Ricardo Koch Kroeff é multiartista, mestre em Escrita Criativa pela PUCRS e autor de Idioma de um Só (Não Editora).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. Eu acordo, ponho uma musica e danço. Não porque eu gosto, mas para emagrecer. Danço com raiva, então tomo banho. No banho, canto. Porque eu gosto. Tomo café da manhã, como mais do que deveria, e sento pra ler os jornais, ver se o Grêmio contratou alguém, se alguma guerra começou, quão perto estamos da terceira guerra mundial, se a China fez mais algo digno de livros de ficção científica como clonar um raio de luz ou criar um robô sinestésico que dança cores e cheira memórias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A madrugada infelizmente é feliz para a parte artista da gente. Simplesmente porque ninguém liga, ninguém manda nada, ninguém está fazendo nada melhor do que você, todos estão dormindo e , mesmo sendo um artista inútil, você é o humano mais útil do momento, porque todos agora ou dormem ou bebem. Você cria.
Mas consigo e me orgulho de conseguir escrever em todas as horas do dia. É uma questão de se levar a sério. De sentar numa escrivaninha, lembrar que você já escreveu antes, que naquela escrivaninha há rastros do você-escritor, e então puxar o passado pro presente e ser de novo o que já se foi até se ser de novo. E de novo e de novo. Ninguém acorda escritor, todo mundo se torna, pela primeira ou pela qüinquagésima vez, escritor naquele dia; ou naquele dia você não consegue, você não se torna um escritor e então dorme sendo uma pessoa comum, que vai no supermercado, no banheiro, na cozinha, e dorme. E tudo bem, é por isso que escritores podem escrever sobre a vida de não-escritores: porque por vários dias não somos escritores. Às vezes somos apenas bailarinos-equilibristas, como todo mundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não. Eu tenho uma meta de: ter uma vida artística; mas não de escritor especificamente. Eu faço muita arte, luto pra sair alguma coisa todos os dias, uma cena no mínimo; mas não tenho medo de perder essa ou aquela arte; pra mim a coisa é estrutural, sou um instrumento de impressão & expressão: se eu continuar me impressionando e me expressando, seja como for, está tudo bem. Sou artista.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Notas suficientes? (risos) Parece que este é o seu processo caro perguntador. (risos) Eu não me movo da pesquisa para a escrita. Eu me movo da curiosidade para a Arte e da Arte para a pesquisa. Antes de saber a realidade, eu crio uma surrealidade, uma realidade minha, depois, quando esgotei minha inferência, meu faz de conta, então vou ver o que acertei, procurando coincidências entre minha pessoalidade e a vida da vida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu faço acordos internos. Dou um Biscrock – aquele petisco de cachorro – pro espírito quando ele me obedece. Aviso a todas minhas personalidades internas que todos trabalhamos para o artista dentro de nós. Que sim, temos que escovar os dentes, tentar arranjar uma namorada, transar, fazer amigos, ser feliz. Mas que nunca serei o melhor escovador de dentes, o namorador incrível, o transão da cidade, o amigo do mundo, o dono da felicidade do universo. Mas na arte sinto que tenho uma chance especial. Sou um cano limpo & livre o suficiente para que a Arte escolha passar por dentro de mim e sair do outro lado viva, colorida & humana. O resto da vida é muito caótica, aleatória, realista, sofrenilda, para que eu possa deixar ela, vida real, passar por mim livremente. É um acordo hierárquico: Arte em cima, manutenção da vida ao lado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito. Várias vezes confio totalmente no meu trabalho. Mesmo sem ninguém ter visto, porque eu vi. Eu dormi , acordei outra pessoa, vi de novo, e gostei de novo. Corrigi, dormi, acordei, fui outra pessoa, e essa pessoa gostou, mas mudou mais pouquinho. E tem outros textos que eu choro enquanto faço de tão… tão fortes e vivos e independentes de mim que são. Eu fico realmente emocionado às vezes, como se visse um filme feito das minhas entranhas. um eu e tudo que eu vi, vivi e poderia ter vivido jogado no liquidificador e apresentado organicamente pra mim de novo. São raros esses momentos, mas cada vez menos raros. Se você escrever uma história específica, que só existe ali, naquele papel, e dar vontade aos seus personagens, dar uma vida que eles tenham vontade de comer, então eles começam a se mexer sozinhos e as coisas que eles fazem só eles poderiam ter feito e tudo fica óbvio mas ao mesmo tempo tão específico, e o papel começa a pesar e você começa a ver que não é só mais um papel ou um bloco de notas de um computador, mas sim uma vida, que tem vida de verdade ali dentro, que você não sabe como, mas que tem. Quer você queira quer não. As pessoas viveram ali dentro. Pode ser que ninguém leia. Pode ser que o papel rasgue. Assim como pode ser que eu me apaixone e não conte pra ninguém. Que eu veja uma cena linda mas que tenha um ataque cardíaco depois. Não é porque a vida se perde que ela deixa de ter sido vivida, não é porque ninguém sabe que a vida foi vida que ela deixa de ter sido vivida. O texto é como um canto da sereia só que com palavras, você fica ali, interessando a vida a cair na folha, e quando ela cai, você sente o peso da folha mudar. Você sente as palavras se mexerem sozinhas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rascunhos? (risos) De novo descobrimos sobre o perguntador. Não considero rascunhos. Considero base. Não estou ali escrevendo pra errar. Ali é onde sou mais escritor. Depois sou editor e, se tiver que ser escritor de novo, será mais difícil. Terei que acessar o espírito, a curiosidade, a música que escutava na época que por algum motivo escrevi aquela base. Mas enfim, sua pergunta era outra, perguntador. Eu escrevo em geral no computador sim. Lembro de uma vez que escrevi algo muito bom direto assim, de caneta, riscando as partes ruins e continuando. Mas é raro. Tenho um diário onde há coisas muito boas feitas de forma orgânica, sem muitas rasuras. Mas, literariamente, ou seja, se a qualidade que quero é literária, de estilo, ritmo, palavra (e não uma qualidade de diário, onde a verdade, a realidade, a sinceridade pode estar a cima da literatura, do estilo, da ilusão bem feita, por exemplo) então prefiro o computador. Temos chances ali que Shakespeare não tinha. Assim como programas de edição, hoje, tem possibilidades fílmicas que Hitchcock não tinha. Você pode facilmente, em um editor de texto, trocar vários parágrafos de lugar sem tesoura e cola. Você pode trocar frases de lugar. Você pode apagar muito mais facilmente! As máquinas de escrever tinham pequenos adesivos brancos pra você colar em cima das letras que tivesse errado. Imagina apagar assim, eu apagaria muito menos, pensaria mais, experimentaria menos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Já tenho várias fontes de criação, fontes de ideias. Seus medos são uma fonte (porque sua psique vai ter interesse em sublimar este medo, porque medos são muitas vezes específicos e especificidade é uma qualidade criativa). Curiosidade é uma fonte (porque sua imaginação aflora quando curiosa, porque você pesquisa e fica mais curioso ainda). Desejo é uma fonte (porque há um prazer em realizar desejos, e a Arte é receptiva de ser inicialmente controlada, depois, na hora do bem bom, a Arte pega as rédeas de novo e resolve que é hora de abandonar a ideia primária do seu dono e então começa a se mexer sozinha). Trauma é uma fonte. Sonhos são uma fonte. Experiências são uma fonte. Opiniões são uma fonte.
Quanto a segunda parte da pergunta, para me manter criativo, penso. Presto atenção. Tento estar vivo, atento, perceptivo, sensível, simbólico, na maioria das coisas que vivo. Aprendi faz pouco a tentar lavar a louça sem prestar atenção, por exemplo. A viver automaticamente algumas coisas para não sofrer muito com tudo. Aprendi a não estar sempre aberto, sempre pensando. Antes eu achava que isso era uma luta boa, que prestar atenção em tudo traria um cansaço mas também uma vida, uma visão única. Trouxe. Já está bom. Deixo-me relaxar um pouco agora e lavar a louça sem saber o que estou fazendo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muda que aos poucos você ganha muitas ferramentas pra olhar e cutucar o texto de muitos mais ângulos e jeitos e com instrumentos diferentes pra ver se o texto reage. Você escreve sabendo o que está fazendo. Há um crescimento da capacidade de digestão de um texto. Você consegue iniciar uma novela e correr por dentro dela sabendo nas cenas que vai chegar. Calmo, aproveitando o caminho.
Quanto a segunda pergunta, eu não falaria muito pra mim mesmo. A escrita é um caminho. Eu era feliz escrevendo, me sentia bem, me aventurava, me arriscava, parecia uma criança com um rádio na garagem tentando contatar alienígenas. Uma esperança tão boa de me sintonizar com a Arte e toda especialidade que ela te empresta. Talvez eu dissesse pra olhar mais pro outro, mas né, eu só posso olhar um pouco mais pro outro porque olhei pra mim aquela época. Enfim, é uma pergunta de gente arrependida (você é um arrependido, doutor perguntador?) (risos). Eu fui feliz com minhas sofrências. Até dos meus problemas eu gostava. Não teria nada pra dizer pra aquele garoto. Talvez, ao contrário, ele pudesse me ensinar, me convencer sobre aquele nível alto de esperança na surrealeza da vida. Como posso buscar assim como você busca, menino? Como arranjo essa sua saliva nos olhos?!?!!!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O perguntador acredita que devemos criar aquilo que gostaríamos de experienciar… Concordo :))) Quanto a escrita não tenho muitos projetos realmente latentes, que façam meus dedos latirem. (risos) Tenho projetos de voz, de filmes, de teatro, de performance, pra uma ou duas vidas. Projetos de coletividade também. Quanto a escrita sou mais calmo, menos desejoso, porque já escrevi um livro, está escrito, impresso, publicado, distribuído, lido, premiado, aplaudido, sentido, vivo. Tem sua trajetória própria. Está no mundo. Chama-se “idioma de um só”.
Quanto a projetos de escritura futuros: eu gostaria de escrever uns ensaios. Eu gostaria de escrever músicas (já tento às vezes). Eu gostaria de escrever notícias, crônicas (já faço também). Eu gostaria de fazer uma bíblia de uma religião inventada também. Uma religião onde a gênese aconteceu pela implosão suicida de um Deus sozinho. Podia se chamar assim né, “A Implosão suicida de um deus sozinho”, imagina em inglês depois, traduzido, “the suicidal implosion of one lonely god”. Ou em espanhol: “la implosión suicida de un dios solito”. Hehwhw é assim que funciona pra mim. Uma forma sensacionalista. Ir despertando sensações durante o fazer. Se divertir durante o processo dá uma energia boa pra obra.
E por fim, quanto a segunda pergunta, um livro que eu gostaria que existisse pra eu ler…
Eu gostaria de ler várias coisas que não sei se existem. Algumas que tenho certeza que não existem. Um livro sobre 17 vidas que até aqui foram iguais a minha mas que daqui pra frente são vidas que não vou ter. Um outro livro com meus sonhos realizados para eu ver como seria ser as outras coisas que sonhei. Mais livros sobre a sexualidade das mulheres, escrito por mulheres, eu gostaria de ler. Enfim, as listas são infinitas, mas a vida é uma.
Beijos, um prazer falar com você, perguntador, e com você, leitor :))) se você chegou até aqui, eu ficaria feliz em ouvi-lo também, seus sentimentos, sua respostas, discordâncias, estranhezas e choros. Entre em contato :)))) Eu tenho um instagram chamado @acheioricky se você quiser saber/ver mais. E o livro Idioma de um Só, da Não Editora, à venda nas livrarias do Brasil e nas internetes.