Ricardo Marcelo Fonseca é professor de História do Direito e Reitor da UFPR.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para mim, o início do dia é sôfrego: uma batalha que começa na hora que devo despertar até estar de pé. A partir daí, um banho, um café, um suco e comer algo dão o sinal verde para a correria que começa em seguida. Nas manhãs vivo um grande dilema: como não quero perder os últimos minutos do sono, acabo por não começar o dia com a calma necessária e que gostaria de ter.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã, que é para mim mais produtiva. Mas quando estou premido por prazos – o que acontece com frequência – posso trabalhar bem a qualquer hora. No fundo, o maior combustível quando estou escrevendo algo é o envolvimento com aquilo que está para sair, e quando o envolvimento é alto fico ansioso para continuar trabalhando. Mas, de modo geral, ao final do dia minha energia para a escrita diminui.
Não tenho um ritual fixo para preparar para escrever. Só busco estar num ambiente calmo e silencioso (não consigo – como tantos que conheço – ouvir música enquanto trabalho, que me distrai e me tira o foco). Procuro também me desligar de e-mails e redes sociais nessa hora. E sinto que as coisas vão aquecendo devagar, e o ritmo vai crescendo passo a passo. Depois de uma hora de trabalho, mais ou menos, é que entro no ritmo ideal.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não recebi o dom da disciplina. Escrevo sempre premido por prazos e projetos. Geralmente sou mais produtivo nos últimos dias do meu prazo ou quando alguém me relembra que estou próximo do “dead line”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho uma regra fixa para isso. Depende muito do trabalho que estou escrevendo. Mas em geral gosto de rabiscar ideias e colocar no papel intuições para depois voltar a elas (ou para revisá-las ou mesmo excluí-las). Quando a linha do texto já está clara para mim, o processo da escrita acontece conjuntamente com a busca das notas e das referências. Já quando dependo de uma pesquisa prévia de fontes para só depois escrever (o que acontece muito na minha área), busco esgotar a pesquisa para só depois desenvolver a maioria do texto. De qualquer modo, apesar disso, não acho que haja uma separação tão brutal entre a pesquisa e a escrita, como eu leio em vários manuais de metodologia da pesquisa. Com o uso massivo da informática, é fácil e até mesmo útil fazer um “pêndulo” entre essas duas dimensões.
O processo da escrita é penoso. Para mim, ao menos, não é fácil. Só nos momentos em que o desenvolvimento do texto está adiantado, fazendo somar o entusiasmo de algo que acredito ser bom e útil com a antecipação do seu final é que me dá o ‘prazer do texto’, como dizia Barthes. Fiquei bem mais conformado quando, certa vez, ouvi de Paolo Grossi – grande historiador do direito italiano, que é um dos autores que acho que tem dos textos mais lapidados e belos, além de ser muito produtivo – esse mesmo diagnóstico: que para ele a produção do texto escrito era dolorosa.
Sofro um tanto mais pelo fato de que a circunstância ideal para a minha produção de um texto (médio ou longo) seria me isolar e tirar um período de concentração dedicada a ele – coisa que, dadas as circunstâncias de minha vida profissional nos últimos oito anos (em que tenho me envolvido muito com gestão acadêmica e com a gestão da associação científica da minha área) se tornaram mais raras.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento lidar com as travas da escrita com a persistência e a perseverança. É uma rotina para mim começar o trabalho da escrita mais “frio”, e “esquentar” com o tempo. A procrastinação é algo que faço demais, quase sempre me concentrando muito sob o estímulo da proximidade do prazo final. Mas como isso quase já se transformou numa rotina para mim, isso não me angustia mais. Da mesma forma, o medo de não corresponder às expectativas é algo que hoje me preocupa menos do que no passado. Deve ser uma das vantagens da passagem do tempo. E embora eu tenha sempre uma preocupação em fazer um texto claro e aberto (não sei se consigo sempre), o fato é que no processo de escritura eu sempre tenho alguns interlocutores que imagino que vão dialogar com meu texto (geralmente colegas da área que respeito muito). Ao escrever, então, não tenho nenhum objetivo “performático” de fazer um agrado “populista” a uma maior quantidade de leitores possíveis. Tento delimitar o arco do “diálogo” e dos interlocutores e fazer o melhor possível dentro dele. E, tal como acontece em qualquer diálogo, busco entrar na “frequência” que une os interlocutores e busco satisfazer as suas expectativas, o que não sei, realmente, se realizo. Esse estilo – que também corresponde ao modo como concebo a finalidade dos meus textos escritos – talvez seja também um mecanismo de diminuir a ansiedade em geral.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A quantidade de revisões depende um pouco do texto e dos prazos. Quando estou premido pelos prazos (a maioria absoluta das vezes) leio e reviso o texto pelo menos duas vezes. E de preferência num dia seguinte ao que eu coloquei nele um ponto final. Se eu não estiver com o prazo vencendo, acho útil colocar o texto na gaveta e poder revisitá-lo um bom tempo depois. Não houve texto que eu escrevi num passado que eu não retocaria e melhoraria com um olhar mais frio e distanciado do momento da escritura. Também acho muito útil poder passar seu texto para alguém que dê um “feedback”, seja no estilo, na clareza, no argumento. Mas para que isso seja útil deve ser alguém que você confie muito (tanto no juízo intelectual quanto na sua boa vontade). Afortunadamente, eu tenho alguém assim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com o tempo, estabeleci a rotina de abandonar os rascunhos à mão e escrever diretamente no computador – texto em que eu revisito até a forma final. Mas não perdi o hábito de fazer breves apontamentos escritos no papel – com intuições, ideias ou “insights” para aproveitar mais tarde no momento da escritura definitiva.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De um lado, acho que as ideias têm as condições de emergir a partir de um substrato que você acumulou ao longo de toda a sua formação, dando uma espécie de “base”: os livros que você leu, o tipo de formação que você teve, os autores que lhe servem como referências principais, o modo de raciocinar que você aprendeu como pesquisador. Mas para trabalhar essa “base”, hoje em dia, me servem muito as leituras mais criativas e provocativas que, por um bom acaso, acabam caindo nas mãos (e aqui me refiro tanto às boas leituras com as quais você concorda quanto aquelas boas leituras com as quais você discorda). Além disso, estar em bons congressos da minha área, o que afortunadamente acontece com certa frequência – em que eu tenha a oportunidade de ouvir intuições novas e ideias inteligentes, com as quais se possa dialogar e desdobrar – é um ponto de partida excelente para a criação dos seus próprios textos. Boa parte das minhas ideias de textos que escrevi saíram depois de submergir em alguns dias intensos de algum bom evento. Por fim, considero particularmente inspirador conversar com pessoas inteligentes, que é algo que sempre pode lhe inspirar e dar ideias. E devo dizer que me considero muito afortunado por dividir o convívio e a amizade com muitas pessoas inspiradoras.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Em termos estilísticos não estou certo se tanta coisa mudou nos últimos 16 anos (que foi quando defendi minha tese de doutorado). Talvez o que tenho buscado mudar com o tempo seja a convicção em transformar o texto em algo mais “limpo”, com a maior clareza possível e sem desperdiçar palavras à toa. Acho uma boa premissa buscar passar a mensagem com economia de texto, sem floreios, sem exageros retóricos. E com o mínimo do “juridiquês”, que geralmente não é elegante. Desde que não haja prejuízo de clareza e compreensão, acho que “menos é mais”.
E se tivesse a máquina do tempo de Wells e pudesse voltar ao tempo de minha tese, escreveria algo bem diferente (refiro-me ao conteúdo, nem tanto no estilo de escrita). Não que não goste daquilo que fiz: até gosto, acho que há intuições úteis ali, mas escreveria coisas que não escrevi e não escreveria algumas coisas que escrevi. Mas tudo que produzimos (inclusive textos) são filhos do seu tempo. E fico contente que a máquina do tempo não exista, para que possa só olhar pra frente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Existem dois projetos que gostaria de fazer nos próximos anos: reunir o material que escrevi nos últimos doze anos sobre a história do direito no Brasil, fazer algumas correções, dar a eles uma linha condutora comum (que acho que será simples), escrever mais umas 70 ou 100 páginas (de temas que já pesquisei e refleti, mas não escrevi ainda) e transformar num livro sobre a formação da cultura jurídica brasileira.
O outro projeto é parecido: retomar os textos que escrevi sobre as relações possíveis entre Michel Foucault e o direito (ou entre Foucault e a história do direito), corrigir, acrescentar algumas coisas novas, dar um fio comum e consolidar num texto só.
O livro que gostaria de ler e que ainda não existe: um grande manual de história do direito (que inclua o direito brasileiro). Isso mesmo, um manual: se escrito com seriedade, estilo, conteúdo, clareza, uso de fontes e sistematicidade (como vários manuais estrangeiros da minha área, como os de Cavanna, Grossi, Fioravanti, Hespanha, Padoa-Schioppa, etc.) e que também contemple a história do direito brasileira, acho que seria um grande acontecimento para a nossa área, tomada enquanto espaço de formação de estudantes. Toda área precisa de estudos monográficos rigorosos (e acho que a história do direito brasileiro já tem muitos), mas também precisa, para ter um bom espaço na academia, de manuais sérios e bem feitos. E que – ao contrário do que acontece com frequência no mundo da produção jurídica – seja uma obra madura, uma obra de síntese, e não uma obra de estréia ou de um novato.