Ronaldo Bressane é escritor, jornalista e professor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bem, para começo de conversa nem sei se deveria estar neste Como Eu Escrevo porque, a rigor, não estou escrevendo ficção. Desde que lancei meu livro de poemas Metafísica Prática e meu romance Escalpo, faz um ano, não escrevi absolutamente nada. Só ensaios, artigos e entrevistas para jornais e revistas, releases e projetos no meu trabalho no CCSP, ou planejar aulas, debates e palestras. Talvez então fosse o caso de responder a esta entrevista como se eu estivesse em 2015, quando escrevi o Escalpo. Mas aquela era uma situação ideal, um espasmo criativo, em que me senti de fato imbuído de uma missão na escrita, com toda a paudurescência neural conflitada no meu provecto MacBook. Não pode ser levada em consideração em relação à situação atual, que é uma zona, uma zona cinzenta, uma putaria criativa. Ou será que é bem neste momento agora que a futura criação está se formando? Ou será que nunca mais vou escrever nada depois desta entrevista? Tudo é possível. E ainda nem comecei meu dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Naquela situação ideal, quando participei da residência literária do Sesc Paraty, entre março e junho de 2015, tive pela primeira vez na vida uma rotina muito definida de trabalho em ficção. Acho que todo escritor merecia ganhar uma residência literária pra ver o que é bom pra tosse. Acordava com as primeiras badaladas da igreja em frente e ia correr uma hora e meia escutando Tame Impala ou LCD Soundsystem. Voltava pra pousada, mandava um café da manhã dos campeões, subia pro quarto, sentava a bunda e escrevia até umas 15h ou 16h, quase sempre ouvindo o Kind of Blue do Miles Davis ou o Afro Blue do Coltrane. Aí saía pra almoçar num quilo da Patitiba ou pra tomar um café no Pingado, no Centro Histórico, e ficava ali tomando notas num moleskine para as coisas que escreveria no dia seguinte, enquanto espiava as pessoas passeando na rua. De noite, a bordo de uma Labareda e de uma labareda e das coisas que tinha roubado do café da manhã (no primeiro mês estava totalmente liso, sem $ pra nada), ficava editando o que tinha escrito ouvindo Steve Reich ou Massive Attack, e de vez em quando procurava o silêncio olhando o mar e as montanhas da janela em frente à mesa. Pra cumprir o cronograma programado, às vezes ia até de manhã, até dormir em cima do MacBook (mas aí não dava mais pra correr, claro). No último mês eu corria todo dia, escrevia todo dia, e de noite ficava só nas Labaredas. Nunca me senti tão livre.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados?
Sou professor de escrita criativa, e, entre os membros desta seita cada vez maior (haverá o dia em que todo escritor esteja ganhando a vida com aulas de escrita? mas então quem serão os leitores?) já é quase um clichê afirmar que inspiração não existe: o que existe é trabalho duro, e se acontecer a inspiração, ela irá colhê-lo em plena labuta, como uma chuva imprevista em um dia ensolarado. Na situação do desconforto da zona do dia a dia, tomo notas, e um dia por semana organizo as notas em um arquivo. Mas são notas aleatórias, um verso, uma personagem, uma frase, uma ideia, um conceito, um título, um diálogo, uma imagem. Posso anotar uma dúzia no mesmo dia, posso passar semanas sem anotar nada.
Você tem uma meta de escrita diária?
Na zona de conforto de Paraty, eu gastei o primeiro mês desenhando a escaleta do livro, uma espécie de roteiro em que registrava cada cena que aconteceria em cada capítulo, pesquisava coisas, juntava ideias, fazia perfis psicológicos dos personagens, inventava células e padrões narrativos, recolhia uma citação ou uma aspa longamente guardada, rabiscava descrições de cenas. Nos dois meses seguintes, na verdade cinquenta dias, é que eu escrevi o romance propriamente dito. Ele foi todo planejado do começo ao fim, mas ainda assim deixei alguns espaços para que acontecessem coisas que me surpreendessem durante a fase da escrita. Agora que estou longe da situação ideal, uma hora vou fazer como sempre fiz: de madrugada, dou uma olhada ao léu naquele arquivo secreto que mantenho há quase trinta anos, chamo as Labaredas e descubro uma situação narrativa ou um poema ali encalacrados que me invocarão a escrita. Aí de manhã cedo, sem Labaredas, só no café, pego a escrita pelos chifres até que eu a derrube ou ela me derrube, o que vier antes. Mas tudo isso é mentira, porque atualmente não estou escrevendo picas, meus dias estão fervilhantes de trabalhos estranhos para pagar os boletos, temperados por alguns compromissos insólitos, como dar esta entrevista.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre é difícil começar, e o escritor que afirma escrever fácil ou está mentindo ou é o Paulo Coelho. Começar, recomeçar, continuar… é como subir uma montanha. Gostoso mesmo é descer a montanha, que é editar, embora descer a montanha possa detonar os teus joelhos e também possa ser perigoso, porque você está muito distraído olhando a paisagem e daí cataploft. A segunda coisa que mais gosto de fazer é reescrever, editar, emendar, cortar. A primeira, claro, é ler. Nunca deveria ter começado a escrever, devia ter ficado só na leitura, que também pode dar trabalho, se você levar a sério, mas dá muito mais prazer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei, como lidar, alguma dica? Gostaria muito de ter chegado a uma fórmula. Sou publicitário e jornalista por formação, então me condicionei a deadlines, recordes, marcas de performance para prosseguir, os quais invariavelmente quebro ou deixo para a última hora (viver e escrever como a última hora antes do deadline, eis uma boa definição para o horror ou para o amor). Estava relendo agora O Encontro Marcado do Fernando Sabino e é curioso como o Eduardo Marciano leva a natação tão a sério quanto deveria levar a escrita (mas ele não consegue, porque a boemia e o casamento burguês o desmotivam). Escrever é como nadar, você está sozinho, a chegada só depende de você, pode ter cãibras, dores, perder a concentração e o recorde, mas, se tiver fôlego, paixão e sorte, morre afogado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos?
Até que o editor fale “chega, preciso mandar pra gráfica”, estarei editando. No momento estou reeditando um romance que minha vida desorganizada tomou sete anos para terminar, o Mnemomáquina, porque a tiragem original esgotou e o editor pediu outra, que terá uns aparatos e dois capítulos inéditos. Até que ele me dê um ultimato, vou seguir reeditando.
Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sim, mostrei pra raras pessoas algumas das coisas que escrevi, amigos muito queridos que conhecem o que escrevo, e acolhi certas sugestões. Infelizmente nenhum foi tão amigo a ponto de sugerir “não faz isso, chega, desiste dessa merda, te livra!”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só poesia é que escrevo à mão, em caderninhos, e depois passo pro computador, mas o texto é praticamente o mesmo. Ficção eu comecei escrevendo à mão, depois passei pra máquina de escrever, e desde o começo dos anos 90 escrevo direto no Word. Já usei o OmmWriter para escrever, é um programa bem legal, muito limpo. Já usei bloqueadores de internet e de redes sociais para forçar a minha concentração, mas me flagrei roubando tempo de mim mesmo checando o tablet e o celular. Adoro editar no Word. Aliás estava lendo La Novela Luminosa do Levrero, em que ele conta sobre a procrastinação de tocar ao computador a sua bela novela luminosa, e pensei que a gente não se dá conta de como o Word influenciou brutalmente a literatura: imagine que Rosa e Machado nunca souberam o que era copiar-e-colar, o que era dar um encontrar-e-substituir, buscar-e-apagar repetições, inverter períodos e parágrafos inteiros em segundos. Precisamos exigir muito mais dos escritores de hoje porque eles têm muito mais moleza do que tiveram Dante e Proust e Joyce.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Deveria cultivar esses tais hábitos, mas creio em serendipidades e sincronicidades e acasos. Não fico loucamente buscando as ideias porque aí é que elas não aparecem mesmo. Já fiz de tudo: escrita automática, diários, atenção, desatenção, ciclismo psicodélico, uso de substâncias para atingir estados alterados de consciência, conversas aleatórias com desconhecidos na rua, jogos com meus filhos, cut-ups randômicos da internet, improvisos de blues no piano, conversas em bares, anotações de sonhos, roubos descarados da biblioteca, viagens pelos dicionários analógicos e de símbolos, lances de dados, I-Ching, tarô ou sexo tântrico, indução consciente de transes, propostas bizarras de texto para que eu deixasse o conforto da minha vidinha. No fim quase sempre acabei usando situações ou cenas ou frases que colhia na experiência direta da realidade objetiva e depois as torcia e as retorcia até que elas mesmas encontrassem ou reencontrassem seu sentido.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros livros?
Bem, há uns vinte anos eu atravessava madrugadas escrevendo tranquilamente. Hoje as velhas costas doem e me sinto mais fresco logo cedo – desde que eu não esteja começando algo, e sim continuando, porque nada pode ser mais intimidador do que a planície desértica da página branca pela manhã. Se pudesse voltar aos bons tempos, diria: não entre na internet. Nem para dar uma olhadinha. Nunca. É o pior vício que existe: o vício em notícia. Pode fritar o cérebro de um escritor. Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pelo Google, pelo Facebook, pelo WhatsApp, pelo Instagram e pelo Tinder, famélicas, histéricas e nuas, arrastando-se na porta de um café vagabundo na fissura de um Wi-Fi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou?
Escrevi dois romances, dois romances gráficos, três reuniões de contos e três de poesia. Embora tenha escrito – outro dia contei – mais de mil peças de jornalismo em vinte anos, sinto que preciso tentar um livro de não-ficção, uma biografia, um ensaio, uma longa reportagem.
Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que eu gostaria de escrever aquele livro que estou escrevendo toda noite quando vou dormir mas cuja narrativa se desvanece quando eu acordo, se é que acordei mesmo.