Rodrigo Ghedin é comunicólogo e jornalista, escreve o blog Manual do Usuário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo bem cedo, sem despertador. Tomo um café fraco e como pão com pasta de amendoim. Depois, pego um tablet e me informo do que está acontecendo no mundo, via jornais (acesso direto) e feeds RSS (no Reeder). Gasto, em média, uma hora nisso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã. É quando estou melhor disposto.
Acho que não tenho um ritual de escrita, mas quando escrevo algo que não passará por um editor, sempre que possível dou um intervalo entre o fechamento do texto e a publicação dele — não sem antes revisá-lo uma última vez em um dispositivo diferente daquele em que o texto foi escrito. O tempo e a mudança do suporte ajudam a pescar erros de digitação e frases truncadas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Por escrever conteúdo jornalístico e de blogs, acaba que escrevo praticamente todos os dias. Prefiro reunir todo o material (fontes de consulta, transcrições de entrevistas) antes de começar a escrever.
Não tenho meta de escrita diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O texto vai surgindo já durante a apuração. Sempre há um esforço extra no começo, para encontrar um ritmo, um caminho. Depois que ele se revela na página, o restante costuma fluir bem, quase naturalmente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No meu caso, “projeto longo” significa projeto continuado, ou seja, sem fim. Até ocorre alguns bloqueios, mas é muito raro porque a maior parte do trabalho é reativo ao que acontece no mundo, e não o contrário.
O que pesa para mim são as questões relacionadas à percepção, ou como os leitores me enxergam. É preciso tapar o nariz e se jogar — ou se expor — porque, de outra forma, ninguém jamais publicaria nada. A velocidade da informação, hoje, nos deixa mais suscetíveis ao cometimento de erros diversos. Equilibrar precaução e ritmo demandado é um dos grandes desafios.
Vez ou outra me imagino — ou me sinto — incompetente. Por vezes julgo ser sadio ter essa autoimagem vacilante, como se ela fosse uma força que me impede de ser ridículo, mal-intencionado, displicente ou cruel. Uns poderiam resumir tudo isso à palavra “precaução”. Dosá-la, porém, nem sempre é fácil. Sinto que com frequência sou muito duro comigo mesmo, mas é impossível saber se estou sendo injusto ou não. O ponto de vista não me permite. No fundo, acredito que todo mundo é idiota e incrível ao mesmo tempo e que essa enorme diferença está nos olhos de quem vê. Ou lê, no caso. O que nos resta é tentar não ser idiota, o que não é nada fácil.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias vezes. Como disse ali em cima, o meu “ritual”, quando possível, consiste em deixar o texto de molho por algumas horas ou dias, dependendo da urgência, e revisá-lo em um suporte diferente daquele em que o texto foi escrito. Não é uma garantia de que ele sairá perfeito, mas a mudança de ares ajuda muito a chegar ao mais próximo possível de uma segunda opinião quando não há alguém para dá-la.
Não costumo mostrar meus textos para outras pessoas antes de publicá-los, mas é mais por trabalhar, na maior parte do tempo, sozinho. Outra pessoa que lê um rascunho original sempre — literalmente sempre — encontra erros e faz apontamentos que levam a aperfeiçoamentos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador. Nunca tive o hábito de escrever à mão e, no computador, acho mais fácil trabalhar com fontes de consulta — uma constante no tipo de texto que escrevo. O aparato tecnológico é simples. Não uso editores de texto elaborados, como o Word; escrevo quase tudo no Editor de Texto do macOS (o equivalente ao Bloco de Notas do Windows) e depois converto para outros formatos usando o Pandoc.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No Manual do Usuário, as ideias vêm do noticiário de tecnologia e das tendências de consumo e de comportamento. Pela proposta do blog, tento descobrir um ângulo ou abordagem que seja importante — se estiver passando batido pelas pessoas, melhor ainda.
A cobertura da tecnologia de consumo ou pessoal ainda é bastante rasa. Só se fala nos problemas fundamentais da tecnologia quando a situação já está escancarada, como os sucessivos escândalos do Facebook em 2018. O sucesso das grandes empresas em normalizar a insanidade do nosso estilo de vida foi absorvido também pela imprensa, que deveria ser a primeira a apontar os graves problemas que a tecnologia de consumo trouxe de carona à sociedade. Hoje, essa crítica parece confinada à academia e em círculos fechados de ativistas. Um dos meus objetivos com o blog, talvez o maior deles, é conscientizar um público mais amplo dessas questões.
Na minha newsletter pessoal, o fluxo é diferente. Ela é o resultado de tudo que recebo ao longo da semana, processado e reduzido a texto segundo meus princípios e convicções. É ali que costumo sentir mais forte aquele dilema de achar que estou me expondo, embora essa sensação se dissipe sempre que algum leitor responde meus e-mails dizendo que se identificou ou que se inspirou por algo que escrevi. Essa troca honesta, aberta, é a coisa mais fascinante que a internet proporciona.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: “Não publique 90% do que você acha que vale a pena publicar; seja mais crítico”.
São raros os textos de oito, dez anos atrás que releio hoje e sinto que envelheceram bem. O que, por um lado, é um bom sinal: significa que evoluí criticamente. Com sorte e um pouco de dedicação, tenho sido feliz em eliminar esses resquícios meio constrangedores do meu passado. (A ideia de que a internet deve guardar tudo para sempre é ridícula. As pessoas precisam ter assegurado o controle sobre o que fazem aqui, pois para um detrator o eu de hoje e o de 2008 são a mesma pessoa — o que é, obviamente, uma inverdade.)
Acho que aperfeiçoei a minha escrita de diversas maneiras, mas a que me parece mais útil foi a ampliação da perspectiva, o colocar-me no lugar de quem me lê. Antigamente eu escrevia muito sobre especificidades que não tinham muito impacto na vida da maioria das pessoas — um aplicativo obscuro que serve para alguma excentricidade minha, por exemplo, consumia muito do meu tempo. Era uma produção mais egoísta. Hoje, procuro me pautar por questões importantes a um público maior e, sempre que possível, as que se sobrepõem às que pessoalmente também julgo relevantes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho o privilégio de ter começado e estar fazendo o projeto que sempre quis fazer: o meu blog de tecnologia, o Manual do Usuário. Ele está no ar há cinco anos e, até agora, tem evoluído junto comigo de uma maneira da qual me orgulho e me parece correta. O último dos grandes desafios é viabilizá-lo comercialmente, sem cair nas apelações nem cometer os mesmos pecados que tanto critico na indústria, como a expropriação e abuso de dados pessoais dos meus leitores. O desafio é grande por estarmos inseridos em um contexto contaminado por práticas abjetas.
Livros que eu gostaria de ler há muitos. Um que eu gostaria, mas que ainda não existe, não saberia dizer. Quase sempre o que ocorre é o contrário: deparo-me com um livro que não me passava pela cabeça que pudesse existir. Ser surpreendido, nesse sentido, é mais gostoso.