Rogério Menezes é jornalista e escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo invariavelmente às 5 da manhã. Abro a janela da sala de ponta a ponta e deixo dia raiar o interior do apartamento. Contemplo o nascimento do dia durante algum tempo. Checo e-mails, postagens do Face e do Instagram. Tomo duas xícaras grandes de café, puro com pão e manteiga e alguns outros trecos. Consumo pão integral quase sempre. Mas vez em quando devoro pães de sal (como são chamados aqui na Bahia) e algum bolo regional delicioso, e calórico, que compro em padaria ao pé da ladeira. Mantenho rotina matinal rigorosa há 30 a nos, desde quando morava em São Paulo. Comecei, em 1989, dando dez voltas, depois vinte, na Praça Buenos Aires, em Higienópolis. Depois fui andando mais. Em toda a cidade e em toda a cidade que visito a rotina é mantida. Já cheguei a andar 30 km a cada manhã. Hoje, com o sol retumbante do sertão baiano, ando 10, regularmente. Sempre, claro, levando garrafa de água de 300 ml.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo em qualquer hora do dia. Durante as caminhadas, surgem as minhas melhores ideias e sempre levo algum caderninho para anotar. Quando esqueço, paro em algum lugar, peço pedaço de papel e caneta, e anoto. Caminhar é determinante na minha literatura. Quando estou escrevendo algum romance, várias decisões são tomadas enquanto ando. Mato ou não mato tal personagem? O personagem tal será mesmo gay? Não será ‘forçação’ de barra tal personagem agir dessa forma e não daquela? Enfim, a minha literatura (tanto ao escrever romance, crônica, ensaio ou poemas curtos) não existiria se eu ficasse parado em casa sentado em frente ao computador e esperando a ‘musa’ da arte me visitar. No caso específico dos quatro romances que publiquei, eu sempre fui metódico no meu caos (rs). Caminhava pela manhã, e escrevia à tarde. Ao sentar para escrever sou disciplinado. Não escrevo até de madrugada. Estipulo um prazo (de 14 às 20 horas, por exemplo), e depois paro. E me desligo da realidade sobre a qual escrevo. Vejo uma novela (quando havia alguma novela suportável), assisto a um telejornal, ou qualquer bobagem que encontre no meu ‘zapeamento televisivo’. Gosto de ouvir música quando escrevo. A música me acelera os insights e os fluxos de consciência explodem aos borbotões. Escrevi meu segundo romance – Três Elefantes na Ópera, concebido em Brasília em 2000 – ouvindo o tempo todo o CD da capa preta do Metallica. Não tenho rituais de preparação para escrever. A própria escrita se torna meu ritual e sigo a trilha que a minha imaginação e a minha memória determinam.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando escrevo um romance escrevo todos os dias e, como também sou jornalista, estipulo prazos. Tipo ‘este romance deverá estar concluído no dia tal do mês tal’. E, como essa disciplina é fundamental no jornalismo, no qual os deadlines são fatais, nunca ultrapasso o prazo que predeterminei. Esse ´prazo de conclusão’ inclui desde a concepção do primeiro plot – (que pode vi rar plot completamente diverso durante o processo, e as minhas caminhadas costumam derrubar ideias que antes achava geniais e que, de repente, percebo que pode haver uma solução literária melhor) – até a última palavra escrita. Costumo mapear a trama. Coloco personagens e situações no que chamo pequenas gavetas (reproduzidas em folhas de papel sulfite) e escrevo cada parte, depois outra parte, e assim sucessivamente. Não costumo abandonar uma ‘gaveta’ não resolvida e abrir outra. Só abro outra ´gaveta’ quando a dou por fechada (temporariamente). Seguindo esse ordenamento e ao fechar (temporariamente) todas as gavetas, tudo começa outra vez. Cada ‘gaveta’ é reaberta, remexida, destroçada, completamente descontruída. Esse processo de ‘reescrita’ e de ‘desconstrução’ é feita ene vezes até eu considerar cada gaveta ajeitada ‘satisfatoriamente’. Sou implacável. Sou capaz de destruir uma gaveta inteira, se não a considerar satisfatória. Ao ter todas as ‘gavetas’ devidamente arrumadas, na ordem cronológica ou não cronológica que estabeleci, releio e refaço tudo aquilo que for necessário refazer. Depois leio e releio quantas vezes achar necessário. Apesar desse processo de escrita aparentemente árduo, mas que faço com imenso prazer, não costumo levar anos escrevendo um romance. Entre a primeira ideia e o ponto final, finalíssimo, necessito de não mais de seis meses.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar?
Como você se move da pesquisa para a escrita? Como disse, faço um mapeamento prévio do romance (plot principal. secundários, personagens, perfis de personagens, cenários et al), mas não fico acumulando notas. Depois do mapeamento, eu vou direto ao assunto. Sento na frente do notebook e mando bala. Todos os quatro romances que escrevi pareciam que estão guardados em algum chip do meu HD, com informações que se guardaram cumulativamente a partir das ocorrências de minha própria e da vida de outrem que eu presenciei ou ouvi alguém contar. Minha pesquisa é a minha memória. E minha invenção é a memória. Memória e invenção são faces de uma mesma moeda. O que inventei foi realmente inventado, ou eu vivi e agora acho que inventei? O que ‘memoriei’ eu realmente vivi, ou seria invenção. Enfim, de fato acho que invenção e memória são unas, inseparáveis.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando escrevo não me preocupo com prazos (pois sei, herdei do jornalismo, que prazos ‘devem’ ser cumpridos – e serão cumpridos). Ter prazo estabelecido para entregar um romance, uma crômica, um ensaio me inspira – nunca me pira (rsrs). Não tenho travas de escrita. Eu tenho sempre o que escrever. Claro, o primeiro rascunho de um livro é sempre medonho, ilegível, necessariamente tosco. Mas vou escrevendo o que me vem à cabeça – claro, dentro do ‘plot’ predeterminado – sem amarras, e sem parar. Depois, se estiver ruim, e sempre estará, ou precisará de reformas estruturais básicas ou profundas até a finalização total do projeto. Página em branco não existe pra mim. Eu disparo letras que logo a não tornam página em branco. Não penso no leitor quando escrevo, não penso no futuro do país quando escrevo, eu me deixo possuir pelas palavras que, desesperadamente, querem sair, escapar de mim. É aquele lance do Carlos Drummond de ter palavras dentro dele procurado canal. Eu tecnicamente funciono muito bem como canal para essas palavras que escapolem de dentro de mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio e reviso meus textos ene vezes. Tantas vezes quantas vezes forem necessárias. Sou capaz de cortar 40 páginas de texto na véspera do prazo de entrega do livro à editora. Não tenho ‘pena’ do meu texto. Uma frase bonita, mas excessiva, desnecessária, deleto, mando pro inferno, sem pejo se for preciso. Releio, releio e releio, mas tem certo momento que tenho de dizer ‘acabou, Rogério’, o livro se fez. Só volto a lê-lo quando recebo as várias provas de revisão que serão necessárias. Mas nessa fase, me atenho a concordar (ou não) com ‘erros técnicos’ eventualmente apontados por revisores. Livro pronto, lançado, na vitrine das livrarias, o máximo que faço é apreciar a beleza da capa (em três dos meus quatro romances tive capistas geniais). Nunca mais o lerei. Nunca reli um livro meu. Maktub. Ah, sim: não mostro nem peço palpite a ninguém sobre os romances que estiver escrevendo ou mesmo quando já o considero pronto. O livro segue diretamente para a mão do editor, que fará, ou não, os reparos necessários.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apenas meu primeiro livro, lançado em 1984, eu escrevi em máquina de escrever. Nunca resisti à tecnologia dos computadores. Apaixono-me por meus notebooks como se me apaixonasse pelos gatos que tive. Este mesmo, um HP espetacular, mas já, digamos, um gato bem idoso, eu amo de paixão. Não conseguiria viver sem ele, se me permite a licença poética. Nos últimos dois anos, quando escrevo crônicas dominicais para o jornal CORRREIO* e para o site, certa nostalgia da infância me invade e eu de vez em quando escrevo texto inteiro à mão, usando lápis, e depois transcrevo para notebook HP vermelho-iansã (rsrs).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias emanam da vida que vivi e vivo. Sou um eterno voyeur. Desde criança me interesso por tudo que via e ouvia. Sempre fui muito curioso. Sempre li de tudo desde muito. Das fotonovelas ‘Capricho’ de minhas irmãs às obras completas de Jorge Amado e Graciliano Ramos que enfeitavam a estante do meu pai. De Recruta Zero e Mandrake à revista Realidade. Deve-se ler de tudo. Não apenas os grandes clássicos da literatura, os quais li em grande parte. Tudo, tu-do, interessante ao escritor, e tudo, sendo necessariamente redundante, está em todos os lugares e leituras. Hábitos para se manter ou se tornar criativo não existem, são pura balela. Ou se é criativo. Ou não. É sina.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevo da mesma maneira apaixonada e visceral com o qual escrevi meus dois primeiros contos aos 18 anos de idade, e me senti o cara mais feliz do mundo quando os vi publicados no Suplemento Azul do Jornal da Bahia, de Salvador, em 1972. Chamavam-se ‘Eu, Sociedade Anônima’ e ‘Chico Viris. Amo a literatura e o cinema (e não me tornei cineasta porque na minha adolescência eu não tinha dinheiro para comprar uma Super8) desde que me entendo por gente. Está no meu sangue.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho todo os projetos do mundo, mas talvez irrealizáveis neste país inacreditável e inominável no qual vivemos. A ver. Já li todos os livros que gostaria de ler e não diria que todos os melhores livros do mundo já foram escritos. Mas digo sem pejo. Grande parte já foi.