já para os poemas, a resposta é não. O papo é outro. Eles surgem quando têm que surgir, obras do acaso (evoé, Mallarmé!). Às vezes passam dias, até semanas, sem que eu seja “convocado para o ofício”. Quando muito, me chama a atenção uma ideia aqui, uma palavra ali, quase sempre um observar do cotidiano, um contemplar a paisagem, as coisas, as pessoas. Gosto muito de dirigir e escrevo dirigindo, se é que me explico bem. É quando as ideias povoam minha cabeça. Às vezes, paro para anotar uma coisa ou outra. Muitos de meus poemas nascem assim, desse olhar com olhos de ver, um pouco como o flâneur de Baudelaire, como se experimentasse o mundo. Só que um flâneur motorizado, que troca o burburinho da cidade pelo silêncio do asfalto. São outros os tempos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O(s) poema(s) e o(s) texto(s) surgem sempre de anotações esparsas resultantes de pesquisas em vários lugares, principalmente livros. Antes, palavras grafadas nos moleskines, sempre a tiracolo nos outroras de minha vida; hoje, no bloco de notas do celular. Antes, como hoje, moleskines & celulares dormem ao meu lado: muitas vezes, sonho/acordo no meio da noite com uma palavra, uma frase, um verso a se incorporar ao poema e/ou texto em que estou trabalhando. Mas no processo de feitura dos trabalhos, tudo é de certa forma simultâneo. À medida que vou pesquisando (quando textos), ao tempo em que vou anotando palavras (quando poemas), o trabalho já vai sendo estruturado. Dessa forma, de repente percebo que as palavras, as anotações já se impõem, já dão forma & fundo ao “organismo” em construção: uma crônica, um texto de apresentação, um ensaio, um poema. Assim, pesquisa e construção do texto são um amálgama, de certa forma um só bloco que se relacionam na elaboração de meus trabalhos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já escrevi uma crônica sobre isso, que está em meu livro “Há Controvérsias 2”. Quando o texto trava, quando o poema emperra, pego o carro e saio dirigindo por aí, sem destino (ou caminhando às cegas, deixando que as palavras surjam). Para mim, é a melhor forma de arejar a cabeça. Caminhar ou “dirigir caminhando”. No fundo, sou um poeta peripatético. Quando me encomendam um texto, a primeira coisa que me vem à cabeça é que não vou dar conta. A encomenda fica lá, parada por um bom tempo, como se estivesse esquecida. Mas, na verdade, não: ela está sempre martelando meu subconsciente. De repente, assim sem mais nem menos – uma palavra, uma frase, alguma coisa que salta de anotações –, o texto vai surgindo, tomando forma. O processo é igual para poemas, crônicas e mesmo para os textos mais longos, como os livros de ensaios que já publiquei.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos são revisados várias e várias vezes antes de ficarem prontos. Hábito antigo e que conservo até hoje: jornalista, fui durante muito tempo revisor e copydesk. Nada é definitivo. Muitas vezes, o poema já publicado, vejo que poderia mudar uma palavra ou outra. Não acontece sempre, mas acontece. O que me deixa “contrariado”, pra usar um eufemismo. Às vezes, sou tentado a mexer num ou noutro poema de poetas que considero, só por exercício, puro jogar com palavras. Muitas vezes com sucesso. Um poeta que jamais consegui alterar nada: Manuel Bandeira. Seus poemas são redondos, mais-que-perfeitos.
Não, não costumo mostrar meus trabalhos para ninguém antes de publicá-los. Raramente, mas raramente mesmo, leio algum deles pra minha mulher. Nem bem pra pedir opinião, mas sim para sentir o som das palavras, o ritmo, a melodia enquanto leio. É só.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nos antigamentes desta vida, meus textos & poemas eram escritos à mão e depois levados pra máquina, a velha Olivetti 22, minha companheira de longos anos. Nela eles eram repassados e eu ia sentindo o ritmo do bater das teclas, o barulho “das pretinhas”, que passaram a ter o compasso de meus poemas. O que me dificultou muitíssimo quando adotei o computador. O ritmo sumiu, as teclas são estranhamente silenciosas. Custei a me acostumar. Hoje, os poemas (e os textos) já saem direto no computador, quer dizer, são construídos ali, passo a passo. O computador facilitou a montagem dos poemas & textos, pois o “recortar” e o “colar” são instantâneos, o que significa mais rapidez nos trabalhos. Hoje, nem mesmo faço anotações nos moleskines desta vida: como já disse, as observações são feitas direto no bloco de notas do celular. Mas confesso que o “control-c/control-v” dos computadores acabou por dificultar e muito a vida dos exegetas, pois não há mais aquelas anotações/revisões à margem do texto, que desvendavam o fazer, a construção, os “tiques” de cada escritor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem da observação do cotidiano, de olhar o mundo com olhos de ver à minha volta. Certa vez, um crítico escreveu que sou “um poeta do olhar”. De certa forma, estava/está certo. Sempre gostei muito de cinema e isso – a imagem – me influenciou/influencia muito na feitura de meus poemas: o olhar é meu sentido mais forte. O que não significa o não aflorar de outros sentidos em meus trabalhos: um som, um cheiro que de repente podem me levar a, vamos dizer, “um estado de poesia”.
Hábitos para me manter criativo? Não, isso não existe para mim. A criação (não a criatividade) vem muito do acaso, e aqui é bom darmos outro viva ao fundamental Mallarmé: un coup de dés jamais n´abolira le hasard.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Basicamente, o que mudou foi o alargamento do repertório, a constante chegada de novas palavras, novos insights, mas procurando não perder o “élan”, o ritmo dos tempos de mocidade – vamos dizer, a força dos primeiros tempos. O importante, não só nos poemas como nos próprios textos, é manter o ritmo, a sonoridade das palavras.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sou muito de pensar em projetos futuros. Comigo, de certa forma, é tudo “da hora”. Os textos, os poemas – obras do acaso – acontecem. Assim: comme ça. O que nos leva a “começar”. O importante é começar: as coisas vão se encaixando na sequência.
O que gostaria de ler e ainda não existe? Nossa, tanta coisa que já existe e que ainda não consegui ler. Como diria o Drummond: “Nem sequer li os textos das pirâmides/ os textos dos sarcófagos,/ estou atrasadíssimo nos gregos,/não conheço os Anais de Assurbanipal”. Mas olha aí um bom começo, um bom clique para um novo livro: “o que gostaria de ler e ainda não existe”. Quem sabe não começo a fazer? Assim: comme ça.