Rodrigo Qohen é poeta, jornalista, editor e pesquisador, autor de “Entre a vertiginosinagem” (2018) e “Dente Desperta” (2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tentando recuperar a escada de cordas que me levaria de volta às nuvens. Acordar é o momento mais dramático do dia, é reconstruir todo o universo num estalo. E não há grande obra sem grandes sacrifícios. Muitas imagens partem no romper lamentoso da lama…
Dependendo do que o subconsciente trouxe pra retina, o dia muda – ou canta. O momento que mais se repete é do café quente embaçando as lentes dos óculos e abrindo os poros para que eu absorva o mundo e me molde às informações diárias – entre demandas, desejos e desbundes.
É importante também tentar perceber a Linguagem dos Pássaros para captar sugestões, avisos ou poesia. Como o papa-taoca, que avisa os índios guarani quando tem jaguar por perto. É uma linguagem ouvinte das vibrações que relacionam os elementos do mundo, conectando-os e anunciando o que virá, como na vidência. Para a inspiração, escuto dos pássaros e vejo nos sonhos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando o Sol se esconde, acende um farol dentro. Não no peito, mais pra cima. O peito é magmático e derreteria os fusíveis da lâmpada ou a explodiria num buquê de querosene incandescente. O que esse faz é manter a caldeira quente com as sensações líquidas. O cérebro, por outro lado, cria o cenário ideal para a luz propagar. Está perto dos melhores receptores já criados, e ainda temos as sinapses fazendo metade do trabalho elétrico. Os pensamentos tempestuosos fazem o resto. Eu me guio quando projeto-os numa superfície lisa e, quanto mais distante ela estiver, melhor. Assim o caminho se alonga e posso colher os frutos ao longo dele.
Minhas reflexões preferem o silêncio para projetar o grito com alcance e durante a madrugada elas encontram a campina. Sou aquela única janela iluminada do prédio. De cortina fechada, mas com sugestão de vida e selvageria. Qualquer coisa pode estar acontecendo lá dentro, enquanto rituais mágicos saem pela ponta dos dedos em movimento. Há escritas por encomenda que exigem mais esforço de vontade, mas a poesia – sempre livre – se dá ao deixar o ânimo escoar pelos punhos. Como uma capoeiragem com a própria sombra.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meta diária é a exaustão de mim. Se o dia, por si só, é desgastante, não preciso me esforçar. Se me aguento até o quase-fim, ele só termina quando canso da minha presença. Só acaba quando eu esgotar todas expressões faciais ao mirar no espelho lunar. Isso se estou sozinho, claro. Em companhia, ou embriagado, desgasto-me em conjunto com outro(s) espírito(s).
Qualquer pequeno momento pode ser aproveitado e virar retalho da colcha. Minhas caminhadas são quase todas ébrias, com os pés ziguezagueando tanto quanto a caneta no bloquinho de anotações. Muitas vezes as letras saem deformadas, intraduzíveis, e na releitura futura tenho que reinventar um significado pra elas. Quando estou em transporte, nunca tapo os ouvidos com trilha sonora. Posso ficar horas encarando a esperança de algo, como Pandora olhando pro fundo do baú. Mesmo lendo, deixo as antenas ligadas. Já deixei de descer no meu ponto para terminar de escutar história alheia. Afinal, não se coloca ponto em lugar de vírgula.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começo com riscos. Eu coleciono esses sedimentos e deixo-me encher. Ao deparar em combustíveis, doo calor. Às vezes algumas notas reagem espontaneamente e magnéticas umas com as outras, outras eu alimento forçosamente como um bebê que só quer brincar. Algumas caem em sacolas etiquetadas com frases sortidas até o recheio ganhar volume o suficiente pra virar poema; outras florescem com a chuva natural. O corpo vem sempre no final, no modelar da carne.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Me proponho à leitura como preliminares. Umedeço os lábios antes ir às vias de fato. Tenho referências e anotações antigas sempre a explorar. Posso começar me editando antes de seguir com a extração do óleo criativo. Algumas travas podem ser desobstacularizadas a partir dessas práticas, de outras, ou de exercícios, como escritura automática.
Quando os acontecimentos ao redor estão sóbrios de inspiração, olho pra dentro. No desespero de encarar uma folha irreversivelmente branca, fecho os olhos e tento ver além dela. Como se o mantra abrisse o terceiro olho. Assim permito que as imagens fluam livremente no universo de repertório, sem a distração do cotidiano cansado.
A ansiedade só diminui enquanto seleciono e preencho as superfícies com combinações de palavras. Acho inevitável sentir essa apreensão com os projetos não-concluídos e tento, entre muitos fracassos, usar a sensação de maneira mais saudável: servida como combustível, em vez de líquido corrosivo. Não ajuda deixar a angústia enterrada nas profundezas. Então trabalho nela, mergulhando nessa piscina de agulhas, para buscar a agonia pela crina, montar e direcioná-la pra frente. É o sucesso, não? O prêmio pela sequência bem-conduzida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um texto pode parecer concluído diversas vezes. Publico não após o parecer concluído, mas até eu me cansar daquilo. Se começa a feder, a letra vai pra lata; se tem brilho, deixo irradiar.
Enquanto não finalizo, vou (me) transformando (n)ele. Corto, colo, estico, aperto, moldo, mastigo, engulo, vomito. Essa é uma pergunta estranha para alguém que não é metódico. Cada texto é próprio em seu modus operandi. Alguns são massa de pão, que precisa descansar pouco tempo, outros são cerveja e fermentam nos meses. É necessário entender o ponto de cada um, mas deixar sempre a porta da gaiola destrancada caso queiram voar. Se voltar, ótimo. Se perder nas nuvens, melhor ainda.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha geração é bem habituada ao computador. (Ab)usa desde a infância, então às vezes soa natural. Mas não é. O computador é útil, complexo, mas é só uma ferramenta. E mais limitada do que acreditamos. Ele só executa os comandos programados e quem não é programa(dor) de informática consegue extrair pouco dessa caixa-preta. É um utensílio rápido, prático, cheio de possibilidades e ajuda como ferramenta de poda e organização. Mas insiste em “corrigir” a poética, tentando colocá-la numa gramatica fria. E ainda ilude os olhos, transformando zeros e uns em outra coisa. A linha de comunicação digital é estritamente visual, ignora os outros sentidos. E nesse que toca, os espetos luminosos anestesiam os músculos oculares, o que resulta na alienação de nós mesmos ante o imaginário. Essa questão estende-se para além do uso de um aplicativo e enraíza-se em toda a esfera digital. Estou em briga constante, pois as ferramentas derivadas do computador são muito recorrentes nas práticas cotidianas. Não é sempre que consigo ignorá-las ou perceber a cegueira que podem causar para o indivíduo ou para a poética dele.
Pra poesia nascer, é preciso vida e interações orgânicas. E estas dialogam muito mais com os sons e cheiros da rua, as falhas humanas e mecânicas nessa dinâmica do eu-urbano, do acaso; e, finalmente, o movimento – dos olhos, do punho – com a textura – do papel com tinta. Ali há também a possibilidade do desenho. A primeira faísca consegue incendiar um papel mais facilmente que a tela lustrosa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Há muito estudo por trás das ideias espontâneas. E a coleção de imagens referenciais deve ser alimentada para crescer. Uso física nuclear para construir poemas, em que eu gero o calor para a fissão ou fusão dos elementos armazenados. Posso colidir imagens desse reservatório para formar uma nova e explorar a energia gerada pelo choque delas, como a consequência dum beijo amoroso; ou posso partir um átomo e investigar os desdobramentos naturais da força potencial contida lá.
Assim que me inspiro ao contemplar a brasa – nunca as cinzas –, percebo que ela transforma matéria orgânica em fumaça dançante, enquanto um isqueiro, por exemplo, passa de acendedor à ascensão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A poesia começou em mim como mera expressão do meueu. Era péssima. Eu costurava as palavras, através do magnetismo delas, fosse pela tonicidade das rimas ou apelando ao sentido. Com o exercício da atividade e muito mais leitura, a escritura foi tornando-se uma atividade de espírito. Passei a viver a poesia, em vez de tentar sintetizar (minh)a vida nela. Aprendi a fazer collageatravés do encontro de imagens contrastantes. Em vez de procurar o que estava mais próximo, fui para o ponto mais distante. Assim percebi que o Alasca é do lado da Sibéria, mesmo considerando grande parte do mundo entre os dois. A poesia não é uma exteriorização, mas um processo de desvelamento do ser, seguida da revelação que projeta o absoluto descoberto sobre a realidade.
Não há nada que possa ser dito ao fruto verde, só esperar desejosamente que amadureça, caia numa cabeça desajuizada e role pelo mundo para ser devorada pelo próximo pé que encontrar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero ler um livro de fogo. Um que fale com a boca fechada. Que se comunique através de campos magnéticos, expanda a si mesmo e quem lê. Precisa ser um texto apaixonado e desejante. Só assim há o amor. Em muita coisa que lemos por aí faltam esses elementos (na crítica, nos ensaios, na ciência, no jornalismo). São fendas gélidas entupidas com massa de discurso que só pode ser derretida pelo espírito ardente. E então abre-se o espaço para as imagens desabrocharem e mostrarem a mágica das pétalas voadoras. É esse livro que estou tentando escrever, que auto-incinera no final em sua própria convulsividade.