Ricardo Muniz de Ruiz é historiador e poeta, doutor em História Social pela UFRJ e professor de História e Sociologia do Colégio Pedro II.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Isso é uma coisa pela qual não há controle. Depende da sua agenda diária. Se tenho compromisso cedo, acordo tomo café e saio. Se posso ficar na cama, estico até a hora de levantar. Não acredito em uma rotina fixa. O mundo contemporâneo exige várias rotinas. Dizem que é a tal de pós modernidade.
Quando posso sou Das Antigas, é o que mais gosto. Porém, existe, vamos dizer assim, as chamadas limitações externas. Para sobreviver, é necessário aprender a lidar com elas, o segredo é fazê-lo da melhor forma.
Dizem os estudiosos, que um dos problemas da pós modernidade é justamente este: as coisas mudam tão rápido que não há tempo de se formar uma tradição!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu fico com uma ideia na cabeça horas, dias, meses. Vou as alimentando, questionando, dando rasteiras. Nesse processo utilizo vários procedimentos. Faço uma lista de citações de cada autor. Procuro confrontá-los entre si ao elaborar. Relaciono as ideias que pretendo defender e as contrárias, as quais pretendo questionar ou combater.
Na medida em que vou arrumando esse quebra cabeças (a tal bricolagem dos franceses), é que a inspiração vai se desenvolvendo. Até chegar a hora do insight ! Quando esse momento se apresenta não preciso mais pensar. O cérebro passa a comandar o processo, não penso, só obedeço. Chego a perder o controle do texto, ele vai saindo pelos dedos da mão, sou mero espectador. Algo próximo do que os antropólogos denominam transe xamaníaco… Nessa hora, escrever é puro prazer!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É muito importante ter um método. Criar metas. Focar nelas e procurar executá-las. Porém há um importantíssimo detalhe. Não se pode ser escravo delas. A qualquer hora pode-se alterar tudo e mudar os planos. Como no jogo de xadrez, é sempre melhor um plano imperfeito que nenhum.
Uma das coisas que procuro fazer é criar condições de trabalho. Um passo importante é resolver os detalhes do cotidiano, tipo contas a pagar, hora de pegar filha na escola, fazer compras de super mercado.
Sem resolver essas coisas o escritor pode preparar altas armadilhas para si próprio e perder o importante momento da inspiração. Imagina uma cena: altas horas, sua inspiração chegou, as ideias fluem naturalmente… dá fome, você vai na cozinha e não tem nada para comer ! O herói terá que se virar, porém, nesse processo a inspiração pode se esvair. Detalhe, para voltar ela vai cobrar muito caro !
Um exemplo concreto ocorreu comigo séculos atrás. Eu estava inspiradíssimo e na hora h a luz foi cortada por que tinha esquecido de pagar a conta…
Você é responsável por criar suas condições ideais de trabalho. Existem situações inesperadas. Cada um deve preparar suas alternativas. Ter um problema não é necessariamente ruim. O que é péssimo é não estar preparado para enfrentá-lo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acredito no anarquismo metodológico. Assim, cada caso é um caso ! Desconfio muito de certas generalizações. Me parecem incapacidade de lidar com o real.
Não existem regras fixas ! Cada um deve criar formas de acordo com seus hábitos. O que serve para um não serve para outro. Um marco da filosofia ocidental nasceu com Sócrates: – Conhece-te a ti mesmo ! Não adianta inventar metas ou regras que não se adaptem ao gosto do freguês. É criar armadilhas para si próprio. Cada indivíduo tem um melhor momento para escrever. Uns ao acordar, outros antes de dormir outros depois do almoço, por aí vai. O mais importante é criar um padrão e o ir aperfeiçoando até atingir a meta estabelecida.
É importante ressaltar que a escrever é um sistema ! Um sistema funciona quando seus elementos estão bem articulados entre si. Aí está a capacidade do pesquisador – escritor. Não adianta ficar inventando regras a priori. Um bom sistema deve estar preparado para encontrar o que se procura mas também o que não se está procurando. E isso não é sorte, é método. Quem dá um bom exemplo é Roberto DaMatta em seu antológico texto O ofício de etnólogo ou como ter Anthropological Blues.
Um bom sistema sempre pode agregar novos elementos ou descartar o que não funciona. O que adianta você estar numa Ferrari de um milhão de dólares e não dispor de combustível ?
Conversar é fundamental. Os colegas sempre podem descrever sua experiência. Ou pelo menos fazer companhia numa hora de desespero, algo inerente a qualquer boa criação ! Se não há colegas, pessoas leigas que te ouçam. Aí também é um momento de se verificar a qualidade do pesquisador. Conseguir explicar a leigos, de forma que estes entendam, suas angústias e poder ouvir suas sugestões. Quando um pesquisador afirma que ninguém o entende, no meu ponto de vista, a culpa é dele ! Ele é que não sabe se comunicar. Como dizia o velho Chacrinha: – Quem não se comunica se trumbica !
Gosto de ilustrar minhas histórias. Certa feita, um sujeito dirigia na Via Dutra e ligou o rádio. O locutor esbaforido alertava: – Se você está na Via Dutra muito cuidado ! Tem um louco na contramão ! O dito cujo indivíduo olhou para frente e refletiu: – Apenas um ? São dezenas !
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
I. A procrastinação faz parte do processo de trabalho do escritor ! Tem horas que é melhor parar tudo e ir beber um chopp. Não dominamos o processo de escrever. Nos adaptamos a ele. E o processo também deve adaptar-se ao escritor.
Vou relatar um caso particular. Certa feita tinha que entregar um texto no dia seguinte (até as 16 hs). Já estava nele há 48 horas e empaquei. Sai, fui beber um chopp e cheguei quase de manhã. Acordei com o despertador ao meio dia. Levantei, peguei o texto e em meia hora consegui fazer o desfecho que na noite anterior havia me detido por horas à fio.
Não peço para que sigam meu exemplo, mas para que cada jovem escritor descubra suas próprias formas de conviver com o inevitável.
II. Quanto ao medo de não atingir os objetivos . . me parece que esse medo é o nosso melhor incentivo. Quando escrevo quero o melhor de mim. O medo me obriga a abandonar vícios, preconceitos, idiossincrasias e falsos paradigmas. O medo pode ser muito bom ! Aquele friozinho na barriga. Sem ele, seríamos insuportáveis e descartáveis. Ouso afirmar: ridículos ! Aprender a lidar com o medo é o grande segredo. Só quando o enfrentamos é que podemos desvendar nossos próprios limites ! Aquele temor: – Ih não vai dar tempo ! É o que ensina a nos superar !
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma coisa é o feijão, outra o sonho. Tudo depende de prazos. Se tenho tempo releio até o texto olhar para minha cara e dizer: – Não se atreva a alterar uma vírgula !
Quando há prazo, entrego até a dead line ! Essa situação já me fez entregar textos sem sequer revisá-los. É acabar e entregar. Hoje em dia, as regras acadêmicas exigem isso. Uma das qualidades requeridas ao bom pesquisador – escritor é cumprir os prazos. A capacidade do escritor está em adequar o que é possível fazer no prazo estabelecido sem comprometer a qualidade da escrita, ou seja, aquilo que ele quer passar aos leitores. Nessa hora é importante saber o que descartar ou deixar para outra ocasião. Não é fácil. Demorei muito tempo para aprender isso ! Mas, como disse Darwin: ou se adapta ou morre !
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente utilizo as duas formas de escrever. Não pretendo abandonar à escrita manuscrita. É um de meus maiores prazeres ! Porém, cada vez mais a minha relação com a tecnologia aumenta. A necessidade do uso da informática é um exemplo de fato social, como definido por Durkheim.
A escrita depende muito da situação, se tenho prazo para entregar um texto vou direto ao computador. Porém, se disponho de tempo gosto de rabiscar e colocar no papel as ideias primeiro. Depois às passo para o computador e as vou desenvolvendo. Quando posso, a inspiração dita o ritmo. Adoro escrever com as duas técnicas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
I. Acredito que o bom escritor antes de tudo é um bom ouvinte. Muitas ideias proveem de papos. Guimarães Rosa que o diga ! A conversa desinteressada, na gíria: jogar conversa fora, é um excelente local para pescar ideias, recolher matéria prima que depois podem ser elaboradas. Muitas coisas que desenvolvi na escrita são coisas que ouvi na infância. Sei que nem todos tem boa memória. Nessa hora, não custa nada escrever à mão essa ideia. Muitas vezes, em bares na boêmia, pedi ao garçom uma caneta emprestada e registrei em guardanapos de papel. Devido ao estado etílico sabia que poderia esquecer no dia seguinte. Já tive grandes surpresas ao acordar e encontrar esses tesouros !
II. A leitura é outra excelente fonte. Não apenas o que está impresso nos livros. Leio frases onde estou: no ônibus, nos muros, jornais, revistas, propagandas, restaurantes, banheiros públicos, letreiros luminosos etc.
A criatividade é um estado de espírito. É estar sempre alerta para as ideias que pairam no ar. Todas as formas são possíveis. Se o escritor está desatento, o que ele procura pode passar na frente dele … e ele não verá !
III. Outra grande fonte são nossos sonhos. O sonho é um mergulho no inconsciente, Freud já desenrolou isso. É verdade que costumamos esquecer nossos sonhos rapidamente. O dramaturgo Luis Carlos Maciel ensinou-me a técnica de dormir com caneta e papel ao lado da cama de dormir, para ao acordar escrever rapidamente o sonho.
IV. O teatro, o cinema, os saraus, fotografias, artes plásticas, a música popular e erudita, as boas aulas (cada vez mais difíceis) são também outro oceano de matérias primas e fonte de inspiração para quem gosta de escrever. Onde quer que esteja, procuro captar o que está no ar. Muitas vezes um filme ou uma peça teatral não possuem a qualidade que procuro, mas se estou lá fico atento, por que no meio da coisa pode vir uma cena interessante, que no futuro pode servir de inspiração.
V. Finalmente, não posso deixar de falar dos grandes livros, ou seja, aqueles que vão ser nossos companheiros o resto da vida ! Sejam de ficção ou teoria. Não é o gênero que faz o grande livro, mas o autor ! A maneira como ele entrelaça e articula as ideias. É uma fonte inesgotável de insights: a revelação interior !
Marx e Sade, por exemplo (independente das ideias que defenderam), foram grandes escritores porque leram muito !
Muitas ideias que desenvolvi no doutorado retirei de romances ou poesias. Também muitos poemas que escrevi retirei de textos teóricos. O importante é estar ligado, conectado. Sei que isso não é fácil, e não aprendi isso em um dia, um mês ou um ano. Isso é um aprendizado para toda a vida ! Um trabalho de formiguinha, imperceptível no cotidiano. Agora, quando o formigueiro está pronto ele pinga fogo !
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não vejo as coisas dessa maneira. Pelo contrário, sempre guardei todos os meus escritos. Num dia qualquer pego uma velha folha de papel escrita e procuro o que pode ser aperfeiçoado. Essa é uma dica muito importante ao jovem escritor ! Não jogar fora seus rabiscos, mesmo que no momento possam parecer descartáveis. Às vezes, quando o tempo passa, apenas uma frase do texto se salva. Porém, essa frase que foi salva, pode ser a luz para a elaboração de uma grande obra, aquela que o autor tem consciência e orgulho de tê-la feito. Caminantes, no hay caminos. Se hacen caminos al caminar. Sempre escrevi para satisfazer meu ego. É o meu parâmetro. Não importa se os outros gostam ou não. Em primeiro lugar tenho que agradar a mim mesmo. Isso não me impede de pedir e ouvir opiniões.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bem, já escrevi uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado. Vários ensaios, textos didáticos, contos, crônicas, roteiros, slogans, além da poesia (onde acredito que sou mais conhecido). Pretendo um dia escrever um romance. Tenho algumas ideias em gestação. Sonho com o dia que vou poder escrever. Porém, ao contrário do texto acadêmico que tem prazos, o romance que sonho elaborar será fruto apenas do prazer de escrever. Em nosso meio social não é fácil criar essas condições. Lembro um sábio conceito sociológico: existe uma carência entre meios e fins. Não há nisso nenhum tipo de determinismo ! Na ciência e na arte não há espaço para essa postura. Determinismo é papo de religião ! Não sou teólogo nem profeta. – Não me segue que não sou novela ! O que acredito tenho que citar em inglês: There is a will there is a way ! Traduzo: Se há um desejo há um caminho !
No caso da dissertação e da tese só as entreguei no último dia da prorrogação. Gostaria de tê-las desenvolvido mais um pouquinho, porém, se não as entregasse seria jubilado do programa de pós. Foram elogiadas pela banca (além das ferozes críticas de praxe). Mas em meu ego sinto que faltou mais um mês para finalizar do jeito eu gostaria, mas isso já é outra história. Voltando ao romance, só quando não houver limitações, o escreverei. Só quando rolarem as tais CNTP vou partir para esse projeto.