Rodrigo Mendonça é contista, xilogravurista e cordelista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal é bem simples e a mantenho há anos. Tenho um filho e sou pai solo, o que significa que tenho um despertador em duas pernas. Acordo às 5 e meia e tomo insulina (sou diabético desde os nove anos). Depois preparo café para mim e meu filho. Eu tomo café preto (com ou sem adoçante, depende do meu humor no dia) e torradas com manteiga. Pedro toma chocolate com leite, pão com manteiga e um pedaço de bolo.
Durante o café conversamos sobre qualquer assunto que possa nos interessar: desenhos, brinquedos e histórias de deuses estão entre os favoritos do Pedro (conto para ele histórias de diversas mitologias desde que ele era bem pequeno e essas são as que ele mais gosta de ouvir). Preparo ele para a escola (com a ajuda da minha mãe, porque poucas tarefas são tão infrutíferas quanto trocar a roupa de um menino de seis anos).
Depois que ele sai, me troco e saio para dar aula. Passo boa parte do meu tempo no trânsito lendo (se você já morou em São Paulo, sabe que uma viagem de ônibus em um dia chuvoso pode encerrar Guerra e Paz e passar metade de Cem anos de Solidão).
Nos fins de semana é ele quem me acorda. Ele geralmente me levanta às seis e pergunta que horas eu quero acordar. Respondo que quero acordar às oito e meia e Pedro volta às sete horas para avisar que já está quase na hora. Depois ele me acorda às sete e meia porque não sabe ler bem as horas no relógio e uma manhã de uma criança equivale aproximadamente à 23.7 horas de um homem adulto. Tomamos café juntos (eu pela primeira vez e ele, um hobbit) e decidimos do que brincar primeiro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu me classifico como um escritor em trânsito. Mais que isso, sou um escritor do incômodo. Eu consigo ter minhas melhores ideias (ou pelo menos desenvolvê-las) enquanto me movimento, seja andando, de ônibus, carro, metrô. Mas para começar uma história, eu preciso ser incomodado. Quando algo me incomoda o bastante, eu preciso escrever para mudá-lo. Acho que é a minha pequena brincadeira de deus.
Comecei a escrever durante a adolescência porque lia histórias maravilhosas que tinham finais péssimo e aí as reescrevia. Depois comecei a ler o mundo ao meu redor e percebi que tinha muitas coisas erradas nele e que a minha escrita poderia mostrar ao mundo novas possibilidades. E então as minhas histórias agora mostravam que os anões também tinha algo para contar, que a princesa podia derrotar o dragão sozinha ou que o João podia dividir a terra do gigante ou só teríamos um outro vilão na história.
Em suma, eu escrevo histórias sobre os espaços que vejo nos espaços que encontro. No ônibus de volta para casa, nos minutos depois de colocar meu filho na cama, no tempo que eu espremi entre o almoço e a primeira aula da tarde.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já trabalhei com meta numérica mesmo (500 palavras por dia, 2000 palavras por semana…), mas dificilmente consigo ter um bom aproveitamento desse jeito. Procuro produzir algo todo o dia, mesmo que seja escrever uma frase, procurar uma palavra, pesquisar um conceito…
Talvez seja essa a minha meta atual, produzir, não importa o que ou quanto. Eu às vezes participo de concursos literários, e tenho que concentrar meu trabalho para terminar nos prazos. Gosto de ter um tempo para reler meu trabalho. Talvez essa parte, o polir o texto, que mais me tome tempo. Eu tenho prazer em saber que cada palavra daquele texto está ali por um motivo e que eu a escolhi.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu considero que tenho uma história a escrever quando sei como ela vai começar e terminar. Eu preciso, antes de sentar e começar a escrever, ter a história e a maneira como ela vai ser contada. Sou um adepto da ideia que uma história merece ter uma forma própria de ser contada; claro, uma história infantil deve ser contada de maneira diferente de uma história de terror, mas também deve haver uma diferença entre duas ficções científicas, por exemplo.
Uma narração em primeira pessoa deve refletir o narrador e sua forma de ver o mundo (e essa forma não é necessariamente a minha); uma narração em terceira pessoa em uma história em um mundo paralelo terá estruturas e formas diferentes de uma narração em terceira pessoa decorrendo em Recife na virada do século passado. Um poema é diferente de um cordel, que é diferente de um haikai, que é diferente de um romance, que é diferente dessa entrevista aqui.
Eu quero que tanto minha narrativa quanto a minha forma de narrar sejam gratas surpresas a meus leitores. Quando eu sei o que contar e como contar eu abro ou o meu bloco de notas ou o documentos e escrevo. Nessa primeira fase eu escrevo dois ou três parágrafos (se for uma prosa; poesia, por exemplo, é escrita de uma vez e passa mais tempo sendo polida).
Depois eu dou um dia e volto a ler. Se eu tenho vontade de saber como a história continua, eu posso continuar o texto. Se a história não decolou em dois ou três parágrafos, eu preciso procurar alguma inspiração e outras referências. Então eu vou ler algo, vou buscar novos escritores, ver filmes, ir a museus.
Esse processo não é o mais eficiente. Tenho histórias que estão trancadas para mim, até eu achar a chave delas. Recentemente terminei de escrever um conto iniciado em 2006. A chave só me veio depois de ler Ouça a canção do vento / Pinball, 1973. O livro de Murakami não tem nenhuma semelhança com a história que estava escrevendo, mas o sabor niilista e vazio de algumas interações era o que me faltava, o meu protagonista era alguém perdido em sua própria história, e ler Murakami me fez entender isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Demorou muito para que eu pudesse ter confiança de ter minhas histórias publicadas. Sou muito exigente com o que escrevo. Eu tenho que me forçar a deixar algumas histórias e aceitar que já é hora de mostrar para alguém. Eu gosto muito de estar escrevendo. Não de ter escrito ou nem mesmo de escrever. Gosto de estar escrevendo. Então quando deixo uma história ir para o mundo, eu começo a farejar os rastros da seguinte.
Passei por algumas travas da escrita. Uma delas quando tomei remédios para depressão. Essa foi uma fase particularmente difícil. Os remédios eram como um cobertor pesado e molhado. Embaixo dele todos os meus sentimentos se arrastavam lentamente, mas eu não conseguia acessá-los completamente.
Eu sequer conseguia sentir minha frustração por não estar conseguindo escrever completamente. Fiz tratamento, terapia e deixei os remédio. Também deixei uma parte daquela loucura para trás. É como ter amputado um membro gangrenado. Eu sinto falta da loucura. Ela coça às vezes e eu sinto uma certa tristeza em olhar para o vazio que ela deixou.
Quanto às expectativas, acho que estou tentando colocar as coisas em outras perspectivas. Estar ansioso ou nervoso não vai apressar nenhum processo que não dependa de mim. E vai, possivelmente, atrapalhar os meus processos internos. Procuro me concentrar no projeto em mãos. Se não der certo, tenho o consolo de ter dado o meu melhor. Se der certo, posso ter a tranquilidade de saber que aquilo que vai ser publicado é um reflexo digno de mim.
Eu escrevo contos e pequenos romances (as chamadas novelas). Quero me arriscar e produzir algo maior, mas sei que preciso de uma boa organização mental para produzir algo que me satisfaça. Enquanto o momento não vem, continuo produzindo o que está a meu alcance.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas. A revisão era uma etapa complexa para mim e percebi que o motivo para tanto era que eu lia as histórias como elas estavam escritas em minha mente, não como eu as tinha colocado no papel. Precisei aprender a dar um intervalo entre a escrita e a leitura para que pudesse passar a ler o que estava efetivamente em minhas mãos.
Também conto com a ajuda de amigos que leem minhas histórias e fazem apontamentos. Procuro fazer uma rotação entre eles e só mando para quem estiver interessado em ler. Além disso procuro ser paciente com os meus leitores, porque a resposta deles não tem preço.
Vou contar uma pequena anedota sobre meu livro infantil. Esse relato abaixo foi uma mensagem à ilustradora, que pediu uma relato escrito sobre como foi escrever o livro e o processo de editoração:
“É quase tudo mentira. Por isso eu vou começar com uma das poucas verdades: o propósito deste texto é o de mostrar como foi o processo de criação da história “A mariposa e o Sol”, e eu confesso desde agora que falhei miseravelmente nisso. Talvez me falte a precisão de um historiador ou me sobrem as digressões de um contador de histórias, talvez memórias e desejos se misturem com o passar dos anos. O fato é que histórias e leitores me fascinam. E, meu caro leitor, essa história é uma das minhas favoritas. Ela foi escrita há quase vinte anos, mas ainda é um mistério para mim como um jovem de dezessete anos, leitor de Poe e Byron pôde achar inspiração para tanto. A voz daquele menino de dezessete anos que escreveu aquela história ainda reverbera por entre as palavras desse homem de trinta e sete e, se os deuses quiserem, vai ecoar nas reclamações de um velho de sessenta.
A história já rodava a minha cabeça há algum tempo, por algum motivo a idéia de uma mariposa que se apaixonava pelo sol, mas acabava se conformando com uma lamparina parecia delicada e romântica, mas incompleta. O toque final veio de uma namorada da época, paixão juvenil que queria ser amor pra vida toda. Compartilhávamos o amor pela música, sonhos de morar em uma cidade praiana e de passarmos o resto da vida vivendo de arte, sonhos esse que nem a distância de 800 quilômetros ou qualquer bom senso podiam impedir. Foi então que a necessidade, mãe da invenção, veio em minha direção: minha namorada ia se mudar e estava achando que um relacionamento não aguentaria tal distância. E esse foi o ingrediente final, a mariposa ia chegar até o sol com muito esforço e lágrimas!
Comecei a escrever, querendo mostrar para ela que o nosso amor, ainda que parecendo impossível, estava fadado a dar certo por uma determinação cósmica. A história surgiu em um e-mail que percorreu essa distância disposto a levar os meus mais sinceros sentimentos. A mariposa trilhava seu caminho no ciberespaço, enquanto meu coração esperava parado. Acho que ambos éramos um tanto mariposa e um tanto sol na história.
Ela amou. Nosso relacionamento? Durou mais umas duas ou três semanas depois da mudança dela. Éramos adolescentes e a vida não podia esperar. Eu guardo com carinho memórias daqueles anos, mas essa é a voz do homem de trinta e sete anos; o menino de dezessete chorou alguns dias e depois rasgou cartas e fotos. E apagou todos os bits relacionados ao relacionamento, incluindo o e-mail com a história. Confesso que me arrependi de ter apagado muitas coisas, transformando as marcas que ela tinha deixado em mim em borrões; mas era tarde demais para arrependimentos.
Muitas rotações e translações depois, o menino, agora na faculdade, estudava literatura. Eu tinha escrito alguns contos, tentei mão em alguns poemas que tinham a sensibilidade de um Wando e tornei-me professor. Foi então que novamente a história da mariposa se insinuou em minha vida, novamente pela mão da minha-agora-ex-namorada. Um dia, em um desses programas de mensagens instantâneas, percebi que ela estava on-line. Muitos anos haviam passado e agora meu coração estava prometido à outra, mas decidi clicar em seu nome por uma curiosidade quase mórbida. Minha antiga musa deveria ser uma cantora lírica famosa agora, estudando música enquanto que eu tinha abandonado quase completamente a música por problemas pessoais. Acho que eu quis abrir uma janela para aquele tempo onde respirar música era mais que o suficiente para nós.
A conversa não transcorreu como o planejado. Ela estava trabalhando em um restaurante e também tinha abandonado a música. Triste e cansada, meu coração doeu por ela, que agora estava ainda mais longe. Trocamos algumas mensagens e eu tentei convencê-la a não desistir de seu sonho. Ela tinha muito mais talento que eu com música e aquilo parecia uma injustiça irremediável. Palavras de conforto e coragem não surtiam qualquer efeito, e eu não podia culpá-la, eu estava fora de sua vida há pelo menos oito anos. Foi aí que a mariposa veio novamente a meu socorro, traduzindo em fábula o que minha retórica se esforçava para insinuar.
Eu gostaria de poder trazer aquela história de volta a vida, tal qual escrita pelo menino de dezessete anos, mas o menino de dezessete anos já tinha ido embora. Fiz o melhor que eu pude com o homem que eu tinha me tornado, mas eu admito que anos de faculdade me tornaram um pouco mais crítico que antes. Escrever a história foi um processo de auto-análise, a mariposa ecoava Eros e Psiquê, com um toque de noturno e sedutor.
Foi nessa auto-releitura que o processo de amadurecimento da mariposa, talvez imitando um pouco o meu próprio, foi adicionado. Faltava ao menino de dezessete anos o conhecimento de mundo que o homem de vinte e poucos tinha, e eu podia, agora com conhecimento de causa, dizer que a viagem é tão importante quanto o destino. E eu percebi que o destino não era uma namorada, o destino eram os sonhos para o futuro, nossas paixões secretas; coisas que valem o sacrifício por que simplesmente por tê-los nos tornamos pessoas melhores.
E eu dei isso à minha pequena mariposa, que viajou o mundo. A linguagem também ficou um pouco mais rebuscada, mas isso não é necessariamente uma melhoria. Esperando que a minha melhora técnica pudesse suprir a inocência que eu perdera, enviei a história novamente por e-mail.
Pela segunda vez, minha amada mariposa navegava por um mar de informações, mas meu coração não estava mais esperando parado, dessa vez eu era apenas o narrador, não a mariposa e nem o sol. E novamente ela foi bem sucedida, minha musa-e-ex-namorada amou e voltou a perseguir seus sonhos. E dessa vez eu fui esperto o bastante para manter uma cópia da história comigo.
Mas o destino da mariposa definitivamente não era ficar parada. Ao me matricular na matéria de Editoração de Histórias em Quadrinhos da Eca, me deparei com a oportunidade de escrever um roteiro para uma Hq como trabalho de conclusão de curso. Isso seria ótimo porque me pouparia o trabalho de fazer uma monografia e prometia ser bem divertido.
Aproximei-me de alguns colegas de classe que pareciam desenhar e ofereci meus préstimos de escritor. Fui respondido com sorrisos amarelos e tapinhas nas costas. Eu andava com alguns contos bem sangrentos e misteriosos na cabeça e pensei que seria bem legal transformá-los em arte seqüencial. Talvez meu rosto não tenha transmitido muita confiança ou tive o azar de pegar um grupo onde ninguém queria montar uma Hq.
Como último esforço, virei para uma garota que sentava perto de mim e perguntei se ela não estaria interessada em transformar uma história minha em quadrinhos e pedi o e-mail dela. Eu havia visto alguns rascunhos dela nas primeiras aulas – é uma falta de educação ficar olhando por cima do ombro dos outros, mas a minha curiosidade serve a seus propósitos – e os desenhos dela, estilo mangá em SD (super-deformed), iam ser ótimos para a história da mariposa. Ela me olhou com certa desconfiança, provavelmente pensando que eu queria uma desculpa para conseguir o e-mail dela. Se o e-mail dela não fosse o exato nome dela, poderia jurar que era ela teria me dado um e-mail falso.
Quando cheguei em casa mandei a história (minha amiga mariposa agora já era uma perita em viagens anexadas) e aguardei a resposta… e aguardei a resposta… e aguardei a resposta… E o semestre acabou.
Alguns meses depois, subitamente recebo um e-mail dizendo que tinha lido minha história e que queria gostaria de adaptar a história para aparecer no Quadreca, a história em quadrinhos da ECA. Achei ótimo! Enviei a resposta concordando e esperei pela resposta.
E esperei… e esperei… e esperei… Quase um ano depois a garota-da-eca-que-não-enviava-e-mails me escreveu novamente. Ela estava para se formar e queria trabalhar com a mariposa no TCC, fazendo um livro infantil. Aquela notícia era ótima! Com o passar dos anos me interessei mais por literatura infantil e esse era exatamente minha especialidade! Reli a história e percebi que ela era bem amadora, mas achei melhor não mexer em nada até saber mais detalhes, provavelmente teria que alongar a história um pouco, acrescentar alguns personagens, ou algo assim.
E eu esperei… e esperei… e esperei por mais alguns meses. Novo e-mail, dizendo que não tinha desistido da idéia ainda e que nos encontraríamos para ver os personagens ilustrados. E eu esperei.
Essa não foi a última vez que minha querida ilustradora sumiu. Eu gosto de pensar que minha ela estava na sua própria jornada de mariposa, amadurecendo o suficiente para fazer dessa história a melhor que ela pudesse. Talvez isso até vire uma outra história um dia, a ilustradora que desaparecia (com algum tipo mágico de tinta).
Mas quando as coisas começaram mesmo a fluir eu senti que o projeto não estava mais em minhas mãos. Aquele livro seria tanto da Louise quanto meu e ela tinha um olhar próprio sobre a mariposa, um amor por ela que trouxe uma beleza inigualável. Quando eu havia bolado a história, a mariposa seria uma personagem minimamente antropomórfica, uma bolinha preta com olhos amarelados e asas sedosas.
Foi um choque ver que a mariposa era na verdade uma menina! E isso fazia todo o sentido do mundo! Acho que, como a mariposa era inicialmente um aspecto meu, eu não pude ver o quanto daquele personagem era também significativamente feminino, lutando por um espaço na sociedade, contra uma tradição que a colocava passivamente. Era um conto feminista, mas eu precisava que uma mulher o lesse para mim para que eu entendesse.
Devo dizer que usufrui bastante desse processo todo, os encontros com a Louise foram bem produtivos e lamento não ter podido oferecer mais para ajudá-la. Acho que disso tudo encontrei uma pessoa em quem posso confiar e com quem posso compartilhar minhas histórias e saber que o resultado será positivo e surpreendente.
A história do livro-que-percorreu-um-caminho-tão-tortuoso-e-longo-quanto-sua-protagonista, conquistou meu coração. É uma história que lutou para ver a própria publicação, passou por dois nascimentos e viajou mais de mil quilômetros e eu sinto orgulho de tê-la transformado em livro. E isso é tudo. Mas é quase tudo mentira.”
Eu contei essa anedota aqui porque um história precisa de leitores. Eu aprendo sobre as coisas que escrevo com eles. Depois de terminar uma história, eu vou procurar os leitores para ela. Acho que cada leitor tem uma história especial e que cada história tem um leitor especial.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia veio para me salvar. Tinha milhares de cadernos espalhados por diversos lugares (um hábito que a minha vida cigana só piorou). Versões diversas das mesmas histórias. Começos, meios e fins separados e interrompidos por outras escritas, anotações e desenhos. Além disso sempre precisei escrever a história várias vezes, uma no papel e depois passá-la para o computador. Depois me enviava por e-mail para que essa cópia ficasse salva online. E quando eu fazia alguma alteração precisava novamente me enviar um e-mail, atualizar todas as cópias em vários computadores. Escrever nas nuvens é a forma mais prática e segura que tenho em produzir. Acho poético também. Talvez os deuses escrevam as histórias deles nas nuvens e nós só não consigamos ler.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tudo que me toca me dá ideias. Filmes (tanto os bons quanto os ruins, por vezes mais os ruins), poesia (fui agraciado com muitos amigos poetas), contos, histórias que escuto por aí: em ônibus, filas, passando por alguém na rua. É uma grosseria que cultivo com carinho. Se você já passou por mim na rua, é possível que uma frase sua, uma palavra, uma entonação aparecem em minhas histórias. Te desafio a ler e achar.
Tenho um conto bem antigo agora que foi influenciado pela minha incapacidade em entender a letra de uma música. Nessa época estava ouvindo bastante heavy metal e em particular uma banda chamada Symphony X. Na letra original ele canta algo sobre contemplar a visão dos olhos da Medusa (To behold the sight of Medusa’s eyes), mas eu entendia e cantava algo sobre o lado errado dos olhos da Medusa (The wrong side of Medusa’s eyes). Isso me fez ficar pensando sobre o que é estar atrás dos olhos da Medusa. Como ela vê o mundo? E se a história como a conhecemos seja apenas a versão do Perseu, isto é a versão do vencedor?
As vezes eu quero experimentar um elemento narrativo específico. É o caso de uma outra história minha chamada “O processo criativo”, eu queria explorar ao máximo o objeto livro e suas limitações, brincando com metalinguagem. A história surgiu desse desejo de experimentar. O desejo de experimentar também me faz querer usar uma palavra ou expressão que mereçam estar em uma história.
Quando eu estou sem ideias eu busco algo que me desperte: vou folhear o dicionário, me perder em uma enciclopédia (até Wikipédia vale), vou prestar atenção em um personagem secundário em uma história qualquer. Quando acho a inspiração (ou ela me acha), começo o processo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a minha maior mudança foi em parar de tentar buscar um estilo próprio. Era um daqueles momentos onde você busca o fim do arco-íris. Poder me aventurar em diversos estilos me deixou muito mais animado para escrever. Uma segunda mudança é em meu poder de síntese, acho que consigo escrever… mais intensamente. Sinto que meu texto está mais fluido e menos cansativo.
O que eu diria? Eu diria para continuar insistindo! A escrita se tornou tanto uma forma de lutar quanto uma maneira de resolver meus conflitos internos. Pensando bem, talvez eu já tenha me dito isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu amo muitos dos meus projetos atuais, e eles estão ainda bem embrionários, então acho que as minhas paixões do momento são; uma ficção científica cyberpunk situada no Brasil, um pequeno romance afrofuturista que envolve as questões sociais brasileiras e um conto sobre Anansi, o deus africano das histórias.
Algo que ainda não comecei? Hmmm, não sei. Quero escrever um romance, mas acho que não sei ainda bem sobre o que…
Sobre os livros que gostaria de escrever, sou fã de Neil Gaiman e ele tem na saga de Sandman uma biblioteca com todos os livros que foram sonhados, mas nunca escritos. Eu passaria algumas eternidades nesta biblioteca.