Rodrigo Domit é escritor, autor de Colcha de Retalhos (finalista do prêmio SESC) e Ruínas da Consciência.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia aquecendo água para preparar um chá: verde com gengibre, hibisco, maçã com canela; alguma mistura com o que ainda houver nos potinhos sobre a geladeira. De resto, não tenho muita rotina, até por ter horário de trabalho bem variável: trabalho em uma instituição de ensino com aulas nos três turnos; alguns dias trabalho manhã e tarde, em outros, tarde e noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Certamente durante a noite, quando a cidade dorme. O ritual envolve fone de ouvido e música – sempre diferente, de clássica a eletrônica, tradicional a moderna, do Brasil ou de qualquer canto do mundo. Quando morava sozinho, dispensava o fone de ouvido, mas a vida a dois leva a algumas adaptações.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu ideal utópico é escrever um pouco a cada dia; mas a vida vai ocupando seus espaços com o trabalho, os estudos, as contas para pagar. Estou cursando uma segunda graduação em paralelo a uma pós-graduação, assumi uma chefia de departamento, edito o blog Concursos Literários, entre outros projetos e atividades.
Quando eu não tinha tantos compromissos e responsabilidades, obrigava-me a escrever (ou reescrever) um texto curto ou um trecho diariamente, de segunda a sexta-feira; Foram três anos de muitos exercícios, de muita prática de escrita, que me ajudaram a encontrar e lapidar o meu estilo.
Em 2017, o Prêmio Escambau de Microcontos ajudou-me a relembrar este período com desafios diários, com uma palavra ou arte como tema para a criação. Agora estou em um período de adaptação da rotina para tentar retomar a prática, mas agora com outro foco e outras metas, algo que ainda estou construindo/planejando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é contínuo. Produzo contos e poesias; a pesquisa e a escrita acabam misturando-se em um processo único, não são etapas heterogêneas e divisíveis, são intercaladas, fluidas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para evitar as travas, não cobro de mim mesmo pela qualidade de cada rabisco, mas pela frequência dos exercícios de produção. Sei que não vou produzir apenas diamantes, bem como sei que vou precisar lapidar mais adiante os textos que produzir agora, então, não fico com travas ou exigência excessiva. Entendo o erro como algo natural, comum e, até certo ponto, desejável; sob a perspectiva da importância da prática de escrita como forma de desenvolver ferramentas e soluções criativas.
Os projetos longos são os que mais me agradam. Penso que a construção de uma obra exige maturação; por isso, não tenho pressa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis; não sei dizer. Geralmente eu mostro, sim, para duas ou três pessoas de quem sei que o retorno será, se necessário, cruel.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação é de dependência, assim como a de quase todos os que estão lendo essa entrevista. Dependo da tecnologia para alcançar espaços e pessoas que não estão ao meu alcance fisicamente. A gente vai formando algumas redes por aí e elas são excelentes para trocar ideias, experiências, sugestões de leitura. Conhecer um pouco do que está acontecendo em cada canto do mundo nos ajuda a entender e analisar o nosso canto.
Eu começo a escrever com o que estiver à disposição no momento. Se tiver papel e caneta, vai no papel. Se tiver só o celular, vai no celular; como nota digitada ou áudio gravado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De tudo: do mundo, das artes, das notícias, das aulas de fenomenologia, da música, da paisagem, da vida urbana, do caos, da ordem. De tudo um pouco.
Não cultivo um conjunto de hábitos para manter-me criativo, mas para manter-me são. Meditação, caminhadas, alongamento e, se der dois times, um joguinho de futebol.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou é que agora eu tenho que me forçar a criar um espaço em meio às responsabilidades e aos boletos para praticar a escrita e lapidar textos. A vida vai ocupando tudo, se deixar ela domina tudo e, quando você vai ver, já está mentalmente cansado e não consegue nem pensar em escrever.
Se eu pudesse dizer algo a mim mesmo seria o eu do passado a me dar uma bronca por ter deixado outras coisas ocuparem tanto tempo e espaço na minha cabeça, ele é que estava certo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tem projetos que eu gostaria de concluir logo de uma vez, isso sim. Começar eu já comecei vários, na conclusão é que a coisa toda não chega, mas, como eu já disse: não tenho pressa; essas obras vão fermentando, lá na gaveta e na cabeça, logo chegam ao ponto de maturação.
Sei que era para ser mais abstrata essa resposta, mas o único livro que eu queria ler e ainda não existe é a continuação das Crônicas de Gelo e Fogo: a série já passou os livros, logo acaba a série e eu fiquei “órfão” dos livros. Afinal, tem tantos livros bons pelo mundo, livros que eu quero ler, que existem; e que eu não sei se vou dar conta de ler todos ainda nesta vida (não sei nem se vão traduzir todos para algum idioma que eu consiga compreender).
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Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu não consigo começar nada sem um planejamento, ainda que seja algo rudimentar, um mero esboço de planejamento. Mas não chega nem perto de ser um plano de começo, meio e fim. Acho até saudável deixar fluir, pois é inevitável: em algum ponto você vai perceber outras possíveis soluções e caminhos a percorrer; e penso que seria imprudente ater-se ao plano original a qualquer custo.Para mim, a frase mais difícil é a próxima; seja primeira, segunda, décima oitava, milésima ou última. Eu até levo com naturalidade o “erro”, a questão de deixar a obra fermentar e depois revisar para lapidar. Neste sentido, faço um esforço para deixar fluir, mas é difícil perder o hábito de querer escolher a palavra ou frase certa a cada passo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Dá até uma tristeza ler essa pergunta agora: 2021, pandemia, trabalho remoto. Não consigo me organizar desde março, pois o home office chegou sem pedir licença e tomou a vida familiar, tomou a literatura e tomou cada canto da casa.Normalmente eu tinha um espaço e tempo dedicado à literatura, que variava conforme o meu horário de trabalho. Agora há uma distorção espaço-temporal causada pelo buraco-negro insaciável do home office.
Normalmente estou com 3 a 5 projetos em andamento: pode parecer bastante, como se eu fizesse malabarismo, mas tem projeto fluindo, tem projeto gotejando e tem projeto estalactite (que não chega nem a gotejar, vai em ritmo de cristalização até tocar o solo e virar realidade). Não consigo ter um só projeto em andamento, até pela dinâmica de produzir prosa e poesia, de querer arriscar-me na tradução e nos infantojuvenis; mas não tenho pressa para nada, vou fazendo as coisas no meu tempo e dentro dos meus limites, por conta da vida profissional, principalmente agora que ocupo um cargo de gestão na educação, que ocupa bastante tempo e a cabeça.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Posso contar a história toda? Melhor resumir, né? Quando criança e adolescente, sempre gostei de ler, de escrever e de contar histórias. Em 2002, tive uma experiência bem traumática, fui espancado na rua junto com um amigo (suspeitamos que nos confundiram com outras pessoas, mas nunca soubemos ao certo) e entrei em um período bem depressivo, mergulhado no trabalho de produtor de vídeo e em outros exageros da vida. Em 2004 conheci as obras literárias do Eduardo Galeano: comecei pelo “De Pernas pro Ar”, segui para o “Palavras Andantes”, “Livros dos Abraços” (e hoje não se encontra uma biblioteca mais completa dele do que a que está aqui ao meu lado enquanto escrevo). Aquela literatura, aquelas vozes, aquelas histórias, aquele jeito de contar e encantar me fisgou, foi ali que eu pensei: “É isso que eu quero fazer!”. Naquele mesmo ano eu criei meu blog e comecei a pensar sobre o fazer literário. No ano seguinte, 2005, eu tive um colapso físico e nervoso após um período mais puxado no trabalho; e aí repensei todo o resto e reforcei a decisão de dedicar-me à literatura.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
No começo era mais difícil, porque só queria produzir quando vinha inspiração, produzia pouco, não tinha muita experiência, então acabava sendo pautado pelas referências e ficava algo meio Quintana, meio Galeano. Não que se comparasse à qualidade desses ícones, né? Não me entendam mal! Eram minhas referências e influências.
Em 2007 eu decidi que, se eu queria mesmo ser escritor, eu precisava exercitar e praticar a escrita. Então, em 2008 eu comecei a “bater ponto” no blog: de segunda a sexta eu precisava produzir um texto curto (prosa ou poesia).
Para dar uma ideia de como funcionou: de 2004 a 2007, publiquei 139 textos no blog. Em 2008, foram 242. Então, foram 242 exercícios literários, 242 ideias que eu precisei encontrar um caminho para transformar em texto: uma solução aqui, outra ali.Nesse processo todo, acabei desenvolvendo os vícios que a gente chama de estilo. E o que me deixou com mais certeza de que eu estava no caminho certo foi que naquele mesmo ano, 2008, eu reuni os textos, saí cortando, editando, costurando e compus o livro Colcha de Retalhos para inscrever no Prêmio SESC de Literatura. Na época, divulgavam não apenas os vencedores, mas também os finalistas; e o Colcha de Retalhos estava lá na lista de finalistas. Fiquei super orgulhoso do meu filhote, que acabou sendo publicado em 2011, após vencer o Prêmio Utopia de Literatura.
Eu até consegui manter firme o “bate-ponto” por três anos, com 254 exercícios literários em 2009 e 205 em 2010. Depois disso, a vida comeu meu tempo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Difícil escolher três, mas vou tentar focar na experiência subjetiva e na influência que tiveram na minha trajetória literária.
Livro dos Abraços, do Eduardo Galeano. Peço emprestadas algumas palavras do autor para justificar a escolha: este livro me ajudou a perceber que “este mundo de infâmia está grávido de outro mundo possível”; e só por isso já se torna inestimável.
Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Destaco até pelo contraste com o Livro dos Abraços, pois o livro retrata um cenário de desolação e desesperança. O livro também conta com um estilo distinto de narrar e refletir, ir e voltar, de uma maneira bem peculiar e que prendeu bastante minha atenção nesta e em outras obras do autor.
A queda, de Albert Camus. Com uma estrutura narrativa relativamente simples, um monólogo na madrugada (pode-se dizer que é um diálogo com o leitor), o autor levou-me a uma jornada da qual nunca mais retornei. E, se retornei, eu já era outro, metamorfoseado em juiz-penitente. Foi um dos poucos livros que eu precisei de um intervalo antes de começar a ler quaisquer outros. A Peste, do mesmo autor, também foi marcante, mas não recomendo a leitura para o período que estamos vivendo agora.
Enquanto leitor, que me marcaram e me influenciaram na vida, podia citar mais um punhado de obras, mas vou ater-me a estas três (tá bom, quatro, admito que eu roubei uma e citei A Peste) que marcaram mais a minha trajetória literária.