Ronaldo Cagiano é escritor, autor de Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando trabalhava – fui funcionário da Caixa durante 35 anos – seja em Brasília, onde vivi 28 anos; ou em São Paulo, onde morei dez, minha rotina matinal era praticamente imutável, pois após levantar-me, tomar banho e café, dirigia-me para o trabalho, em cuja rotina funcional de oito horas passava meu dia. Não havia muito a discrepar desse dia-a-dia costumeiro.
Agora, aposentado, vivendo em Portugal há um ano e meio, todo esforço canalizado para o trabalho destina-se a fruir o tempo disponível, o qual tento administrar sem o rigor cronológico exigido nas tarefas e obrigações antes compulsórias, como levantar e estar na hora certa no compromisso diário.
Enquanto antes levantava-me por volta das 6h, agora tenho maior flexibilidade e, ao acordar – não tão cedo nem tão tarde – após as abluções e café da manhã, eu e minha esposa, Eltânia André, fazemos longas caminhadas de nossa casa, em Estoril, até Cascais, margeando a orla marítima, trajeto de ida e volta em torno de 12 km. Hábito que não era possível na correria da vida prática de Brasília e São Paulo, cujos compromissos e demandas impunham-nos outras obrigações, que não nos possibilitava dedicar maior tempo à fruição da natureza e cuidar do bem-estar e da saúde.
Aqui, não só a condição de inatividade no campo formal e burocrático, mas também a tranquilidade social, o clima aprazível, a ausência de criminalidade e violência, sem assaltos ou sobressaltos, são fatores que permitem desfrutar dessa qualidade de vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Após essa nova rotina, sem compromisso com horários, trabalho e hierarquias funcionais, dedico-me, durante o dia a leituras e escrituras, mas sem nenhum rigor, disciplina ou esquema pré-estabelecido. As situações vão surgindo na medida do desejo, da necessidade, da oportunidade, enfim, tanto posso passar o dia apenas lendo ou somente escrevendo, como conciliar as duas tarefas, igualmente prazerosas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não me imponho qualquer tipo de roteiro ou ritual, mas pode ocorrer que em determinado momento, de acordo com o andamento do trabalho criativo, seja em poesia ou em ficção, seja leituras de livros destinados a prefácios, orelhas ou resenhas para jornais (ou mesmo revisão). Nesses casos, quando a atividade demanda maior concentração ou exige prazo definido, então, intensifico meu isolamento para dedicar-me a ela(s). Tudo depende do fluxo, seja objetivo, seja em razão de exigências íntimas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Antes de ser uma necessidade de expressão e comunicação do meu mundo e do meu olhar, o livro pode surgir de uma ideia pré-estabelecida ou mesmo aflorar como num insight. Não sou de realizar esquemas táticos para a criação de um conto, de uma poesia, de uma novela, como se fosse preparação para um jogo. Embora eu esteja atuando nas quatro linhas de uma página, delimito, minimamente, o que desejo iniciar, não como o construtor a levantar andaimes (que muitas vezes acabam aparecendo mais que a construção, como vemos em muitos edifícios que, ao ficar prontos, esqueceram de retirar essas estruturas). Posso fazer pequenas anotações de ideias ou frases que me surgem, como leitmotiv do texto literário a surgir, apenas para não esquecer alguns sentimentos, sensações ou emulações básicas, como uma espécie de lembrete do que pretendo seguir ou no que desejo avançar. Na verdade, não sei como começa, como continua nem como termina uma escritura, ela se insurge, emerge, se insinua de tantos modos e em tantos lugares, que antes de eu tomá-la, ela toma-me por inteiro. Só me socorro de pesquisas, muito raramente, quando percebo que há necessidade de confrontar a realidade com a ficção, em determinado momento, circunstância ou fato histórico que desejo migrar para o trabalho, para não fugir à coerência ou não cair inverossimilhança, ainda que na ficção a suprarrealidade possa impor-se como vertente ou viés.
No caso de resenhas, orelhas ou prefácios, costumo fazer anotações que facilitem meu trabalho de raciocínio crítico, uma orientação para não ser infiel ou divorciar-me do espírito da obra, seja no plano formal, seja no temático, de modo que possa fazer uma recensão que contemple os aspectos fundamentais aferidos na leitura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho a angústia permeada por esses condicionamentos que muitas vezes são uma tormenta ou fantasma na vida do escritor. Se há algum bloqueio ou interdição durante o processo de criação, seja de ordem mental, temporal, prática ou psicológica, tento não fazer disso um cavalo de batalha e contornar tais limitações – sejam elas provocadas ou involuntárias – e retomar mais adiante, com menos pressão ou estresse. Até porque, material ou financeiramente, nunca vivi da ou para a literatura, embora a viva densa e intensamente no meu dia-a-dia. Então, creio que estou livre dessa cobrança interna e externa. Se há algum projeto com prazo determinado, uma encomenda de um texto para revista ou jornal, ou sendo, por exemplo jurado de algum concurso literário, como aconteceu algumas vezes, nesses casos estou ciente das condições objetivas impostas e devo agir e trabalhar de acordo com esses parâmetros estabelecidos, de modo a que não comprometa um fluxo que exige prazo fatal.
Do mesmo modo, não alimento qualquer ansiedade com relação a uma obrigação de corresponder a essa ou àquela expectativa, seja de leitores, editores ou da crítica. Escrevo por necessidade vital e não para alimentar egos ou desejo de figuração ou visibilidade. A literatura para mim deve corresponder às expectativas que me são íntimas: escrevo porque tenho o que dizer, e no plano estético, o que importa é a responsabilidade com um trabalho que vá dizer ao leitor e tenha o mínimo de coerência, harmonia, objetividade, clareza e – sobretudo – linguagem. Escrever não é uma fatalidade, mas um eterno correr riscos e para tanto devemos nos preparar para o verdadeiro embate com o branco do papel. Como preencher essa lacuna sem perder a mão ou tino, sem enganar o leitor, sem menosprezar sua inteligência e seu desejo de descobertas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mesmo não tendo o comichão do preciosismo ou do detalhismo, imponho-me a mínima obrigação de ler, reler e revisar meus textos quantas vezes forem necessárias para correções, acertos, desbastes, enfim, um burilamento que retire do trabalho poético ou ficcional excessos ou inconveniências, seja de redação ou de estilo. Cecília Meireles dizia que escrever é cortar. E no mesmo sentido, a lição de Graciliano Ramos sempre é recorrente quando penso numa entrevista que ele deu na década de 1940 e que muito diz sobre o processo da escrita: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”
A respeito de meus textos, tenho sempre o rigor de solicitar à minha esposa, Eltânia André, também escritora, uma leitura prioritária, antes de revisá-lo. É sempre um olhar sincero e nivelador, que contribui para o aprimoramento de meu trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma relação de necessária e objetiva simbiose. Os recursos da tecnologia constituem-se em importante e eficiente ferramenta para o trabalho artístico, de um modo geral, seja para o texto, seja para as imagens. Não se pode desconhecer a praticidade dos sistemas, aplicativos, canais, links, plataformas à nossa disposição. O que antes era custoso para o processo criativo e editorial, extremamente mecânico e demorado, hoje temos um mundo de técnicas e dispositivos que nos socorrem e nos salvam, que maximizam o trabalho em todos os níveis e permitem ao escritor manejar a máquina a seu favor. Escrevo meus primeiros esboços ou anotações, tanto no computador, como em pedaços de papel, cadernos. Isso depende da circunstância, do local, das disponibilidades.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Elas vêm de situações distintas, ou mesmo díspares. Pode ser um refluxo da memória, uma viagem às lembranças do passado, uma ocorrência banal do dia a dia, uma conversa entreouvida na rua, em casa, no trabalho ou no transporte público. Ou mesmo a leitura de um livro, a crítica de um filme ou representações mesmo do inconsciente. Não há um território que não possa me oferecer matéria e circunstância para um poema, um conto, uma novela, um livro. Não me sucumbo aos hábitos ou a qualquer modelo ou planejamento. Posso dizer que esse aparente caos, a falta de uma prévia esquematização do que vou fazer, está na raiz daquilo que vou escrever e que, muitas vezes, nem mesmo sei.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudamos com o tempo, com as contingências, com as experiências. Cada ascensão ou cada queda são igualmente representativas. Cada passo é um aprendizado. Eu diria que as leituras ao longo da vida, não só a leitura dos livros e autores, mas a leitura da vida, a leitura do mundo, vão nos metamorfoseando, seja como seres, seja como criadores. Então, creio que minha escritura é caudatária desse processo natural, desse movimento permanente de transformações que fazem parte da condição humana e que nos afetam inteiramente, para o bem e para o mal. A literatura é estuário dessas águas que convergem para nosso leito existencial.
Se pudesse voltar no tempo, certamente deixaria de publicar algumas coisas que, ao olhar de hoje, são incipientes e sem qualquer nervura, nascidas do açodamento e da falta de apuro ou depuração. A experiência de vida é esse farol para trás que nos permite essa autocrítica, mas não impede o já feito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho projetos ambicionados ou a direção que me leve à grande obra. Escrevo para o que ainda não me é claro, sobre o que vai me libertar e não aprisionar. Então, resigno às surpresas de cada dia, ao que podem a literatura e a palavra provocar em mim, como escritor e como leitor. Cada livro que foi e cada livro que virá não me pertencem. Talvez encontro em Clarice Lispector algo que condiz com meu sentimento e minhas expectativas: “Sei lá por que escrevo! Que fatalidade é esta? Enquanto eu tiver perguntas, e não houver respostas, continuarei a escrever.”