Roberta Tostes Daniel é poeta, autora de “Uma casa perto de um vulcão” (Patuá, 2018) e “Ainda ancora o infinito” (Moinhos, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo num misto de resistência e cansaço. Levantar é difícil, depois de um sono frequentemente ruim. Tendo essa realidade como ponto de partida, a manhã acontece irregular: um desábito matinal, relutante, regado a muito café e um tempo dedicado aos meus cães. A semana se divide entre o trabalho administrativo, alguns dias na rua, e as manhãs em que posso estar em casa (trabalho por escala). Essa dinâmica também impõe variações e permite tempo livre para leitura, pesquisa, escrita. Quando é possível, gosto de ir tomar sol para que a tarde seja filtrada pela luz, o que permite uma energia bastante diferente dos demais dias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Normalmente, sinto-me mais produtiva quando anoitece. É o momento em que ideias convergem, decantando as sensações. É também o momento mais silencioso do dia, silêncio vital para que essa escuta do mundo se dê. O sono deste mundo parece, aos notívagos, um mergulho no estado de vigília, e a alguns escritores, uma vigília por palavras, por uma audição como que transversal aos movimentos sonares e os de mais difícil e misteriosa captação. Não possuo ritual de preparação para a escrita, senão deixar que se complete a acumulação destas coisas todas, ideias e percepções, para que algo se materialize, através de um princípio gráfico sobre o branco: um entranhamento pela música, um estranhamento das formas e o reconhecimento, talvez, das obsessões.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Passo alguns ou muitos dias sem escrever, mas em todos elaboro alguma caligrafia interna; alguma nota mental; uma cena; um querer; um derruir. Todos os dias a escrita está presente devindo pela leitura que é também partitura, pela observação dos elementos minuciosos daquilo que me interessa. Mas não tenho uma meta de escrita diária, deixo essas coisas acontecerem livres.
Como é seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita se dá, como mencionei, por acumulação; disso resulta um transbordamento que corre no papel. Uma vez que escrevo, burilo, reescrevo diversas vezes; ali mesmo, no calor do momento. Um poema pode vir pronto, pode ser calcado pouco a pouco, passando por várias interfaces e instâncias. Pode se transmutar totalmente. Acho que sempre haverá alguma lacuna em relação ao que foi intuído e imaginado; uma imprevisibilidade; uma inalcançabilidade. É da linguagem isso. Depois desse processo, vou buscar novas coisas, outros encontros. Mas tudo é pesquisa, mesmo a rotina: das relutâncias matinais, ao sol, às interrogações do texto alheio, tornado meu. Faço de cada movimento uma tentativa de significação, uma fenomenologia, um alinhamento entre a dificuldade de dizer e o desejo de tocar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Entendo a linguagem poética como uma ferramenta para a vida menos ordinária; não naquilo que lhe é elementar, mas quando nos destituímos, nos deixamos manobrar. Aquela vida em que não se adentra sem prejuízo e crescimento, mas que se singulariza e nos singulariza, certamente também pelo afeto – pelo que nos afeta. Então, prezo muito pelo processo o mais vívido possível, que possa ser alicerçado por esse desejo movente por algo a se dizer e a transformar, ainda que num microcosmo: concepções, garantias, solidez. Para mim é preciso pô-las abaixo. Por isso, recebo o que me vem com naturalidade e consciência: o medo, o processo de secura, de entressafra, em que nada mais é possível dizer, a impossibilidade de dizer em determinado momento. Busco ouvir as camadas abaixo da escritura que indiquem o que está impossibilitando que ela venha à tona. Não é um processo fácil ou isento de angústia, mas é o modo, creio, mais honesto de encarar esses desafios.
Em relação a projetos mais longos, e o que tenho neste sentido até agora são, creio, os dois livros que publiquei, a ansiedade não influiu, ao menos não de maneira ostensiva e prejudicial. Uma das obras esperou seis anos para ser concluída, repensada, até a edição. O outro livro também sobreveio após anos escrevendo, ele aconteceu depois de um debruçamento no material que já possuía. Talvez, a naturalidade com que tudo ocorreu justifique as publicações, talvez a falta de mais e mais etapas de construção possa tê-las comprometido; não sei. Creio que nesse ponto quem se interessar por ler aqueles livros, poderá me dizer; se quiser.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não costumo voltar exaustivamente aos poemas que escrevo. O processo de reescrita e burilamento se dá no agora, na feitura do poema, no ato de lhe entrever a forma, de encontrar sua maneira de ser e soar o aqui. Às vezes publico no Facebook; antes, em blog. Desses movimentos, surgem interlocuções interessantes, às vezes.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo em quase todas as vias possíveis: no computador, celular, à mão. Uso bastante programa de edição de texto online, para acessar de onde estiver. Não importa muito a plataforma, embora cada qual proponha um ritmo próprio, marcando o poema, de alguma maneira. A escrita de maior fluidez tende a nascer à mão. Depois, costumo voltar ao texto utilizando o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas vêm do mundo, das vivências; talvez, sejam mais percepções que ideias; estados afetivos. As ideias se emaranham à forma com que estas pulsações acontecem, perfazendo descobertas à medida que escrevo. É uma forma de ultrapassar o limite da pele e chegar ao lugar da respiração, da vitalidade. Não cultivo hábitos para me manter criativa, busco manter a lucidez à flor do pensamento e com ela alguma coisa se encaminha.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Passei da prosa poética para a poesia. Mas não saí da poesia. Mudou bastante porque amadureci, envelheci, vivi. A voz foi toda repensada para um novo recorte, foi acompanhando essas transformações. No começo eram textos naturalmente mais autocentrados, com um alcance, acho, menor de mutabilidade e reverberação. Eu não diria nada se pudesse voltar, apenas começaria de novo. E já não seria um retorno.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro pensado a partir de fotografias. Há também o convite de um poeta querido, o Marcelo Ariel, para escrever sobre as músicas do Elliott Smith, além de outros compositores, mas não dei seguimento. Aliás, é um desafio ainda não realizado escrever em parceria. Quero muito ler um livro da Marceli Andresa Becker e novos livros de diversos poetas contemporâneos que admiro demais. Mas são livros que já existem, em alguma medida, se pensarmos que eles nascem em muitas dimensões e modos antes de publicados. E renascem incontáveis vezes depois.