Rita de Podestá é escritora, roteirista e publicitária.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia prometendo que vou seguir uma rotina matinal (que envolveria leitura, meditação e exercício) e termino meu dia prometendo que, no dia seguinte, eu vou cumprir essa tal rotina matinal, e assim segue. Mas existe sim uma mini ordem no meu caos: três sonecas no despertador, água com limão e própolis, banho, depois café preto, um ovo e uma fruta que como quase sempre com a toalha na cabeça escutando o jornal do rádio (o que tem me deprimido logo pela manhã, então estou pensando em mudar para a música).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto das manhãs para eventuais exercícios físicos, tarefas da casa e a procrastinação (apesar dela me acompanhar ao longo do dia). Às tardes priorizo os freelas de produção de conteúdo para jornalismo ou publicidade, com os famosos prazos para ontem. É depois das 19h que eu consigo decantar o dia e escrever ou ler. Mas não sou de ir madrugada adentro, já tentei, e apesar de ter meus dias de insônia, não consigo produzir, então instaurei a meia noite como um horário razoável. De ritual: pouca luz, pouca mesmo, silêncio ou música instrumental (para não ouvir os arranques dos ônibus da rua mais próxima), e alguma bebida ao meu alcance (pode ser café, chá ou água, mas também pode ser vinho ou uísque). Isso é um dia ideal, mas acho que eu não acredito em dias ideais ou eles apenas não existem.
Quando bate a vontade de trabalhar fora de casa (para lembrar que existe mundo além da minha sala 3x3m) funciono bem em cafeterias com burburinhos de falas alheias. O problema é que me sinto obrigada a consumir e quando vejo já tomei três espressos e comi mesmo sem estar com fome. Também adoro escrever em aeroportos e aviões (parece que estamos num limbo), ainda que eu não viaje tanto assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tenho uma meta maior do que consigo cumprir, então o pouco que faço já me parece muito, uma forma de me educar e me motivar constantemente. Um amigo costumava me dizer que eu coloco minha régua muito alta, eu achava que isso era ruim, hoje acho que é uma forma de continuar escalando e me desafiando ao invés de acelerar a corrida até o topo. Na verdade, eu nem sei o que é o topo, muito menos se quero chegar até lá.
Também tenho um diário online, do qual me esqueço dele com frequência. Ainda assim, de certa forma, escrevo quase todos os dias, mas nem sempre nos mesmos projetos, que são muitos. E o dia em que eu não escrevo, leio, e como leio para escrever, acho que é quase a mesma coisa.
Só sei que no fim, não escrever é mais doloroso do que escrever, e olha que escrever é sempre doloroso, ainda que seja muitas vezes prazeroso (meu paradoxo mais querido e odiado).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Anoto muitas ideias de frases, diálogos ou trechos, mas, principalmente, frases iniciais e títulos órfãos de enredo. Admiro muito quem planeja o conto ou o romance antes de escrever. Não consigo criar já tendo esqueleto, mesmo que seja para abandoná-lo depois. Geralmente, meu texto vai se escrevendo, assim mesmo, no gerúndio, como se eu fosse a canoa e ele o rio, ou o contrário. Tenho facilidade de escrever muito, e por isso minhas primeiras versões costumam ser muito prolixas (como essa resposta), e por isso meu grande drama é a edição. Muitas vezes eu perco o controle. Recentemente, um personagem descobriu um câncer que eu não tinha planejado, e eu ainda não sei o que fazer.
Já a pesquisa acontece antes e durante a escrita, e para isso o mundo da internet é maravilhoso, de que outra forma eu saberia, do conforto do meu lar, quais as coisas mais bizarras que já foram retiradas de pacientes em cirurgias? Ainda assim, gosto da biblioteca por perto para inspirações e mini plágios (talvez por eu ser da última geração que tinha que pesquisar na enciclopédia para reescrever com suas próprias palavras).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido, mas por algum motivo continuo insistindo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns estão sendo revisados há três anos. Mas se é um conto ou um projeto que tem um prazo ou que eu sei que mais de uma pessoa vai ler, costumo ler em voz alta, duas ou três vezes. Algo que me ajuda e impulsiona muito é um grupo de escrita do qual participo e que se encontra já há algum tempo no espaço cultural Escrevedeira, da escritora Noemi Jaffe. Lá, mais do que discutir literatura, lemos uns aos outros, e cada conto que levo volta com cerca de quinze percepções diferentes, e isso é maravilhoso. Porque é fácil conseguir quinze amigos para tomar cerveja, mas achar dois para dar palpites nos seus textos literários é um pouco mais complicado (eu mesma estou devendo algumas leituras, espero que me perdoem).
Por fim o publicar em si, eu vejo como um ato de desistência, um chega de reescrita, de palpites, não aguento mais. Já as crônicas que costumo publicar no mediumou nas redes sociais, escrevo na hora e depois reviso e edito várias vezes (se alguém quiser ler algo que eu postar, o melhor é esperar algumas horas).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse, sou da geração que passou da enciclopédia para internet em plena adolescência, então prefiro (incondicionalmente) os livros aos e-books, gosto de ouvir vinis e tenho um telefone fixo em casa. Mas escrever é só no computador, mais especificamente no word, folha A4, Times New Roman, corpo 12, espaçamento ⅕, justificado. Quanto às ideias, trechos e citações de livros escrevo em cadernos variados, tenho no mínimo quatro, de preferência folha pólen com a pauta clarinha (não sei de onde vêm esses ‘tocs’, mas eles existem e são difíceis e caros de sustentar).
Também escrevo em post-its que na maioria das vezes caem da parede ou viram porta-copos, e na falta de papel ou para as ideias de madrugada também envio textos ou áudios no Whatsapp para o meu número (é estranho, mas também é divertido falar com você mesma).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da literatura, muita literatura, clássica e contemporânea, grande parte das minhas ideias surgem da leitura de outros livros; da leitura de textos, ensaios, jornais e frivolidades (esses dias, sem planejar, eu estava lendo sobre as dez coisas mais bizarras que já caíram do céu); de filmes, exposições, manifestações, muros de rua, portas de banheiros, rótulos, bulas, cardápios…; de conversas alheias enquanto ando a pé ou de transporte público; de conversas com pessoas que sabem mais do que eu sobre qualquer tema (com o professor eu aprendi a ler Ilíada com o porteiro já tive uma boa aula sobre alienígenas), ou com pessoas que eu acabei de conhecer (pessoas novas fazem perguntas novas ou renovam perguntas antigas que você não responde há muito tempo); do contato com artistas e escritores que trocam ideias e te convencem de não desistir; do silêncio, da observação e do tédio; de situações bizarras com as quais a vida, vez ou outra, me presenteia; e, eventualmente, fazendo coisas que eu sei que eu não deveria estar fazendo. Resumindo: de qualquer lugar e geralmente nas horas mais inesperadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo, menos a vontade de escrever. Talvez o que mais tenha mudado na escrita em si foi a percepção do ato de escrever como um processo consciente e não mágico ou fruto de um desabafo. É tudo muito recente para mim, ter curiosidade de como tudo opera, que existe a melhor palavra, a melhor frase, a melhor ordem, e que a escrita não é inspiração, mas um acúmulo de vida, de repertório e de muita insistência. Ainda sim, tenho a consciência de que não sei quase nada e de que é caminho sem fim. Por isso, se fosse dizer algo pra mim, lá no início, eu não diria nada, para não me assustar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou boa em começar projetos (minha vó dizia que eu era devota da Nossa Senhora do Bom Começo), então a ideia é finalizar o que já comecei. Tenho dois romances engavetados que espero terminar um dia, mas, antes, o plano é terminar um livro de contos e outro infantil que estão mais avançados.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, eu espero que ele demore para ser escrito. Ainda faltam muitos livros da minha estante e da lista de compras que parece que se reproduz a cada dia. Faz um tempo que minha vida é regida por ‘três tenhos’: tenho que ler; tenho que ver; tenho que escrever.