Roberta Ferraz é escritora, doutora em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em primeiro lugar, preciso dizer que tenho escrito quase nada, e que, sendo assim, começo a escrever aqui, nesta entrevista, e recomeça uma ficção qualquer sobre a escrita. Hoje eu acordei com dor de dente, é normal que eu acorde lenta, mas a dor desperta uma urgência outra, o tempo fica ultrassensível, resolvi responder suas perguntas. A rotina é querer um livro pela manhã, não escrever – querer ler. O livro aplaca o trânsito da cama à rua, nesta cidade de são Paulo. Se eu saio muito cedo pra cidade, sem dez passos antes nas páginas, é certo que terei uma crise alérgica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É uma pergunta que me coloco. Respondê-la continua o traço ficcional: acho que de noite, das 21h à meia-noite, mas já não sei. É quando estou sozinha em casa, isso acontece pouco. Tenho saído até um apartamento vazio em que vivia minha avó, para lá me pôr diante da escrita, mas muitas vezes deito no sofá ou abro um vinho. Não escrevo. Os rituais de entrada à cena são, todavia, um maravilhamento à parte. É gostoso se inscrever neles, mesmo que para nada. Para nada é gostoso também. Entrar na mola da escrita quando você está com os ossos mais rijos, como eu agora, é um exercício intenso. Passei quatro anos escrevendo uma tese de doutorado, que terminei um ano e meio atrás. Embora tenha escrito muito, escrevi muito pouco. E há sempre a sorte, a chance, o risco de perder a mão. Agora é até difícil dizer que sim, eu escrevo. Eu sou aquela que escreve quando está escrevendo, fora disso, não sei como me reportar à minha relação com a escrita. Mas tudo bem, o nosso amor a gente inventa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando você está fora da mola engrenada da escrita, como eu disse, é estranho responder a um questionário sobre como você escreve. Se julgar absolutamente inútil, e achar que o inútil não tem seu valor, sua beleza, desconsidere de coração tudo isso, peço favor. Porque estou inventando: sobre quando eu estava constantemente com a escrita. Naqueles dias, escrevia a esmo, concentrada e dispersa, método nunca foi rei. A mão pega o pulso e dá a hora e dá seu tino, seu sangue. O cavalo mágico, eu acho, é bonito quando assim quase tão selvagem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Adoro pesquisa. O mais gostoso de muitos livros a vir é a pesquisa e os muitos livros a ler que são ofertados ao caminho. Querer dizer é amar buscar quem já disse, como disse, por que disse. Os caderninhos já foram mais claros para mim, hoje anoto tudo em sequência no papel que estiver por perto, no mesmo caderno, contas a pagar, receitas de desejos, contagens regressivas, frustrações, médicos, ingressos de cinemas, quase-poemas, trechos de outros autores, planos de um romance mirabuloso. Tudo misturado, deixei de me preocupar em separar as pedras. Quando o livro tomar fôlego, a cintilância de um passado de notas acende suas marcas, a gente se reencontra sem querer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ah, escrevendo. Escrevendo sobre. O medo é forte aliado, ele escreve bem. Melhor do que o júbilo enfeitiçado com a vida. Nem tento mais filtrar esse orvalho do corpo contente, para a palavra. Aproveita dele o corpo mesmo. Sorvo com outra língua. Mas o medo, os medos, um dos rostos visíveis de estar no mundo: esse eu deixo dizer, quero que diga. É mais sincero, menos conivente, menos conveniente, menos cínico. É bom.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até dizer chega. Não sei bem como isso funciona. Digamos, ficcionalmente, que eu reimprima umas treze vezes o mesmo projeto de livro antes do fim dele. Por aí, talvez. Eu adoro mexer, corrigir e já reimprimir. Não é ecológico, eu sei. Muitas folhas (eu fico pensando, as árvores sacrificadas, a gente consumindo oxigênio pra escrever bobagem – mas daí repenso, sim, desperdícios, coisas perdidas, é assim mesmo, e é tão bom quanto dói) muitas folhas, rapidamente descartadas. É um certo delírio do livro sem arestas, o diamante unívoco, a inteireza. Isso não existe. O livro não chega lá. Então na hora desse cansaço, ao invés de reimprimir mais uma cópia quase idêntica à anterior, o livro vai pra publicação. E sim, gosto que algumas pessoas leiam os textos antes. Mas é um jogo complicado: você praticamente tem que implorar pro outro ler e o outro lê constrangido, acuado. Eu tento seduzir de outro modo, mas sobra muito essa sensação de um leitor por compaixão, por obrigação, por amizade, por amor, por sexo, etc. Comércios da vida. Depois, comércio íntimo findo, aí é certo: com o livro à solta, ninguém lê. (Escrevo rindo, não dá pra negar que há beleza nisso, que há força, uma alegoria funda da experiência toda – ou quiçá um símbolo, hermético, uma chave?)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto da ideia de escrever à máquina. Mas minto. A máquina está empoeirada. A mão também. O computador tem sido servido por tarefas menos literárias. Talvez a realidade do desejo da escrita esteja mesmo na borda dos livros que leio. Encontro projetos lindos ali, esquecidos, lançados à deriva na rota de uma leitura. A sorte de reencontrá-los movimenta a mão, novamente, e inventamos uma roda, mais uma vez.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vêm do corpo, do corpo no mundo, do corpo com outros corpos, da maneira como cada corpo se diz, se apresenta, se movimenta, ataca, defende, ofende, aquieta, goza, teme. Essa atenção à voz, aos cacoetes, onde a gente relincha, onde a gente foge, onde gagueja, onde gagueja é impressionante. Os focos de intensidade, de cosmogonias, de invenção de tudo, que cada corpo comunica, que cada linguagem de cada corpo é. Os hábitos do meu corpo são os hábitos da minha escrita: a vontade platônica de dançar, sobretudo. O sonho de um corcel amoroso. A bebida semanal. A repetição idílica com os amigos. Sair pra rua com fones de ouvido. O esmagamento cheio de indiferença que é atravessar tantas dores em lugares públicos, o leve alívio que dá quando uma dor por acaso sorri, os corpos suados de quem fica ao sol de pé cantando labuta, ritornelo, o cheiro das ruas da cidade de São Paulo, a fome. O medo dos policiais. A ironia do excesso de mercadorias bem tratadas e tanta gente surrada tendo que ouvir o elogio da mercadoria. Alguns muros com jasmim. Duas gatas que vivem comigo. O banho de cânfora nos cabelos. E sobretudo: o mar. Mergulhar. Estar submersa. É muito, o mar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A escrita envelhece junto com o corpo, porque ninguém escreve sem corpo, nem faz nada sem ele. Meu rosto envelhece lentamente, eu acho. Embora a expressão perdida daquela adolescente, um riso aberto que já fui outra. Acho bonito que os textos atestem esse sorriso que já dei. E outras mumunhas e draminhas que hoje são cochilo, chá suave, nenhuma preocupação. Mas não deixo de notar que as feridas são muito as mesmas, só com casca e cor distintas. Aquilo enovelado lá dentro é ainda o mesmo fio com que invento um labirinto, para respirar, enquanto o tempo atravessa. Sobre a escrita de minha tese, eu faria igual, é tão recente, e eu estive tomada de paixão, que o bem maior que qualquer um pode sonhar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de começar a escrever o livro que comecei a escrever no final do ano passado. É sobre o encontro de dois fantasmas, em leitura, inspirados nos meus amores violentos, Hilda e Pascoaes. Gostaria de lê-lo, se ele já existisse, e que ele tivesse sido escrito pela Llansol, com ajuda do Vicente Franz Cecim, Hadewijch e Alexandrian. E uma mãozinha oculta do Pessoa.