Robertson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu organismo tem uma rotina ingrata, que não combina com minhas necessidades: sinto-me muito mais desperto e ativo à noite, mas preciso acordar cedo para cumprir minha rotina de trabalho. Por conta disso, tenho dormido muito pouco, entre cinco e duas horas por noite, com muitas interrupções. Nada saudável.
Meu corpo acorda sempre com alguma música no despertador, algo que me convide a levantar da cama – pode ser Madredeus, Frank Sinatra ou a voz do meu filho cantarolando uma de suas canções preferidas. Depois da higiene pessoal, sento-me no sofá da sala e ligo a televisão no noticiário matutino, até que sinta minha mente despertar; é muito raro ela estar conectada ao corpo antes disso. Com a mente ativada, preparo meu café ou parto para o meu escritório. Recentemente, introduzi um novo hábito por conta de um curso que estou a preparar: ler ao menos uma poesia antes de sair de casa. Não raro o caminho até o trabalho é preenchido pelos ecos do poema que li naquela manhã. Está sendo uma experiência interessante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Decididamente, a noite é o melhor período do dia para me concentrar na escrita. Mas há muito tempo adquiri o hábito de sempre ter à mão uma caderneta para anotar ideias que vão surgindo ao longo do dia. Vez por outra, revisito as cadernetas – são muitas, espalhadas entre minha casa e o escritório, algumas com mais de dez anos de uso – e encontro frases, esquemas, listas ou pequenos textos que anotei em algum momento e não levei adiante. Hoje mesmo encontrei um excerto que, mostrado para alguns amigos, gerou comentários positivos e me motivou a analisar novamente o tal texto, para quem sabe usar em algum projeto futuro. Assim surgiram contos e poemas meus, vários deles, ao longo dos últimos anos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca consegui estabelecer uma meta de escrita diária. Meu trabalho burocrático, meu ganha-pão, não me permite – é muito sazonal, intercalando dias de ócio com outros períodos de atividade muito intensa, com viagens e palestras. Escrevo sempre que posso. Mas considero essencial a prática da escrita.
Para forçar-me a escrever com frequência, assumi recentemente o compromisso de assinar duas colunas semanais em um site de notícias de uma pequena cidade do sertão pernambucano chamada Bodocó, quase na divisa com o Ceará. O site é um desses maravilhosos milagres criados pela tecnologia: gerido por um entusiasta, tornou-se uma das principais fontes de informação dos municípios da região. E eu, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, publico lá uma crônica semanal e uma coluna cultural que traz sempre a resenha de um livro e recomendações de filmes, peças teatrais, eventos culturais diversos. Imaginar esse diálogo virtual entre Sul e Nordeste, Porto Alegre e Bodocó, enche-me de esperanças de que a Literatura sempre irá encontrar um modo de resistir…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Desenvolvi um método de planejamento de romance, que ensino aos meus alunos de Criação Literária, no qual se minimiza o chamado bloqueio criativo ao estabelecer-se muito claramente para mim o destino daquela história.
Talvez eu tenha trazido isso dos meus anos de oficial da Marinha: para navegar, estabelece-se o porto de chegada e traça-se, então, a derrota – um termo naval que significa o caminho a ser seguido – para lá chegar com segurança. Na escrita de um romance, defino qual é o meu tema, qual é a minha abordagem daquele tema e traço uma derrota para essa viagem: escrevo, em uma única frase, qual é essencialmente a minha história, incluindo ali o protagonista, seus objetivos, o conflito que lhe impede de alcançá-los e como se resolverá o impasse.
Com a história claramente definida na minha cabeça, é hora de preparar-se para a escrita: preencho os momentos de pânico, em que uma voz sabotadora tenta me convencer a desistir de tudo, com pesquisa e planejamento. Não divido em duas fases distintas – pesquisa e escrita; trato-as como complementares: uma vez tenha estabelecido uma boa base para o romance, permito-me já escrever algumas cenas ou capítulos e isso me motiva a seguir adiante. A pesquisa é essencial, mesmo quando o autor seja considerado um expert em dado assunto.
Isso tudo não impede que haja mudanças ao longo do caminho. Quase sempre há diferenças enormes entre o primeiro tratamento de um texto e sua versão final – e falo aqui, inclusive, no que diz respeito à história, aos personagens e suas trajetórias. É como em um navio: a derrota serve como guia, que seguiremos mais ou menos de acordo com as condições do mar… Mas, para mim, não há como navegar um romance sem saber qual será o porto final – é o que me diz minha experiência de escritor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A prática levou-me à compreensão do processo criativo, então hoje já não sinto tão fortes as “travas da escrita”. Creio que, para mim, foi libertador aprender que o ato da escrita é, sobretudo, um ato de reescrita – que teu texto raramente sairá pronto de tua mente, imaculado, sem necessidade de emendas, supressões, reparos, na primeira vez que o colocas no papel. Compreender isso ajudou-me a calar um certo espírito perfeccionista que me congelava durante a escrita. Sei que terei a oportunidade de reescrever e, com isso, deixo a imaginação fluir mais livre no primeiro tratamento dado a qualquer dos meus textos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nem sei ao certo quantas vezes eu reviso… Eu releio muito os textos, durante o processo e depois de finalizado. Não tenho problema algum com revisão, menos ainda com a ideia de ter leitores qualificados que tenham acesso aos textos originais. Costumo sempre pedir para amigos mais próximos, de preferência não apenas os ligados à Literatura, que façam para mim o papel de primeiros leitores – e instigo-os a fazerem críticas sem medo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Vivo bem sem a tecnologia no início do processo: gosto de fazer à mão o planejamento, o desenho das personagens, as definições de tempo e espaço e até mesmo as primeiras cenas que escrevo naquele projeto. Mas não há como desprezar as facilidades todas do computador, sobretudo durante a fase de revisão e reescrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio, leio muito, e de tudo. Alimento-me de Cultura, se podemos assim dizer. Ouço música todo o tempo, vou ao teatro sempre que posso, gosto de assistir filmes e minisséries, sobretudo as adaptações feitas a partir de obras literárias. E converso, muito, com as pessoas que cruzam meu caminho, observo atentamente seu modo de expressar-se e guardo com atenção muitas das histórias que me contam. Tudo isso depois vai servir de matéria-prima para a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tornei-me um escritor mais consciente. Despertei, finalmente, para o fato de que o texto literário é, essencialmente, um texto composto de intenções. É arte, portanto é feito para conduzir o leitor a determinado estado de alma, reflexão ou conclusão. E só se alcança isso com o pleno domínio da técnica de escrever – do artesanato da Criação Literária –, da bagagem de experiência humana que se acumulou e a clareza de objetivos e propósitos que se quer dar àquela obra.
Se eu pudesse voltar aos meus quinze anos, quando comecei a escrever e sonhar com uma carreira literária, aconselharia aquele menino a ser menos pretensioso e apressado; diria para ele se dedicar mais a aprender sobre o processo de escrita com os grandes mestres, que sempre foram muito generosos com os aspirantes a escritor que lhes procuravam para aconselhar-se na profissão. Mais que tudo: tentaria convencê-lo a não ter pressa nenhuma de publicar, e fugisse das editoras caça-níqueis e dos concursos literários que as enriquecem como o diabo foge da cruz…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho todo planejado um livro que reconta a história de um clássico da literatura norte-americana, mas transpondo a história para o Segundo Reinado brasileiro. Infelizmente, a correria da vida e outros tantos projetos literários acabaram me impedindo de começar sua escrita – por enquanto!
O que gostaria de ler e ainda não existe? Alguns romances e livros de contos geniais que alguns de meus alunos me apresentaram na forma de projeto, mas nunca executaram. Queria ter dinheiro para ser o mecenas de alguns deles, pagar-lhes para que escrevessem; de outros, queria comprar-lhes o argumento, já que desistiram da escrita.