Rinaldo de Fernandes é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho, sim. Após o café da manhã, diariamente, de segunda a sexta, quando não estou dando aulas na Universidade, eu me sento para escrever. Faço isso há muitos anos. Só consigo escrever pela manhã. No meu silêncio, absolutamente concentrado em cada parágrafo, cada frase, cada palavra que aciono para o texto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como indiquei acima, só trabalho pela manhã. É um rito que desenvolvi desde a época em que escrevi a minha tese de doutorado, que defendi na UNICAMP. Eu morava em São Paulo num apartamento muito silencioso. Eu me sentava às 7 e escrevia até às 12h00 por vezes até às 13h00. Esse hábito eu levei para a escrita do meu primeiro romance, o Rita no Pomar, de 2008, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Fiz o mesmo com a escrita do meu segundo romance, o Romeu na Estrada, de 2014. E com o trabalho de organização das inúmeras coletâneas de contos e de ensaios que organizei nos últimos 10 anos, a exemplo de Chico Buarque do Brasil, Contos cruéis e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo diariamente, é uma necessidade. Tenho uma forte relação com a palavra, é o meu principal meio de expressão. Escrevo ficção, ensaios, colunas de crítica literária. Não importa o gênero, sei que diariamente me entrego à tarefa de produzir um texto. O que me dá mais trabalho, mas também mais prazer, é a ficção. Demoro muito para tecer um texto ficcional, penso bastante a frase, o ritmo dela, a força de cada palavra. Creio que literatura é artesanato. Imagino que um artesão tem dias que está com a mão mais leve, elabora com um pouco mais de facilidade a sua arte. Mas tem dias que a mão dele pesa e o trabalho emperra, empaca. O escritor também é assim: tem dias que a palavra está tão difícil de sair que os dedos das mãos ficam demorados. Mas tem dias também que eles acordam de repente, se precipitam para o teclado – uma espécie de reação nervosa à palavra procurada e finalmente encontrada. No fim, a literatura se faz mesmo é com os dedos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo ensaios ou textos mais voltados para o universo acadêmico, tenho muito cuidado com a paráfrase. Paráfrase, como se sabe, é transpor o sentido de um texto para um outro texto. O sentido, não a materialidade do texto parafraseado. Quando necessito recorrer a essa materialidade, eu faço a citação. Como o texto acadêmico se utiliza abundantemente de paráfrase e de citação, eu preciso ler com muita atenção, absorver com profundidade o texto que irei utilizar. Uma paráfrase mal feita decorre de uma leitura mal efetuada. De uma leitura apressada ou superficial. Há que ter muita responsabilidade com o texto alheio na hora da escrita da tese ou do artigo acadêmico. Ninguém tem o direito de, por fazer uma leitura ligeira ou superficial, colocar na boca de um autor o que ele não disse. Tenho um zelo muito especial com os meus materiais de pesquisa. Só utilizo um texto de um autor se o li com abrangência e de modo detido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já aconteceu de eu passar quase 8 anos para concluir um conto. Eu tive a ideia do conto “A Morta”, que consta do meu livro O perfume de Roberta, de 2005, num verão de meados dos anos 90. O conto veio de um jorro. Mas o jorro, como se sabe, ainda não é literatura. Tive receio quanto à forma do texto, à linguagem, o ponto de vista narrativo. E fui, efetivamente, procrastinando a escrita dele. Mas sempre o tinha perto de mim, aqui e ali as imagens da casa, da viagem dos jovens à pequena cidade litorânea, da noite de bebidas junto às águas no rio, da morte misteriosa – todo o cenário me cativava, se impunha. Até que um dia resolvi me sentar para lapidar o conto. E creio que ficou bom. Procrastinar a escrita de um texto pode ser muito positivo – é bem melhor do que a precipitação, a ânsia que pode levar a nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Trabalho parágrafo a parágrafo. Estampo o parágrafo diante de mim, fico trabalhando nele até a exaustão. Só passo para o parágrafo seguinte quanto sinto que o que estou escrevendo está pronto. Mesmo assim, retomo outras vezes os parágrafos já prontos e, aqui e ali, troco uma palavra, corto uma outra. Portanto, o meu processo é de revisão permanente, de retomadas repetitivas. Só assim cristalizo o texto. Não gosto de mostrar meus textos antes de publicá-los. Raramente faço isso. Fiz no processo de escrita do romance Romeu na Estrada – e a leitura prévia de alguns amigos escritores me foi muito proveitosa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo no computador. Raramente faço anotações em cadernos ou folhas. Se tenho uma ideia na rua, quando chego em casa abro o computador, coloco-a num arquivo, já esboço um texto, mesmo que rudimentar. E a partir desse esboço é que vem depois todo o empenho para a escrita do texto definitivo. Às vezes não consigo transformar a idéia em texto – mas deixo o esboço anotado. Mais à frente ele poderá ser desenvolvido, gerar algo que me agrade. Não gosto de perder ideias. Sempre as registro. E, cedo ou tarde, elas viram textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias às vezes irrompem nas horas mais imprevistas, em lugares inapropriados. Elas surgem do nada e o importante é saber aproveitá-las. No meu caso, como já indiquei, procuro logo fazer um primeiro registro, para não perder a ideia. É fundamental, no meu processo, levar a ideia às suas últimas consequências. Toda ideia, potencialmente, para mim, dá um texto. Mesmo que, no fim, eu seja vencido por ela, que não faça um trabalho do meu agrado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Pouca coisa mudou. Eu sempre tive a escrita literária como algo muito sério, que exige esforço, empenho. Escrever é um trabalho como outro qualquer – só que tendo como material a palavra. O preceito drummondiano de “lutar com a palavra”, base da construção do poema (e, por extensão, da própria literatura), sempre me foi muito caro. Eu o sigo á risca.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance sobre a vida brasileira dos últimos 50 anos. Um painel sobre o nosso país. O livro que eu gostaria de ler, se fosse possível, e se tivesse um autor com talento para tanto, seria um romance com a mesma força do São Bernardo. Para o retrato profundo do homem do nosso tempo, individualista ao extremo, violento, preconceituoso, indiferente à iniquidade social, e que submete o outro aos seus anseios de posse, de ascensão social, está faltando um romancista do porte de Graciliano Ramos.