Rogério de Almeida é professor associado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não gosto de acordar cedo e sempre que possível me demoro na cama, momento em que organizo mentalmente meu dia e planejo as atividades, inclusive as de escrita. Não gosto de rotina, mas na medida do possível procuro escrever pela manhã, quando as ideias são mais claras e a concentração maior. Como pratico gêneros muito distintos de texto – artigos e livros acadêmicos, por vezes didáticos, contos e poemas, pareceres e relatórios etc. –, adoto estratégias diferentes para cada um deles. Os acadêmicos são os que me exigem maior concentração, então gosto de começar com eles. Também me dão prazer escrevê-los, então dedico maior cuidado também, relendo trechos já escritos, depurando o estilo, repensando sua organização. Quando me canso ou considero que cheguei a um beco sem saída e precisarei de tempo para meditar sobre o caminho a seguir, passo aos pareceres e relatórios, que são textos técnicos, seguem um padrão mais enrijecido e demandam menor esforço. Raramente gosto de escrevê-los – são maçantes – e, embora seja uma atividade de trabalho, sinto que meu tempo está sendo desperdiçado. Tento terminá-los logo para me ver livre. No caso dos contos e poemas, já me dediquei muito tempo a eles, mas agora escrevo esporadicamente. São os que mais me dão prazer, mas como também não tenho compromissos e nem pretensões em relação a eles, me dedico, atualmente, pouco. Em 2017 redigi um conto especificamente para um concurso – Festival + Arte + Cultura – promovido pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP e, como havia prazo para inscrição, segui uma rotina mais regrada, embora o tenha feito de maneira prazerosa, por vezes rindo sozinho e, claro, motivado pela perspectiva do prêmio, o qual de fato conquistei. Os poemas escrevo somente sob inspiração. Pode ser a qualquer hora do dia, mas é mais comum à noite. Muitas vezes não os escrevo em papel. Componho-os mentalmente e, então, os esqueço. Obviamente, considero o processo de escrita mais importante que o resultado, razão pela qual me perdoo pelo egoísmo de escrevê-los só para mim e de não durarem mais que o tempo de imaginá-los. Sonho com o dia em que todos meus textos serão assim, escritos internamente, desmaterializados, efêmeros como os pensamentos, os devaneios e as sensações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Os rituais são reservados para manifestações religiosas e, como não creio, não sigo nenhum ritual. Também não me agrada pensar que atividades triviais devam ser precedidas de rituais. É evidente que não descuido do sentido figurado do termo, que tem a ver com alguns procedimentos preparatórios para uma determinada atividade. Nesse sentido, também não sigo nenhum ritual. Posso escrever em meu escritório particular, no gabinete da universidade, em um café, em viagem. Gosto do silêncio, mas às vezes ouço jazz ou música erudita enquanto escrevo. Quanto à hora do dia, pode ser qualquer uma. Por vezes começo a escrever pela manhã e sigo por toda a tarde, entrando pela noite. Há dias em que escrevo apenas pela manhã, outros somente na parte da tarde. Durante muito tempo escrevia durante a noite, principalmente quando trabalhava com outras atividades que me deixavam longe da escrita. Com o tempo, fui abandonando essa prática, primeiro porque pude escrever durante o dia, e depois porque, por muitas vezes, me vi em dificuldades de parar de escrever, comprometendo meu sono e, consequentemente, no dia seguinte, o meu humor. Prefiro, então, parar mais cedo e fazer outras coisas, para retomar a escrita no dia seguinte descansado. À noite, portanto, reservo meu tempo para ler ou assistir filmes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como trabalho com diferentes gêneros textuais, escrevo todos os dias, mas não necessariamente textos acadêmicos, que demandam organização de ideias e apuro no estilo. Estes textos dependem da realização de leituras, de energia, concentração e de um tempo ininterrupto maior. Se tenho outros compromissos e disponho de uma ou duas horas somente, se estou muito cansado, se ainda não sei direito o que vou escrever, opto por realizar outras atividades. Não obstante, é comum escrever diariamente ou quase. Não estabeleço metas diárias, pois há dias em que o texto flui mais que outros. Entretanto, como gosto de terminar antes do prazo, faço contas para dimensionar se preciso de um esforço mais concentrado ou posso ir com mais vagar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Raramente compilo notas. Procuro assimilar mentalmente o que estou lendo. Por vezes, decoro o número da página ou mesmo a ideia que quero reter de um autor. Se for preciso, dobro a folha cuja ideia poderá me auxiliar. Se estou com uma caneta à mão, o que é raro, faço breves marcas no texto. Gosto de pensar direto no papel, ou melhor, na tela. Por isso, se tenho uma ideia, vou ao computador e começo a escrever. Geralmente, visualizo a estrutura do texto, os grandes argumentos por assim dizer, e vou construindo o miúdo, esmiuçando as ideias, ou traduzindo a imagem-ideia do texto em ideias-palavras. Assim, eu sei vagamente, superficialmente, o que quero escrever, mas é no processo de escrita que essas ideias se resolvem, se interconectam, se estruturam. É um processo semelhante à pintura de uma tela. Há um esboço de traços rápidos (na minha cabeça) sobre o qual vou trabalhando as pinceladas, as cores e definindo as formas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ainda não vivi uma experiência de trava da escrita, então nada posso dizer sobre isso. Sobre procrastinar, reservo a outras atividades, jamais à escrita. Com a escrita, mantenho uma relação de ansiedade, então, se tenho de lidar com um projeto, principalmente se for longo, procuro começar logo. É escrevendo que controlo a escrita, que a domino, como se fosse um jogo. Escrever é jogar. Conta-se com a sorte, com o acaso, mas dentro de regras estabelecidas, às quais, sempre que possível, como num jogo, procuramos burlar. Por exemplo, em relação ao livro que atualmente escrevo, que será longo e tem um prazo curto para entrega. Tão logo soube do projeto, me pus a escrever um capítulo. Tendo-o terminado, parti para outros. Só então, quando estava com o trabalho pela metade, depois de cinco ou seis capítulos escritos, é que percebi que aquele primeiro capítulo não caberá no livro. Ficará de fora. Virará outra coisa. Esse tipo de procedimento não é comum, mas lanço mão dele algumas vezes. Escrevo uma ou duas páginas de um artigo, por exemplo, quando então percebo que não é por esse caminho que seguirei. De pronto, deixo-o de lado (poderá ser aproveitado para outra coisa) e parto para outro caminho. Todo jogo tem seus lances frustrados. O importante é seguir jogando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso enquanto escrevo. Releio parágrafos, frases, modifico-as. Quando termino o texto, reviso uma única vez. Pode soar pretensioso o que vou dizer, mas é o oposto disso. O excesso de revisões, prática não só comum como estimulada por muitas pessoas que escrevem, denota, para mim, insegurança, amadorismo e combina melhor com quem está aprendendo a fazer algo e precisa refazer tantas e tantas vezes porque não sabe o que quer ou não sabe fazer o que quer. Um texto deve dizer algo de um determinado modo. Se sei o que quero dizer e sei como quero dizer, não vejo razão para ficar revisando e reescrevendo diversas vezes. O jogo foi jogado. Partamos para a próxima partida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, sem rascunho. Na adolescência escrevia à mão e depois datilografava. Raramente conseguia escrever direto à máquina. Mas desde que utilizo o computador para escrever – 1992, 1993 –, escrevo direto nele. Como fiz curso de datilografia, digito rápido e sem olhar para o teclado, e isso torna o processo bastante confortável, bem mais que escrever à mão, o que nunca faço, à exceção de brevíssimas notas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não há hábitos para se manter criativo. Aliás, a criatividade tem a ver com quebra de hábitos, com o surgimento, inesperado, do novo. Raramente alguém cria alguma coisa. A maior parte do tempo estamos todos reproduzindo ideias já ditas, já pensadas, conscientemente ou não. No máximo, se logramos êxito, conseguimos dizer algo interessante de maneira nova. Mas é possível, na vida, e com sorte, termos uma ideia criativa. Einstein teve a dele. Descartes também. Nietzsche certamente. Machado de Assis. Clarice Lispector. A lista poderia ser longa, muito longa, pois de fato há vários e várias. Mas salvo raras exceções, as quais agora não me ocorrem, esses criativos tiveram, de fato, uma única ideia criativa, a qual reproduziram ao longo da vida, de modo diverso, é verdade, mas ainda assim, uma única ideia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A segurança. Quando se domina uma técnica, no sentido grego de techné, isto é, uma arte, fica mais fácil realizá-la. O estilo torna-se uma segunda natureza. Não é preciso pensar muito em como dizer, isso está internalizado, então ficamos livres para nos concentrarmos somente no que queremos dizer. Quando era estudante universitário, assisti a uma palestra do José Saramago. E perguntaram sobre seu estilo, como ele trabalhava isso. Sua resposta foi que não pensava no estilo, apenas na história que queria narrar. O estilo já estava internalizado. Ou seja, não era preciso controlá-lo. De fato, não controlamos o estilo. É o estilo que nos controla. Ou, em outros termos, o estilo sou eu. Desse modo, aceito minha tese como ela foi escrita, pois ela é o que eu era então. Uma fotografia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro escrito segue sua vida própria. Seu sucesso ou fracasso não me dizem respeito. Aliás, o mais comum é que meus textos preferidos sejam também os preteridos. O que escrevi de melhor, na minha opinião, é o que menos se leu. Mas que tenho eu a ver com o leitor? O leitor está interessado no que há dentro do livro, pouco importa a pessoa concreta, de carne e osso, que colocou as palavras lá dentro. Desse modo, fixo-me ao processo, ao momento presente, ao projeto de agora. Meus livros passados seguem sua vida como se tivessem sido escritos por outro. Não me interessam mais do que me interessam outros livros, exceção feita à minha vaidade, que se regozija de ver seu nome, e não de outro, na capa dos livros que escrevi. O que vale para o passado também vale para o futuro. Não me preocupo muito com os livros que virão, se é que virão. Concentro-me sempre no prazer presente, no que estou escrevendo agora. Mas meu projeto mais ousado, que de fato um dia quero realizar, é parar definitivamente de escrever. Só então meu objetivo estará realizado.