Ricardo Labuto Gondim é teólogo, roteirista e escritor, autor de Deus no labirinto, B e Corrosão.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo entre quatro e cinco horas da manhã. Alguém precisa despertar o galo. Com um café bem forte, abro os jornais. Informação para mim é texto. Checo os boletins de notícias no e-mail, visito a rede social. Me informo com a imprensa alternativa, aprendo com os meus amigos. Se estou apaixonado pelo que escrevi no dia anterior, sento e trabalho. Se não, vou para a rua e caminho de seis a dez quilômetros. Tenho caminhado bastante, receio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou um escritor solar, mas posso virar a noite trabalhando. Para um teólogo, a liturgia é importante. Chamo meu computador de “Táxi” porque dependo dele para viver. Com alguma solenidade, talvez, me ajusto à cadeira do escritório como faria o motorista. Ele acerta o retrovisor, eu alinho o teclado, o mouse, os dicionários e as notas. Ele gira a ignição, eu rodo o Word. Ele liga o rádio, eu clico o Foobar. Ele tem expectativas sobre o dia de trabalho e nenhuma certeza. Eu também não. Começo por mais uma revisão do material do dia anterior e, quando percebo, estou escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Preciso escrever todos os dias, não é uma escolha. O texto em progresso é “matéria inercial”. Se você é zen, pergunta “como isto se move?” Se não, como no meu caso, “onde eu empurro?” Não me esforço para imergir no livro, acontece naturalmente. A meta é aplicar todo tempo disponível ao texto e fazer meu trabalho da melhor maneira possível. Se isto representar um parágrafo ou uma página, não importa. Não renuncio ao critério – o valor mais precioso de qualquer atividade criativa. Como estou muito abaixo de minhas exigências, tenho que trabalhar mais. Logo, preciso escrever todos os dias, não é uma escolha.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começo com a página e o espírito em branco. Engatinhando, tateando, experimentando tudo, exatamente como uma criança. Toco, puxo, empurro, enfio o dedo na tomada. Tento me colocar de pé. Tropeço, caio, ralo o joelho, passo o Delete que arde e cura. Então a frase inicial que dá o tom da “partitura” emerge e ganha forma. Escrevo em voz alta, quero que soe como música. Rápido, agitado, fluído, sincopado – ou lento. E sigo cada vez menos cauteloso. Se perder o equilíbrio, me apoio no repertório de leitor voraz. Aí me descubro pedalando uma bicicleta sem rodinhas. O Eu é incomunicável, linguagem é mediação. O autor é alguém capaz de restringir a defasagem entre Potência e Ato, entre o texto e a ponderação que deseja provocar. Isso não acontece sem muito trabalho. Como disse Picasso, “inspiração é ótimo, mas precisa te encontrar trabalhando”. A pesquisa ocorre em paralelo. Como é uma mudança de atividade, ajuda a esfriar a cabeça.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O escritor se forma por osmose. É o produto de tudo o que leu. Logo, o WD-40 da escrita é a própria literatura. A oficina é a estante. Se o texto está engripado, recorro a páginas análogas e observo a mecânica. Como Eça descreveu aquilo? Como Shakespeare conceituou isto? Não existe parafuso emperrado que a Alta Tradição não remova. Se falhar, ainda restam o uísque, o vinho e a cerveja, o lubrificante moral que estiver à mão.
Em termos pontuais, a procrastinação é delicada. Nós brasileiros estamos exaustos. Logo, escrever é resistir, procrastinar é ceder. É uma escolha. Se te serve de consolo, em cada cemitério existe o sepulcro em que repousa um Machado, um Lima Barreto que ninguém jamais conheceu… porque procrastinou. Você não estará sozinho.
O medo de não corresponder às expectativas é o burlesco da ficção. Os medíocres não fracassam porque não arriscam, só trabalham em segurança. Nabokov escreveu que “o bom leitor, o leitor admirável, não se identifica com o mocinho ou a mocinha no livro, mas com a mente que o concebeu e compôs”. Portanto, faça o que fizer, você estará lá. Mesmo no erro. Também na queda. Eu faço meu trabalho como posso. Não sou lacaio do gosto do leitor. O “bom leitor” espera ser desafiado e surpreendido. Em outras palavras, faça do seu jeito. Se ninguém gostar, tente outra coisa saborosa como gastronomia.
Se eu tivesse um remédio para a ansiedade, curaria a civilização. O texto longo não me aflige mais que o texto curto, o critério não muda. A escrita é uma sucessão de encruzilhadas. Se deparo com uma via sem saída, entendo que cometi um erro… lá atrás. Daí que volto às primeiras linhas e revejo tudo até descobrir o cruzamento em que tomei a direção errada. Retomo o texto a partir daquele ponto, fechando os olhos para as páginas que serão perdidas. Aprendi com Beethoven. Foi assim que o Mestre compôs as nove sinfonias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se o texto não está na gráfica, está em revisão. Preciso ter certeza de que a frase encontrou a formulação ótima, como diria um matemático. É impossível, a gente publica o texto para se livrar dele. É lugar comum, eu sei, mas é verdade. A leitura prévia é indispensável. Ninguém pode estar seguro da própria clareza. Seguro de que a escrita provoca os efeitos intelectivos e emocionais pretendidos, o que seria arrogância. Logo, a escolha do leitor-conselheiro deve ser ponderada. Um elogio equivocado é tão desastroso quanto a crítica sem fundamento. Observe que muitas vezes a severidade do “leitor beta” sobre um dado aspecto é a confirmação do resultado desejado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrever no computador significa trabalhar 100% do tempo, como disse alguém. Eu utilizo teclado mecânico, participo do programa Office Insider e cuido do meu Táxi. Mantenho um caderno prosaico à mão para soluções que surgem quando estou longe da máquina. Como disse Einstein, “penso noventa e nove vezes num problema e quando deixo de pensar a solução aparece”. Isso acontece o tempo todo quando você está em conexão com o texto e não o encara de maneira diletante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou ouvinte de música clássica. Levo a sério, fui crítico em duas revistas. Para mim, a orquestra sinfônica é o zênite da civilização, a expressão maior da humanidade. Para cada personagem, situação ou cenário, escolho a música que considero apropriada. Escrevo guiado por uma beleza inconversível, mesmo quando dissonante. A música me ajuda a perseguir três atributos que reverencio, o que não significa que os alcance. A fluidez do arco, a coerência da personagem e a organicidade do texto. Em meus livros há músicas que são personagens. Em minhas personagens existe um relevo que subtraí de Bach, Beethoven, Brahms…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O autor mudou e segue mudando. Não há o que fazer. Mas repare, um escritor não é modificado apenas pela vida, em que tudo é mudança, ou pela prática da escrita – única forma de aprender a escrever; não existe outra; o que passar disso é adiamento. O autor é sobretudo modificado pelo que lê. A maturidade, a qualidade, a relevância do que você lê é a medida de sua capacidade de escrita. Daí que me atrevo a oferecer o conselho que ninguém pediu: como roteirista, te asseguro, filmes e séries embutem soluções de roteiro, isto é, dramatúrgicas. Se o texto emperrou, desligue a TV, abra o livro de um grande autor e encontre a solução literária. Você quer escrever, é admirável, mas tem que pagar o preço.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No vasto romance que é As Relações perigosas, Choderlos de Laclos aconselha que “mais vale empregar o tempo em executar projetos do que em contá-los”. O que eu gostaria de fazer está concluído ou em andamento. Tenho pronto um tijolo de 400 páginas que amei escrever. E um livro juvenil que um dos meus artistas favoritos aceitou ilustrar. Já estou escrevendo meu quarto romance, experimentando coisas novas e errando muito – por isso são tantas caminhadas. Há muitos livros que gostaria de ler e que ainda não existem, obras dos nossos contemporâneos. Luciana Hidalgo, por exemplo. Não sei se a autora de O passeador e Rio-Paris-Rio está trabalhando em um material novo, mas conto os dias para o lançamento.