Ricardo Celestino é escritor de ficção científica, professor, doutor em Língua Portuguesa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu inicio meu dia as seis da manhã, com um bom café. Assisto aos telejornais e, por insistência, tento extrair alguma coisa boa deles. Me incomoda muito o formato do telejornalismo matinal. Eu gostaria de encontrar um jornal que oferecesse uma síntese das notícias do dia e explorasse algumas subjetividades da cidade de São Paulo. Não é possível que uma cidade tão cosmopolita como esta, só tenha no radar dos jornalistas matinais o trânsito e o tempo como temas. Recentemente, também incluí nessa rotina do começo da manhã a leitura de meia página, dependendo do dia, uma página inteira, sobre algum tema budista, de algum livro sobre meditação e afins. Eu tenho me interessado muito por meditação e budismo. Após o café da manhã, eu e minha esposa caminhamos até os colégios que trabalhamos. Temos a sorte de trabalhar no mesmo quarteirão, em colégios distintos. Daí conseguimos fazer companhia um para o outro e realizar uma boa caminhada, de uns vinte minutos. O resto da manhã e uma parte da tarde, todos os dias, é dedicado às aulas de Língua Portuguesa para o Ensino Médio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita para mim funciona na luz do dia. Não consigo escrever a noite ou pela madrugada adentro. Costumo escrever quando chego do colégio que dou aulas, aproximadamente às 16 horas. Daí, então, me envolvo em um pequeno ritual para me manter focado: primeiro, preparo um café ou um chá. O cheiro do café em preparo me ajuda a começar a meditar sobre o texto que devo escrever naquela tarde, seja acadêmico ou literário. Enquanto o café não está pronto, eu seleciono uma boa playlist de músicas instrumentais. Detesto escrever no silêncio. Com o café ou o chá prontos, então, é o momento de sentar e trabalhar. Costumo trabalhar em um texto, pelo menos, duas horas diárias. Não menos que isso, mas também não ultrapasso tanto esse tempo. Acho que minha cabeça funciona bem assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A minha meta diária de escrita são duas mil palavras por dia. De segunda a sexta. Não escrevo nos fins de semana. Eu já tentei me concentrar em escrever intensamente um único dia, passar parte da noite produzindo, mas o fôlego termina muito rápido, as pálpebras começam a pesar, a cabeça se perde… tão logo, já estou desejando uma cerveja, uma série, um filme, um video-game. Então, penso que meu corpo funciona melhor com a disciplina de doses homeopáticas. Aprendi isso ao longo do lato-sensu e na escrita de minha dissertação de mestrado e de minha tese de doutorado. Eu não conseguiria produzir uma parte de um capítulo teórico em um fôlego só. Eu precisei de tempo. A disciplina me leva a pensar intensamente naquilo que estou escrevendo, durante muitas horas do dia. Iniciar uma história ficcional ou um artigo científico é para mim como almoçar um prato de pimentão recheado. No caso da escrita, você fica lembrando daquilo o dia inteiro, te desconforta, te conforta, te provoca, te leva a buscar alternativas… tudo na sua cabeça. Daí você senta um pouco naquele dia, deposita ali suas duas mil palavras e deixa a cabeça ferver mais um pouco até o dia seguinte. Uma hora, esse bolo caótico estará pronto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Os cadernos são meus guias. Após o término do doutorado, iniciei um projeto de pós-doc dialogando Análise do Discurso e Crítica Literária em obras de Ficção Científica produzidas no século XXI. Paralelo a isso, eu tenho trabalhado em meu primeiro romance. Também não deixo de participar de antologias e na produção de narrativas curtas para o Coletivo KriptoKaipora. Também organizo minhas anotações de aulas em cadernos. Então, eu mantenho pelo menos quatro cadernos pequenos sempre próximos a mim. Neles eu costumo estruturar tudo que vou escrever, de textos curtos a textos maiores. Quando se trata de textos acadêmicos, a receita é organizar um resumo provisório com todas as etapas do texto científico, sempre preocupado em responder à pergunta: como eu posso compreender melhor o funcionamento disto que me proponho pesquisar? Agora, para textos ficcionais, eu gosto de esboçar uma hipótese de ideia geral da história que vou produzir. Em seguida, as regras do mundo, do local que ambientará a história. Tentar esclarecer quem são os personagens e suas características. Quais seus desejos e suas necessidades. Quando eu vou esboçando isso tudo no caderno, o gênero da história, a estrutura, tudo isso começa a surgir…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Recentemente eu aprendi a disciplinar a meditação em minha rotina. Tenho meditado todos os dias. Parece bobagem, mas isso me ajudou muito em minhas crises de ansiedade. Que não são poucas. Eu sempre acho que minha escrita poderia ser melhor; que meu dia poderia render mais; que eu não estou atendendo às expectativas de algum público que nem sequer sei se me lê. Em meu doutorado, como havia a constante conversa com meu orientador, muitas vezes a boa convivência e a parceria possibilitava que ele atuasse também como psicólogo em certos momentos rs. Ele controlava muito minha ansiedade, mesmo sem saber. Apontava caminhos para as encruzilhadas que eu me enfiava, direcionava leituras. Agora que essa fase acabou, a impressão que dá é que sou eu e sou apenas eu. Então, não raro a gente se sente insuficiente para dar conta de todas as ideias que vem à cabeça.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tudo depende do prazo de publicação dos textos. Eu já estendi o prazo dado por uma editora, para a entrega de meu primeiro romance. Estendi por que quero que este seja um livro bem escrito. Eu gostaria de ter orgulho dele. Então, eu pretendo revisá-lo bastante. Deixar o mínimo de pontas soltas na narrativa. Participar de oficinas, aprender novas técnicas, novas maneiras de organizar a rotina. Nelson de Oliveira, Fábio Fernandes e Eneias Tavares tem sido essenciais para esse aprendizado. Eu realizei oficinas com esses três grandes autores, o que me ajudou muito na profissionalização do meu olhar sobre a escrita criativa. A partir dessas oficinas veio a ideia de constituir um grupo de leitores Beta, no WhatsApp. Embora não conte como uma leitura Beta profisisonal, que demandaria pagar alguém mais experiente para ler e apontar equívocos em meu texto, são leitores amigos, que tem afinidade com o gênero que proponho escrever e não tem problema em dizer: Ricardo, o seu texto está uma porcaria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
De uns tempos para cá, eu aprendi a me organizar nos cadernos e depois partir para o computador. Na escrita de artigos, por exemplo, eu busco organizar toda a estrutura, as resenhas que irão compor o levantamento teórico, em cadernos. Depois, passo a estruturar o artigo no computador, já segundo as normas da revista e realizo a análise e as considerações finais digitando. Para literatura, a estratégia é a mesma. Toda a etapa de planejamento, motivação dos personagens, construção de mundo, eu anoto em cadernos. Depois, quando defino o gênero, o número de palavras, parto para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu leio muito. Todos os dias. Ultimamente tenho destinado um livro para cada dia da semana, para que consiga dar conta de todas as leituras necessárias. Como escrevo dois ou três textos ao mesmo tempo, tanto literários quanto acadêmicos, eu preciso ler muitas coisas ao mesmo tempo também. Atualmente, leio A Quinta Estação, de N. K. Jemisin às segundas, uma literatura de ficção científica nacional às terças, um livro de filosofia às quartas e organizo uma demorada resenha de O Livro da Metaficção, de Gustavo Bernardo pelo menos um pouco por dia. As ideias surgem de um apanhado de todas essas leituras. Também tiro um tempo semanal, não diário, para assistir a séries e filmes, ler uns quadrinhos. Jogar video-game tem sido cada vez mais raro, infelizmente. Eu costumo comprar os jogos em lançamento, jogo durante alguns dias e depois não tenho tempo de dar sequência ao jogo. É frustrante, mas um dia eu consigo enfiar o video-game na minha agenda.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acredito que cada vez que o tempo passa, e eu não tenho muitos anos de experiência com a escrita, eu compreendo melhor as regras de cada gênero que eu me comprometo a escrever. Quer seja o conto, o romance, a novela, ou o ensaio e o artigo, são textos que exigem do autor a representação de um papel. Além disso, o cumprimento de um tipo de estatuto abstrato, não declarado. Talvez sejam essas regras implícitas, quando cumpridas, a ponte de interesse para o leitor. Eu ainda não me considero um autor maduro. Talvez nunca venha a ser. Mas eu compreendo, nessa curta trajetória, o que eu devo perseguir. Então, se por um milagre ou talvez uma experimentação científica, eu conseguisse voltar no tempo e encontrar aquele Ricardo Celestino ansioso para terminar o primeiro artigo e ser lido e comentado pela comunidade científica, nos primeiros anos de especialização, eu diria a ele: relaxa um pouco, camarada. Eu acho que vai demorar mais uns bons tantos até as pessoas começarem a te notar. E depois, mais uns bons tantos para elas começarem a se importar com aquilo que você escreve. Então, curta a experiência, escreva com honestidade, se entregue. Por que escrever é uma catarse. É um prazer e um vício.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gosto de criar mundos. Eu tenho pensado bastante em colonizar em minhas ficções todos os planetas habitáveis, semelhantes à Terra, perdidos em outras galáxias. Talvez criar uma space opera inspirada em Guimarães Rosa. Retomar Gregório de Matos e criar um protagonista Boca do Inferno em um ciberbarroco. Reler Piritas Siderais, nessas férias, e tentar esboçar algo que chegue aos pés de Favelost, de Fausto Fawcett – para mim, uma das obras essenciais para o estudo da Ficção Científica Brasileira. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e talvez ainda não exista… não sei. Existe tanta coisa já criada. Talvez, uma metaficção a quatro mãos, em um crossover Machado de Assis e Miguel de Cervantes. Imagina só: um encontro desses dois para gerar um romance ácido sobre os dias de hoje?