Ricardo Silva é pesquisador, crítico de literatura e cinema.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na verdade, eu não adoto uma rotina fixa. Existe uma variável imensa na dinâmica dos meus dias. Então é muito possível que numa semana eu acorde cedo, faça as três refeições, vá na academia todos os dias, escreva e leia minha meta diária de leituras; e na outra semana pode acontecer de eu acordar tarde, não coma como um ser humano minimamente saudável deveria se alimentar, não leia quase nada, e escreva menos ainda.
Meu dia inicia de forma muito irregular. Não tenho como ter uma rotina matinal. Inclusive acredito, sob influência de Roberto Bolaño, que as manhãs matam um pouco a beleza do descanso. Não sou, majoritariamente pelo menos, uma pessoa matinal. No entanto, sempre busco ler algo assim que acordo, sejam notícias ou o que estava sendo lido um pouco antes de eu dormir na noite anterior.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A maior preparação que tenho para escrever e que, na maioria das vezes, gera resultados aceitáveis é a pressão do prazo. Tento delinear algo, pensar numa — ou receber uma — pauta quando é para escrever para publicações periódicas, e estabeleço um prazo limite. É esse prazo limite que me prepara para escrever, porque, geralmente, eu vou começar a produzir de fato o texto — seja ele qual for — quando estou com esse prazo quase estourando. Baseado nisso dá para imaginar que a minha produtividade melhore durante a madrugada.
Admiro e respeito quem acorda bem cedo para escrever e faz isso todos os dias. Mas não sou um Haruki Murakami, e começo a me sentir realmente preparado para escrever quando as primeiras horas da madrugada se aproximam. Nessa hora eu me sinto livre, leve e solto. Tudo ao redor adota a tessitura ideal que me permite pensar com a calma necessária para escrever. Sou crítico de literatura e cinema, além de trabalhar como consultor acadêmico, o que me faz usar o dia para ler e ver os materiais sobre os quais pretendo escrever. É o que tem funcionado por aqui.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever todos os dias tem sido um objetivo estabelecido para a vida. No entanto, como tudo por aqui, é um objetivo a ser alcançado ainda. Raras são as semanas que se preenchem com os setes dias de escrita. Mas toda semana escrevo. Nem sempre estes escritos encontram a luz do dia, e muitos empoeiram em pastas esquecidas pelo computador.
Os períodos concentrados costumam render melhores resultados. Seja um texto encomendado, uma resenha, a orientação de uma pesquisa, ou o que seja, quando me concentro por um curto período de tempo, o trabalho flui numa velocidade bem mais satisfatória. Isso diz muito da forma como funciono em termos de estrutura mental. Facilmente me distraio em trabalhos de longa extensão, por isso foco com todas forças em resolver aquela demanda no menor curto de tempo possível, o que nem sempre acontece dado que algumas pesquisas, textos, trabalhos, se prolongam por meses, e, alguns, por anos. O segredo é saber ser flexível de acordo com cada exigência. Buscar formas fixas de trabalho, sem a permissão da fluidez e da flexibilidade, costuma me atrapalhar mais do que me ajudar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ainda sou muito “refém” da memória. É raro eu compilar notas, mas isso depende muito da natureza do trabalho a ser feito. Caso seja uma pesquisa, uma revisão acadêmica ou algo do gênero, é inevitável o acúmulo de notas — que uso somente como guias para orientar o pesquisador que esteja sob a minha tutela ou para não me perder nos próprios insightsque vão surgindo ao longo de um levantamento bibliográfico, por exemplo.
Já quando o trabalho é de crítica, o texto vai se escrevendo mentalmente — a medida que vou lendo um livro a ser criticado é que vai se estruturando a resenha; o mesmo acontece com os filmes. Uso muito o recurso do rascunho mental e da escrita de chuveiro, aliás é no chuveiro que vivo melhor a etapa que antecede a transposição da ideia abstrata para as palavras concretas de um texto. Raramente trabalho exaustivamente em anotações prévias antes de iniciar o texto em si. Busco resolver os dilemas e problemas do texto no processo de escrita dele. É somente escrevendo que a noção se clarifica e é possível identificar se aquilo que está em produção tem alguma validade, diz algo, ou não.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação diz mais sobre minha inabilidade de gerenciar algumas emoções em torno da execução de uma tarefa do que necessariamente minha capacidade de me organizar para fazê-la. Por isso, quando me encontro com alguma dificuldade de dar cabo a uma demanda de escrita e vejo que o encaminhamento está lento, me afasto daquilo — claro, quando existe espaço no prazo pra isso —, e vou buscar investigar o que está me deixando bloqueado. Daí busco refletir sobre aquilo, ler material não relacionado ao texto e desanuviar de qualquer outra forma. Quando sinto que cabeça voltou ao seu lugar de origem, retorno com novo fôlego sobre o texto travado. Geralmente, dá bom resultado.
Sobre expectativas e ansiedades, tenho milhares delas sobre qualquer projeto que caia no meu colo, seja ele curto ou longo. Mas busco fazer o mesmo exercício de concentração que faço quando me sinto bloqueado: estabeleço um espaço de recuo que me permita visualizar o projeto num quadro maior e divido esse quadro em pequenas tarefas nas quais eu consiga me concentrar plenamente. Quando menos percebo, o projeto foi finalizado e tudo deu certo. Mas, claro, esse processo inteiro não é vivido da forma serena que faço transparecer por aqui. É feito à base de suor e um bocado de estresse.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como tudo que produzo, deixo o texto, depois de pronto, ter um dia de descanso — exceto em materiais produzidos para jornais e revistas; esses são revisados na sequência e raramente retorno a eles para refazer alguma coisa, só faço isso se o editor da publicação demandar. Nos textos de maior fôlego, tem esse descanso de um dia, e inúmeras revisões até eu considerar que o material esteja minimamente satisfatório.
Mas não reescrevo textos inteiros. Eles geralmente nascem numa versão que vai ser melhorada, aprimorada, mas nunca totalmente refeita. É bastante incomum eu refazer um texto inteiro, porque se há essa necessidade é justamente porque o texto não tem validade e a qualidade necessária. Nesses casos, quando o texto já nasce torto e enviesado, eu o abandono, o deleto, sumo com ele. O que for nascer depois dessa experiência vai ser distante do que veio antes.
Minhas pesquisas, os esboços, as ideias, não costumo compartilhar. Sempre sinto dificuldade em falar sobre elas. Mas recentemente tenho uma parceira de pesquisa — que antes foi minha professora na graduação e hoje é colega de trabalho — que se transformou na minha leitora-beta ideal: é oportunamente crítica trazendo contribuições e perspectivas muito importantes. Débora Aymoré, deixo aqui meu agradecimento público a você.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo direto no computador. Só os diários e anotações sobre leituras e filmes é que faço no papel. Tirando isso, todo texto é iniciado diretamente na tela.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leitura. Ler é o que me mantém produtivo. Se leio, escrevo. Se não leio, bloqueio. Não tem outra alternativa. Só consigo escrever satisfatoriamente se estou lendo de forma satisfatória. Essa é uma relação intrínseca e inquebrantável. Raras as vezes que tive alguma ideia que não tenha tido uma relação direta com algo lido, seja lá o que for — se livro, artigo, matéria jornalística ou uma publicação nas redes sociais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Me tornei mais confiante a respeito do que me proponho a escrever. Me tornei mais criterioso também sobre o quê vou escrever. Meu eu de dez anos atrás não tinha qualquer filtro, a ideia surgia, ele não buscava avaliar se aquilo valeria a pena ou não, já começava a escrever e caçar lugar para publicar. Nesse período, produzi textos dos quais me envergonho imensamente e outros tantos que ainda hoje me orgulho de ter escrito — estes últimos são contados a dedo.
Não gosto de reler textos antigos, prefiro esquecê-los. Quando eles retornam, através de desconhecidos meios, os evito de muitas formas. Aquilo é parte de um tempo inexistente e tenho buscado me concentrar apenas no que posso viver e tocar hoje, agora. É o presente que me interessa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de vida. Na verdade, dois. O primeiro é escrever uma biografia de minha mãe. A história de vida dela é muito fantástica para não virar um livro. Não me interessa muito o sucesso comercial da empreitada. Quero apenas poder entregar nas mãos dela o livro pronto e ver os olhos dela brilhando de felicidade. Esse é um projeto muito pessoal — creio que seja a primeira vez que esteja falando dele assim, publicamente.
O outro é uma obra que destrinche a história do amor — do conceito, do sentimento, das transformações históricas pelas quais ele passou e como foi este foi se moldando, e como o discurso amoroso é responsável por influenciar a construção da nossa estrutura social, econômica e política.
Minha inspiração pra isso é Fragmentos de um discurso amoroso do Roland Barthes, mas numa abordagem mais teórica. Já são alguns anos de pesquisa, no entanto, nada foi escrito ainda. A escrita começa ano que vem, assim eu espero.