Rita Isadora Pessoa é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia com um café da manhã decente, reforçado, pois não funciono bem de manhã antes de comer. É até uma piada interna na(s) minha(s) casa(s), pois ao menor sinal de qualquer mau-humor duvidoso da minha parte, sou imediatamente questionada se já fui devidamente alimentada ou se estou na zona-perigosa-antes-do-café-da-manhã, na qual sou capaz de dizer coisas muito cruéis e insensíveis para outras pessoas e para mim mesma. Além disso, preciso da pia da cozinha completamente vazia de louça suja e a cama arrumada, muito arrumada. Qualquer tentativa de trabalhar de maneira produtiva cai por terra se a minha cama estiver desarrumada. Tenho dificuldade de trabalhar com mesas, de forma que monto workstations no sofá da minha sala ou na minha própria cama e espalho livros, cadernos e notas ao meu redor, ao alcance da minha mão. Estaciono uma caneca de café com leite fumegante ou um copo de coca zero bem gelada ao meu lado, a depender da estação, e abro os trabalhos, geralmente depois de um cuidadoso ritual de procrastinação onde tiro uma carta de tarot para o meu dia e leio um hexagrama do i-ching se eu estiver muito angustiada com o processo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral, eu sou mais produtiva e focada de manhã. Por conta de dificuldades de dormir num horário saudável para mim, eu tenho, nos últimos quatro anos, acordado mais tarde do que eu fui acostumada a despertar ao longo da vida. O meu ritmo biológico natural era dormir por volta das 20h/21h e acordar por volta de 5h30/6h da manhã. Mas isso mudou um pouco nos últimos anos. Por conta disso, as minhas manhãs já não têm a mesma duração (e nem a produtividade enérgica) de antes. Mas quando tenho um prazo ou uma meta de trabalho, costumo colocar o despertador para horários inusitados. 2h, 4h ou 5h da manhã…
Eu gosto de escrever bebericando algo. Café com leite, suco, coca zero… Gosto de ambientes silenciosos, o que nem sempre é possível, inclusive se eu estiver muito mergulhada no processo, não consigo nem ouvir música.
A presença dos meus gatos costuma ser vital para criar uma atmosfera tranquilizadora de escrita para mim. Minha companhia preferida para escrever – ou para tentar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou mais adepta dos períodos concentrados, embora eu tenha a convicção de que eu adoraria a ideia capricorniana de uma Rita constante e coerente, com um número fordista de páginas diárias ou semanais. Mas o meu ritmo de produção é irregular por natureza. Sou fatalmente escapista e uma procrastinadora genuína. Tenho mercúrio em signo mutável, lua e marte em signo mutável e, para mim, é particularmente difícil estabelecer uma rotina que permaneça a mesma ao longo do tempo. Saboto com maestria a minha própria produtividade, no entanto, eventualmente tenho picos olímpicos de devoção disciplinada à escrita, e, nesses momentos, eu me sinto como que atingida por uma corrente elétrica – e como tal, preciso dar um destino a esta carga, tirá-la do meu corpo, do meu sistema e depositá-la na terra, ou no computador, no caso.
É óbvio que diante da necessidade, eu já me vi criando metas – irreais ou não – e batendo ponto na frente do computador para dar conta de um projeto. Como também sou pesquisadora, a escrita acadêmica costuma ter também as suas demandas, prazos e seu modus operandi próprio.
A verdade é que eu tenho métodos distintos para poesia e para prosa, acadêmica ou de ficção. E eles também não são isentos de mutações ao longo do tempo. Eu certamente não escrevo da mesma maneira que aos dezenove anos. E imagino que terei outra relação com o processo de escrita aos trinta e cinco, aos quarenta, cinquenta anos – se eu viver até lá.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bom, o meu processo de escrita não é homogêneo. Para a poesia, eu costumo usar notas, inclusive uso o bloco de notas do meu celular… Uso cadernos também. Às vezes eu demoro para terminar: vou produzindo aos poucos a atmosfera do poema, gestando, maturando os versos. Faço rascunhos, depois volto e modifico a ordem dos versos, mudo títulos, reescrevo os finais. Os finais dos poemas são muito importantes para mim. Se eu não estiver razoavelmente satisfeita com o final do poema, eu fico muito desgostosa, com a sensação de estar devendo algo e só o considero terminado depois dos ajustes, quando então a sua engrenagem interna para de ranger dentro de mim. Mas eu também escrevo poemas em jorro, supetão. Depende muito do gatilho do poema. Se é um poema que se desdobra de um processo emocional doloroso, aflitivo ou passional, se ele vem de um assombro estético, de uma leitura impactante, ou mesmo de uma palavra ouvida ao acaso, que infecciona e se prolifera. Quando o poema requer um trabalho estético mais dedicado da minha parte, em geral, costumo demorar mais para começar ou para terminar um rascunho. É o caso, por exemplo, de dois poemas finais do meu livro ainda no prelo, ‘madame leviatã’. São poemas dedicados a duas figuras artísticas femininas – uma oriunda da dança e outra das artes visuais. Tenho notas, versos, pesquisa imagética, todo o material comigo, mas falta o momento da montagem do poema, momento esse que requer uma atenção maior à estrutura, ao ritmo, à homeostase interna do poema.
Com a prosa acadêmica, o processo é um tanto diferente. A leitura é sempre o ponto de partida da escrita. Eu leio, ficho, e vou montando os pensamentos suscitados ao longo das leituras e pesquisa. Daí vou articulando, concatenando as ideias e burilando o texto no processo.
É na prosa de ficção, sem dúvida, que o processo de escrita que me demanda maior esforço, maior disciplina e imersão. Preciso de cadernos, post-its e uma paciência que me é particularmente penosa para revisar, refazer, cortar, jogar fora. Às vezes me vejo muito apegada a trechos que eu reconheço a necessidade de serem cortados, mas que a minha resistência recusa a deixá-los ir. Fico bastante angustiada com o processo, pois tendo a ser muito crítica com a minha própria escrita neste gênero e os bloqueios são maiores do que em qualquer outra forma que eu tenha me atrevido a enveredar até o presente. Burlar a minha própria autocensura destrutiva dentro do processo de escrita de prosa ficcional é o maior desafio com o qual me deparei até hoje como escritora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu venho erguendo templos e altares para os deuses da fragmentação, tendo fé de que encontrarei nessa marca do nosso tempo um ponto de ancoragem. Os gêneros híbridos e fluidos me interessam bastante, pois me parecem mais compatíveis com o meu tipo de fôlego e com as minhas referências estéticas.
Sobre a procrastinação e a ansiedade, fico ansiosa e arredia só de pensar no assunto. Não tenho uma solução definitiva para estes terríveis males do ofício e nem pretendo algum dia ter. No dia em que escrever for incrivelmente fácil e instantâneo para mim, eu provavelmente vou deixar de escrever. Gosto da ideia do paradoxo, da tensão, do desafio faraônico que a escrita coloca para mim e ao mesmo, do seu caráter lúdico, prestidigitador, farsesco e infantil.
O medo de não corresponder às expectativas corre veloz no tutano dos meus ossos e eu tenho, no fim das contas, ossos razoavelmente fortes. Veja bem, eu já parto do pressuposto de que eu não vou corresponder às minhas expectativas e daí eu faço acordos internos comigo mesma, concessões doloridas e me coloco no meu devido lugar, que é o lugar de aprendiz. A escrita me ensina a escutar melhor o que eu não consigo ouvir com clareza. Me coloca num estado sensível particular, de me ver afetada de forma incômoda, mas potente, pelas coisas ao meu redor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como eu sou também sou revisora por ofício, a importância do processo de revisão para mim se faz muito clara. No meu próprio trabalho acadêmico, sinto muita necessidade de um olhar externo que me aponte os meus pontos cegos em relação ao meu próprio texto, ou mesmo no que diz respeito ao pensamento contido nas entrelinhas do que eu produzo. A recepção do texto é sempre algo que precisamos levar em conta na medida em que escrevemos. Há sempre um endereçamento na escrita, um [L]eitor – absoluto ou não – com o qual nos colocamos em interlocução.
Na escrita poética, meu parceiro, Leonardo (Marona), costuma ser o meu primeiro interlocutor. Quando “termino” um poema, costumo enviá-lo para ele por e-mail e ele me dá um feedback, e eu costumo retrabalhar ou revisar a partir dessa escuta inicial que ele faz. O meu primeiro livro de poemas, ‘a vida nos vulcões’, foi extensamente revisado junto com ele. Foi uma grande ajuda.
Também tenho um grupo de amigas escritoras (Estela Rosa, Taís Bravo e Danielle Magalhães) que também são excelentes leitoras e com quem tenho tido cada vez mais vontade de trocar leituras e insights sobre textos, gêneros e dificuldades no processo de escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é boa, até. Não é incrível, veja bem. Não sou da geração touchscreen e, para todos os efeitos, sou quase uma old millenial. Era criança na época da internet discada ainda e acompanhei com um interesse moderado os principais booms tecnológicos dos últimos anos.
Eu costumava escrever à mão, em caderninhos ou mesmo nas margens ou páginas finais dos meus cadernos de mestrado, especialização e doutorado. Poemas inteiros foram escrito nas margens das páginas de disciplinas de psicanálise, literatura moçambicana ou mesmo em oficinas de revisão e copidesque. “Passar a limpo” no computador era um processo já posterior, de reescrita, montagem e revisão.
Em 2010, quando comecei a sair do armário como escritora, criei um blog chamado Desencaixotando Rita. Lá muitas vezes eu exercitava a escrita livre, sem rascunho e publicava imediatamente o que escrevia, em tempo real. Já não escrevo mais tanto nesse blog e, em termos de plataforma, tenho visto com uma certa curiosidade desconfiada o Medium e as newsletters literárias do WordPress. Ainda não me sinto completamente confortável na vida, quero dizer, nessas plataformas, mas acompanho várixs autorxs amigxs – ou não – que fazem um uso incrível desses espaços e das mídias sociais como um todo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm dos mais diferentes lugares. Às vezes eu me vejo impressionada, assombrada por algo que eu li num livro ou num texto que vem me parar nas mãos e isso acaba produzindo, por sua vez, um texto meu, como uma resposta inevitável. Outras vezes, um filme, uma obra de arte, uma coisa dita por algum estranho ou conhecido num bar, uma palavra que eu ouço por acaso no ônibus, um diálogo estranho, uma reportagem inusitada que me foi posta diante dos olhos por algum algoritmo inescrutável, um sonho que tive numa noite e que me acende por dentro feito um relâmpago radioativo.
Eu não sei muito bem se eu tenho um conjunto de hábitos que tenham essa prodigiosa habilidade de me ‘manter criativa’… E honestamente, nem sei se estou pessoalmente muito bem familiarizada com o conceito de criatividade, tal como ele tem sido difundido nos últimos anos, muitas vezes associado a termos como ‘empreendedorismo’, ‘liderança’, e outras capacidades/assets que me parecem completamente incompreensíveis, estrangeiras em relação ao mundo que eu habito.
Na minha opinião/percepção, ou talvez seja melhor dizer na minha experiência, as ideias estão em todos os lugares. Você só precisa se sintonizar com elas. Refinar a sua escuta. E tentar, com todas as suas forças disponíveis, burilar os seus recursos pessoais ou suas ferramentas narrativas, poéticas ou dissertativas para contar, narrar essas histórias, essas impressões ou ideias com as quais você entravou uma relação ‘criativa’.
Eu acredito particularmente na função oracular da linguagem. No seu mistério. Há algo do processo de criação que resiste substancialmente ao nosso esforço de desvelamento, como uma zona de sombra que insiste em permanecer desconhecida, sob o risco de se fechar em total opacidade e de não dizer mais nada – o terror de qualquer escritor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Eu passei pela experiência de me levar mais a sério como escritora. Para, em seguida, iniciar o processo de me levar menos, bem menos a sério. Os lugares instituídos me incomodam demais. Não sei se me sinto tão confortável no lugar instituído da literatura. Nem como escritora, nem como pesquisadora. Eu tendo a travar conflitos internos com tudo aquilo o que eu me afirmo publicamente em termos existenciais, profissionais, pessoais, e secretamente iniciar movimentos transgressivos que me coloquem de novo em conexão com as motivações interiores que me levaram a escrever em primeiro lugar. É muito fácil se perder no mundo literário. E eu tenho um pendor particular para me perder na vida. Deveria ter tatuado uma bússola no meu pulso. Ou no meu peito. Para evitar maiores quedas e desvios.
O fato é que escrever como profissão já foi um desejo e como qualquer desejo, a sua realização traz mais problemas do que soluções. Não pretendo entrar muito nessa discussão, pois ela é polêmica e especialmente dolorosa para pessoas como eu, então, se eu fosse dizer algo para a Rita dos primeiros escritos, eu diria para escrever mais. Escrever a sério, escrever por prazer, por culpa, por obrigação ou por brincadeira. Pelo motivo que fosse, sem se preocupar tanto com o resultado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de terminar um romance que está fermentando desde que eu tinha 23 anos. Eu passei anos e anos sem coragem de dar voz a ele. Mas acho que algumas coisas têm o seu próprio tempo de maturação, e, como capricorniana que sou, entender o poder de ação do tempo pode ser algo precioso para a minha experiência literária tanto como autora quanto como leitora.
Eu estou sempre em busca de livros sobre personagens femininas – reais ou ficcionais. A questão da mulher como narradora, como personagem ou eu-lírico me interessa bastante.
Ah, sim, minha verve gótica suave sempre está à espera de um livro que reúna elementos fantásticos, investigativos e poéticos num mesmo fôlego. Os subgêneros neonoir, Southern gothic, policial e fantástico têm me atraído bastante ultimamente, tanto no que diz respeito à ficção literária quanto audiovisual.
Eu gostaria muito de ser surpreendida por um livro que conjugasse elementos desses subgêneros com uma força poética descomunal.