Rodolfo Noronha é professor de Sociologia e Antropologia dos cursos de Direito e Ciência Política da UNIRIO.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha manhã geralmente define como será o resto do dia. Por isso eu tento sempre tirar um tempinho para acordar devagar, meditar, alongar e planejar o que tenho pela frente. Parei de beber café, sentia que se de um lado ele ajudava a despertar, de outro ele provocava baixas de energia ao longo do dia. Essas oscilações mexiam comigo. Sem cafeína e com uma outra rotina, a impressão é que o cérebro liga mais devagar, mas liga, e segue um movimento crescente. O começo foi difícil… uma hora o corpo se acostuma, e o foco não oscila mais. Daí as atividades começam a fluir com muito mais naturalidade, a escrita flui melhor. Por mais que tenhamos um turbilhão de coisas para nos preocupar e pressionar, vale a pena começar mais devagar para conseguir chegar no fim da caminhada.
Além disso, eu moro com duas gatas, o que exige certas rotinas. Acho que essa é uma boa sequência: primeiro me organizo, depois organizo as duas e a casa, e só então me sinto pronto para começar a pensar em trabalho e outras atividades.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso varia menos por minha vontade, mais pela força dos compromissos… Quando posso escolher, gosto de começar de manhã, depois de cuidar de mim, das minhas gatas e da minha casa. Acho que as ideias estão mais frescas.
Quando entrei na reta final da escrita da tese de doutorado procurei me isolar por dois meses, janeiro e fevereiro. Acordava de manhã, cuidava da minha gata (na época, uma só), fazia uma caneca de café (ainda usava esse recurso), lia rapidamente as notícias e começava a trabalhar. Ficava dias sem sair de casa, só eu e minha gata. Sei que estou me repetindo, mas é que faz a diferença ter uma presença amiga.
Quando cansava ou sentia que já não conseguia elaborar discussões mais densas, parava e passava para alguma atividade diferente, como uma forma de “mudar a chave” e descansar – ou fazendo alguma coisa em casa (novamente Madalena fez por merecer a presença nos agradecimentos) ou fazendo outra tarefa mais mecânica da tese, como formatação, preparação das referências bibliográficas, etc.
Outro bom truque que aprendi nessa época é sempre planejar bem, organizar o tempo, preparar – e seguir – cronograma. Mesmo que saibamos não ser possível dizer “vou escrever cinco páginas hoje” (e realmente cumprir), ajuda muito olhar para uma folha de papel ou uma tela de computador e ver o caminho já percorrido e o que ainda falta. Não estabelecia exatamente um número de páginas, mas pontos ao qual queria chegar em certo tempo. Escrita depende de inspiração, mas é feita de transpiração. É clichê, mas é verdade. Sem ter uma agenda, as coisas se perdem na cabeça.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem sempre dá para estabelecer – e cumprir – uma meta diária. Em alguns dias as ideias fluem, em outros parece que nada que sai serve. Em outros piores ainda você descobre que aquilo que você passou horas escrevendo não te ajuda, por que te leva para um caminho que te obriga a fazer coisas que você não fez nem vai fazer. Ter esse discernimento é difícil e doloroso… a tesoura corta o texto, mas parece que corta a carne também… Mas não corta, só parece. Então, a tesoura é importante.
Mas até para isso, é necessário ter tempo, planejamento. Eu não funciono bem com metas diárias exatamente por que em alguns dias as ideias não se conectam com a mesma facilidade. Por isso é sempre bom ter outras tarefas que envolvam o texto, mesmo que não signifiquem produzir texto diretamente. Isso significa que o seu trabalho está avançando, que uma hora as coisas vão se reconectar. É verdade que a pesquisa empírica facilita esse tipo de processo, pois sempre resta alguma tarefa menos lúdica a ser feita. Creio, entretanto, que isso pode ser dito dos processos de escrita em geral.
O importante é saber onde se quer chegar e permanecer no caminho, mesmo que por vias secundárias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é sempre o mais difícil. E é sempre a parte mais truncada do texto, a que exige uma revisão mais prolongada. Depois ganhamos confiança e partimos em frente, conectamos as ideias com mais naturalidade. O Roberto Cardoso de Oliveira era um antropólogo que dizia isso, que escrever é racionalizar a experiência, ou seja, é colocá-la de forma ordenada até que faça sentido, até que seja possível encontrar conexões entre as coisas. Muitas vezes dizemos “já tenho tudo pronto, tá tudo aqui na minha cabeça, só falta colocar no papel”. O problema é que colocar no papel não tem nada de simples. O papel constrange as ideias, obriga a questionar, a ligar o que tem aproximação e a afastar o que não se relaciona. É o exercício racional de organizar as ideias em uma narrativa.
Muita gente, principalmente no direito, opta por começar escrevendo sobre coisas que não tem relação com o texto, mas que estão mais próximas, são mais fáceis. Reconhecem o problema de início de escrita, e procuram uma saída fácil. Acreditam assim que a pessoa ganha confiança para abordar finalmente seu objeto, em algum ponto do percurso. Não sigo essa linha, não acho que essa forma de começar seja produtiva. Acaba levando a uma perda de energia e de tempo (recursos importantíssimos na escrita) em discussões menos importantes para a proposta central. É dessa noção que vem, por exemplo, o péssimo hábito de textos na área do direito que começam sempre com “as origens” do objeto. Remontam à Roma, Grécia, Egito Antigo. A impressão que fica é que se está lendo um almanaque, com curiosidades sobre as coisas.
De fato, é difícil começar. Por isso sempre tento começar dizendo qual é a minha relação com o tema, o objeto, o campo, o problema. Por que e como resolvi começar a fazer aquela pesquisa. Se for o caso, contar das dificuldades do campo, ou de encarar o quadro teórico, e que soluções encontrei. Acho que isso me permite fazer essa transição entre a pesquisa e a escrita com mais tranquilidade, não apenas para quem me lê, mas principalmente para mim mesmo. É sempre difícil saber quando a pesquisa está “madura”, pronta para ser racionalizada, e assim, terminada, entregue. Não tem receita, o truque é prestar atenção no que aqueles dados (ou anotações, fichamentos, etc.) podem te dizer, que tipo de conexões teóricas são possíveis, que objetivos podem ser verificados com o que você já fez. Tem uma hora que o texto começa a querer sair da cabeça. Aí é a hora de dizer “chega”, não vou ler ou coletar mais nada, a não ser que a escrita peça. E então, começar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essas coisas fazem parte da vida, nem sempre conseguimos estabelecer e realizar o método que queremos, pelas pressões que sofremos. Temos hoje uma capacidade de acesso à informação gigantesca, mas também (e talvez por isso) estímulos que nos desviam o foco. Como eu disse, eu, por exemplo, tenho duas gatas…
Talvez o medo da trava seja pior que a trava. A culpa pela procrastinação atrapalha mais que o tempo perdido em si. Acho que não devemos sofrer por isso. Isso torna a escrita dolorosa, e contribui para travar ainda mais. Também não tem receita, mas talvez tenha maneiras de lidar. Ter um cronograma, ter clareza dos seus objetivos, do que é necessário para realizá-los, talvez isso tudo ajude. E saber também que uma hora a cabeça destrava, e que quanto menos sofremos com isso, melhor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Essa é outra dificuldade, terminar a revisão e soltar o filho, digo, o texto para o mundo. Ele nunca estará pronto de verdade e essa é a primeira coisa que eu precisei entender para terminar meus primeiros artigos. Novamente, talvez ajude estabelecer previamente o desenho de pesquisa com muita clareza, saber seus objetivos e como irá abordá-los, e a partir daí estabelecer o que será necessário que ele cumpra para ser considerado “pronto”. Muita gente se preocupa com o número de páginas, com quantas páginas devem ser escritas. Mais importante do que ter meta diária de páginas talvez seja ter metas de temas, de tarefas, de objetivos, exatamente por que uma vez que o desenho de pesquisa está bem estabelecido, você saberá que etapas deve cumprir. Isso ajuda a saber a hora de dizer “adeus”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de usar um caderno sem pautas, pois com a folha limpa é possível desenhar, rabiscar, escrever setas, conectar ideias. O papel dá uma noção espacial, o que ajuda muito. Até folha ofício dobrada, ou guardanapo de papel servem, desde que permitam essa visada mais ampla do que se tem e do que se pretende fazer. A pesquisa sempre começa nesses rabiscos, para mim. Ali eu defino um desenho básico de investigação, com três elementos, três perguntas que tento responder: 1. Objeto (sobre o que quero pesquisar? Onde? Quando?); 2. Objetivos (o que quero entender nesse objeto? O que nele me incomoda, me motiva?); 3. Abordagem (como vou realizar esses objetivos?). Vou rabiscando as respostas e começando a pensar na pesquisa.
Daí parto para um desenho mais complexo, com etapas, ideias sobre campos e referências teóricas, tarefas, etc. Só quando olho para aquele monte de rabiscos e consigo visualizar o fio lógico conectando aqueles elementos, é que sei que tenho um caminho a seguir.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Assim como no próprio processo de pesquisa e de escrita, acho que a rotina ajuda. No meu caso, como professor, procuro estabelecer uma rotina de trabalho que conecte a sala de aula com a conjuntura. Uma maneira de fazer isso é desenvolvendo projetos de pesquisa e de extensão, que trazem à tona dimensões concretas sobre os fenômenos sociais. Essa rotina de projetos, com encontros, estudos, debates, permite manter um fluxo de ideias que não apenas motivam, como fornecem referências de trabalho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Escrita é trajetória. Escrevemos sobre o que nos marca, e enquanto escrevemos vamos ficando marcados pelo que fazemos. Então, assim como outras experiências, a escrita amadurece com o tempo. Acho que o que mais mudou especialmente desde o processo de escrita da tese para hoje é exatamente saber ter calma, para ter clareza, para que o processo ande. Lembro do Almir Sater cantando aquela música “Tocando em frente” (“ando devagar porque já tive pressa…”) sempre que penso nisso. A escrita pode ser dolorosa ou não, e essa maturidade ganha com o tempo (e com algum sofrimento) permite sofrer menos, bem menos. Mas para isso, para sofrer menos, só tem um jeito: escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre há muito trabalho a ser feito, especialmente se você pretende entender o mundo à sua volta. Isso às vezes dá uma certa agonia, mas dá também a sensação de que aquilo que se está fazendo tem um sentido, que o conhecimento tem um sentido.
Então, acho que o projeto que eu gostaria de começar e o livro que eu gostaria de ler talvez fale sobre isso. Sobre o processo de entender o mundo à nossa volta, e sobre o que fazer com esse conhecimento.