Rodrigo Lobo Damasceno escreve, traduz e edita pelo selo treme~terra e é um dos editores da revista de poesia Meteöro, da Corsário Satã.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo devagar (e tento seguir até o fim do dia sem acelerar muito). Atualmente é o seguinte: tomo o café da manhã e confiro se apareceu alguma resposta às minhas buscas ou alguma proposta espontânea a respeito de um trabalho qualquer. Também tento me esquivar das notícias, mas chegar a elas hoje é apenas uma questão de tempo: dá pra viver meia hora ou até uma inteira sem saber nada sobre o que há de mais deprimente nos cadernos de política, economia e outras enganações similares, mas logo a coisa chega e dá aquele tapa esperado, já meio cansado, que quase não dá pra sentir mais, mas que ainda assim é um tapa.
Não tenho escrito de manhã, nos últimos tempos. No máximo leio alguma coisa. Então a rotina matinal é essa: comer, pensar em trabalho, driblar as notícias ruins, ler.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho ritual nenhum. Quanto ao momento do dia, depende do momento da vida. Hoje trabalho melhor pela tarde até o meio da noite. Quando vivia numa pensão com paredes finas, povoada por estudantes, desempregados, golpistas, pequenos traficantes e cantores mexicanos em situação irregular no país (todos eles barulhentos) eu trabalhava melhor de madrugada, quando esse pessoal saía ou dormia e só restava um ou dois companheiros de pensão jogando videogame, trepando ou falando via Skype com a família que ficou em Maputo. Quando me impus uma rotina de horário comercial, frequentando diariamente uma biblioteca para escrever a minha dissertação, trabalhava melhor de manhã cedo. Ou seja: tudo depende do ambiente, do momento, das circunstâncias – não tem muito essa história de que é melhor escrever em certo horário e por isso todos os outros aspectos da vida precisam convergir para que nesse horário eu esteja escrevendo. Ter um controle nesse nível é uma coisa rara, reservada talvez só pra quem ou tem dinheiro ou é muito iluminado, o que não é meu caso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho nenhum tipo de meta, muito menos diária. É verdade que por um tempo, quando estava escrevendo a minha dissertação de mestrado, nesse período em que ia diariamente à biblioteca, gostava de pensar em termos de páginas (3 ao dia, por exemplo), mas isso não durou muito. Quanto à poesia, chego a passar meses sem escrever nada e de repente passo algumas semanas escrevendo diariamente.
De todo modo, sou totalmente incapaz de levar uma vida em que eu escreva todo dia – tarefa diária não demora pra começar a aborrecer, e a minha experiência com a escrita poética vai longe disso, sempre foi algo mais ligado à vadiagem, à vida menos calculada da malandragem, das esquinas, dos botecos, das bandas que duram três ensaios e não vão pra frente, enfim, dos lances mais interrompidos e mais imprevisíveis, o que talvez explique o fato de eu escrever poesia e não, sei lá, prosa de ficção – um romance realmente me parece algo que exige isso, uma espécie de patrão cobrando que você bata o cartão todo santo dia ali. Não é a minha. Mas isso não significa que eu não admire quem consegue criar outros modos e métodos e fazer da escrita um trabalho diário e ainda assim mantê-lo saudável, lúdico, libertador.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de adiar o começo da escrita enquanto faço a pesquisa para os meus ensaios. Inclusive porque reconheço a fragilidade das minhas ideias e sei que qualquer parágrafo novo que aparecer na minha frente pode me fazer mudar tudo o que eu vinha planejando. Tem uma coisa aí também de fruir a mera potência, não o trabalho – aquela sensação de que algo está sendo formulado, mas flertando o tempo todo com a sua inoperância, e isso é bem bom. No entanto, depois que começo a escrita flui com facilidade e até com alguma velocidade. Além disso tudo, uma coisa que cada vez mais se afirma, pra mim, é que raramente eu pensei antes aquilo que escrevo agora, então as notas às vezes nem me servem muito, meu processo de pensamento se dá na escrita mesmo.
No caso da poesia, raramente tomo notas, e quando tomo raramente elas viram um poema – se anoto algo que acho que parece um verso, ele provavelmente só parece mesmo, não é e nem vai virar depois. O movimento que vai da pesquisa para o poema é muito distinto, já que a pesquisa, neste caso, é de outra natureza, e está rolando mesmo quando nada parece estar acontecendo, então os limites entre uma coisa e outra são menos nítidos – e muitos poemas acabam sendo só pesquisas mesmo, ou a pesquisa às vezes nem dá em poema. O processo é quase sempre divertido, e não me cansa – na verdade, ele é tão bom que costumo fazê-lo durar o máximo que puder, adiando o ponto final, a publicação, tudo o que me impeça de seguir mexendo no poema.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os únicos projetos longos nos quais me envolvi foram de escrita ensaística, na universidade. Durante o doutorado, particularmente, passei por um grande período sem escrever (coisa de um ano), mas isso acabou sendo um problema frutífero (mas só depois, claro – enquanto não conseguia escrever, achei que nunca mais voltaria à tese), e inclusive mudou o rumo da pesquisa para melhor. A ansiedade não tinha a ver com o fato do projeto ser longo, mas sim com a minha relação com a escrita dentro do ambiente universitário, sobretudo o ambiente universitário da Universidade de São Paulo.
Quanto às expectativas, elas simplesmente não fazem parte da minha escrita – nem as minhas nem as de quem quer que seja, muito menos no caso da escrita poética. Quer dizer, é óbvio que a repercussão do que escrevo nos outros é o que fundamenta a minha vontade de escrever (escrever e ler é trocar ideia), mas isso não caminha no sentido do medo ou da ansiedade, e sim do desejo e do prazer. Na escrita poética também não existe ansiedade e procrastinação – ao menos não no que diz respeito a produzi-la, colocar a coisa no papel (mas é claro que sentimentos esquisitos assim podem estar presentes de outra forma no processo que leva ao poema).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não faço revisões concentradas dos meus textos, a não ser quando sou pressionado por datas e eventos específicos. Vou relendo aos poucos e mexendo, apagando, reescrevendo etc. Não tenho o hábito de mostrar os meus poemas porque não gosto de receber os dos outros, embora eu trabalhe como editor. Às vezes meus poemas rodam na mão de amigos, são lidos por minha namorada, por gente muito próxima, mas não tanto com a intenção de uma leitura que seja também uma edição – são mais os casos em que quero que os poemas sejam lidos logo mesmo. Pra mim é muito esquisita a ideia de revisar ou editar poemas ou textos de criação para torná-los melhores – entre as minhas preocupações como autor, “escrever melhor” deve aparecer lá na última posição, se é que aparece.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tomo notas no que está mais à mão – se estou na rua, tento memorizar (o que significa repeti-lo, mesmo que em voz muito baixa), anotar no celular, num caderno, em qualquer coisa. A maior parte das primeiras versões, já mais ajeitadas, costumam sair direto no computador. As minhas primeiras leituras reais de poesia rolaram na tela de um computador. Como não havia livros na minha casa, eu cheguei aos poemas por meio de blogs e sites quando comecei a acessar a internet, no começo dos anos 2000. Antes disso, o que me encantou e me levou pro lado da criação linguística e poética vinha de discos de vinil, de cds e de rádios que conseguia sintonizar lá em casa – minhas primeiras lições de poesia vieram em ritmo de forró, samba-reggae e hardcore, antes dos livros foi a palavra cantada (e gravada) que me revelou a poesia. Então, a criação poética, pra mim, nunca teve uma relação exclusiva com a tecnologia do livro, ela sempre flutuou entre técnicas diversas, o que talvez explique minha falta de apego a um meio específico para a escrita e mesmo para a publicação.
Mas é verdade que as relações entre produção escrita e tecnologia (digital) se alteraram muito desde o tempo em que eu frequentava e mantinha blogs. Publico pouco em redes sociais e a minha experiência nesse tipo de publicação mais imediata, aberta a comentários e sustentada por reações como likes não me comove muito: logo aquele amontoado de impressões e repercussões fica desinteressante. A internet hoje é um latifúndio com dois ou três sites em que nós (que não temos interesse profundo em tecnologia digital e ficamos ali pelas superfícies) gastamos nosso tempo e nossa energia, e portanto não é um espaço que me interessa para a publicação – e, mesmo para a divulgação, cada vez menos, já que os algoritmos viciados e monetização também emperram a circulação de produções underground. Não por acaso, um desses latifúndios (o instagram) criou um tipo de poesia que lembra muito os campos de monocultura de soja: tudo igual, anódino, aquela cor cansada e pastel criando uma paisagem imensa em que não dá pra diferenciar nada.
Então, quando digo das relações entre poesia e tecnologias distintas do livro, não estou falando necessariamente de tecnologias digitais. Mais do que poesia e internet, poesia e redes sociais ou poesia e técnicas de photoshop, me interessa a poesia cantada por Bule Bule ou Dona Edith do Prato em cima de tecnologias como um prato, um pandeiro ou uma viola.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Desconfio um pouco de cultivar a criatividade por meio de hábitos. Mesmo a leitura, para mim, é cada vez menos habitual. Lia muito mais quando era mais jovem, com muito mais dedicação, encarava os livros do começo ao fim e coisas assim. Hoje raramente faço isso, e leio de forma muito mais caótica. Mas a leitura é sem dúvida um dos meios pelos quais a ideia me vem – uma palavra, um verso, um trecho qualquer que me chama atenção e é de lá que começo um poema meu. Isso se parece muito com ouvir: escutar o que os outros dizem é fundamental para criar – mas escutar de verdade, ao ponto de sacar que não entendeu nada e perguntar o que ela realmente quer dizer, só pra ouvi-la mais e melhor.
A tradução é também, e cada vez mais, algo que me move no rumo da escrita, além de ser, no momento, o meu método preferido para o roubo, que acho que é um dos fundamentos da minha criatividade (a rigor, não me considero um tradutor, apenas um poeta que traduz pra entender melhor um poema escrito numa língua que não domina). No mais, curiosidade sobre tudo, inclusive sobre o que não presta e nem vale a pena, mas ainda mais pelo que já se criou sob o nome da coisa que você quer fazer – como poesia, por exemplo (lembrando que ser curioso e se empenhar em conhecer poesia não tem nada a ver com erudição, com acúmulo de versos lidos, com se tornar um insuportável domador de técnicas que devem ser indomáveis, com sentar na cadeira da frente na aula – tem a ver sim é com vagabundagem constante e paixão dedicada).
Outro lance que tem me parecido fundamental é dar atenção a tudo aquilo cuja dimensão ainda é humanamente mensurável – o que significa deixar de lado a imensidão do universo, e mesmo do mundo descrito nos termos de globalizações, nacionalismos e papos brabos desse tipo. Ou seja: se ligar na sua própria rua, na esquina do bairro onde se faz jogo do bicho, no time de várzea jogando domingo de manhã, na movimentação suspeita na parte dos fundos do bar que provavelmente esconde um caça níquel ou uma rinha de galos, na língua em que as pessoas ainda se entendem, nas redes de comunicação e solidariedade (inclusive com seus ruídos e distorções) sustentadas por pessoas que não perderam a dimensão do alcance da sua voz (Belchior, delirando com as coisas erais, e Torquato Neto, cantando a sua rua no Piauí, nos dão belas lições disso aí).
Gosto de reler sempre um poema de Gary Snyder em que ele enumera as coisas que se deve conhecer para ser um poeta (para se manter criativo, afinal) – entre elas estão os nomes das plantas, algum tipo de magia, as rotas dos planetas, uma dança, desenhos animados e revistas em quadrinhos, e tudo o que for possível sobre as pessoas. A tudo que ele diz eu acrescentaria: os jogos das seleções de 70 e 82, as histórias dos vizinhos que você teve na infância e nunca mais encontrou, os mistérios do tempero da comida baiana, a densidade populacional dos municípios do interior do Pará, os métodos de previsão do tempo dos sertanejos nordestinos. Também é bom pensar 50 minutos a sério sobre a situação dos rios Pinheiros e Tietê e compará-la com a elaboração, na beira do São Francisco, da técnica do violão de João Gilberto, conhecer a canção de Gilberto Gil chamada “Iansã” e aquela de Chico Science chamada “Banditismo por uma questão de classe” e ainda a outra chamada “Vou-me embora” de Paulo Diniz, entender as vozes de Cátia de França e Lia de Itamaracá, ver Mateus Aleluia cantar e Waly Salomão recitar, aprender a dançar ao som das quixabeiras da Matinha e de Lagoa da Camisa, ouvir Glauber Rocha falar italiano, se lembrar com carinho de Mário de Andrade e de Orides Fontela, celebrar os aniversários de Jackson do Pandeiro. Acho que a chave talvez se chame intensidade, o que não significa necessariamente força nossa em direção às coisas, às naturezas e às pessoas, mas o contrário: interação real com as forças e sobretudo com as fraquezas das coisas, das naturezas e das pessoas que vêm em nossa direção – saber lidar com isso não é nem uma questão poética apenas, mas de saúde (quer dizer, é também uma questão poética).
No mais, o trabalho com a edição e mais propriamente com a concepção e confecção do objeto em que o texto vai circular tem me mantido alerta e curioso, me faz criar – e de um modo totalmente novo. O contato detido que passei a ter com uma tradição artesanal que, faz algum tempo, deixou de interessar à maioria dos poetas (entre os quais eu me situava até uns anos atrás), desapertou a minha mente em relação a questões de circulação, repercussão e de trato com editores, outros autores e leitores. Ao me tornar editor, artesão e feirante, a minha escrita mudou radicalmente e hoje raramente escrevo algo sem pensar e considerar também o seu suporte material, e este é um jogo que me interessa muito. Claro que isso também resulta em restrições: de circulação, de reconhecimento, financeiras, entre outras. O poeta que faz seu próprio livro ou publica em circuitos undergrounds ainda é visto com desconfiança. Há a estranheza que é misturar uma produção supostamente elevada como a poesia com outra tradicionalmente rebaixada como o trabalho manual e o artesanato. Rola também aquela ideia de que, se nenhuma editora tradicional publicou, não deve ser lá grande coisa mesmo; embora o discurso da independência seja tão evocado e elogiado (já que virou mais uma hashtag rentável, mais um verniz hipster para acalmar a consciência daqueles que se afundaram com gosto e uma pontinha de culpa nos novos modos de atuação do capitalismo), o carimbo de uma instituição editorial ou cultural (de preferência antiga, com muita grana, cheia de sobrenomes que soam estranhamente familiares e distantes) ainda vale muito mais do que qualquer risco.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não diria muita coisa porque provavelmente não me daria ouvidos. Não sei bem o que mudou porque me lembro pouco de como era o meu processo de escrita quando eu tinha, sei lá, 18 anos. Provavelmente não havia algo que se pudesse chamar um processo definido, simplesmente ia escrevendo e depois perdendo tudo o que escrevia em cd-rs arranhados, computadores consumidos por vírus e pendrives esquecidos em lan-houses (as tecnologias digitais, nas quais “salvamos” tanto, têm esse lance devorador também). Se bem que talvez eu me dissesse para não perder todo o tempo que perdi escrevendo prosa de ficção, pois essa nunca seria a minha praia.
E é provável que, mais jovem, eu me preocupasse muito em escrever “poesia”, no sentido de disfarçar a minha formação que se deu longe dos livros e perto da gente que conversava dentro e em volta da minha casa e das canções que tocavam nos rádios no interior do Nordeste – se eu tivesse largado mão disso antes, de tentar me adequar a uma “cena” ou uma linhagem à qual não pertenço (pois não adianta você tentar se alinhar – quem decide isso não é você), livrado minha escrita dos punhos de renda que nunca tive, provavelmente também teria tido a oportunidade de fazer, lá mesmo e naquela hora mesmo, o que agora eu tento fazer à distância, me esforçando pra lembrar. Mas não há arrependimento envolvido nisso – trata-se apenas de eu, mais velho, dando uma de sabido pra cima de um adolescente sem muita noção das coisas e nem de si mesmo.
Então, acho que eu não me diria muita coisa, mas me daria uma cópia do “Manifesto ainda que tardio”, de Rubem Valentim, e outra de “Sevilla me mata”, de Roberto Bolaño.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Todos os projetos de escrita que me interessam agora já estão mais ou menos iniciados, em andamento: poemas que junto sob o nome “Casa do Norte” e poemas que junto sob o nome “Original Campo Limpo Style”. Sigo escrevendo muito sobre futebol. Começo a desenvolver uma pesquisa, que pretendo que seja longa, sobre o discurso poético da migração nordestina para o Sudeste.
Livros que gostaria de ler: uma coleção de poemas de algum poeta venezuelano que migrou para o Brasil recentemente; versos escritos por Maradona em parceria com Valderrama; uma coletânea de sambas de roda do recôncavo; um inédito inesperado e póstumo de Nicanor Parra, só com poemas-piada sobre a morte, vindos agora diretamente do além; uma coletânea de poesia caribenha traduzida por Thadeu C. Santos; o primeiro livro de Maria Dolores Rodriguez; os próximos de Cecilia Vicuña, de Miró, de Ederval Fernandes, de Camillo César Alvarenga, de Mariana Ruggieri, de Ian Viana, de Fabiano Calixto, de Ricardo Aleixo, de Jeanne Callegari, de Julia Rocha, de Vandal, de João Reynaldo, de Camila Hion, de Natalia Agra, de Tazio Zambi e de Don L.