Ricardo Bellissimo é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na parte da manhã até o início da tarde (das 8h às 14h) trabalho com revisão e redação de textos diversos e também com correção de redações de alunos do Ensino Médio e Fundamental e do Enem. Esta é a rotina para trabalhos que não fazem parte do meu processo criativo como escritor, mas que, de algum modo, já me aquece os miolos para deixar o resto do dia às próprias divagações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Após esse período em que faço revisões e correções, e uma boa xícara de café, início o trabalho como escritor por volta das 15h. É um trabalho como qualquer outro ofício intelectual: requer concentração e, para mim, muita racionalidade. Mesmo que seja uma racionalidade emporcalhada de onirismos e emoções. Não fico esperando inspiração alguma. Simplesmente entro em duelo com as minhas próprias ideias, tento digeri-las para, depois, efetuar o cruzamento de fatos reais e imaginativos até reconhecer se algum deles é capaz de me apontar o melhor caminho a seguir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro escrever todos os dias. Não gosto de perder o fio da meada de um romance no qual estou trabalhando.
Não crio uma meta especifica, porém não me dou por satisfeito enquanto não encerro um capitulo. Ou, ao menos, tenho alguma intuição aonde ele pretende chegar, mesmo que a imprevisibilidade sempre tenha sido o tempero fundamental à minha atividade como escritor. Para exemplificar, um fato ocorrido na política do país, ou uma descoberta no campo da ciência, um acontecimento artístico, ou mesmo o relato pessoal de alguém que nunca vi, pode me impelir a mudar completamente o rumo por onde antes imaginara trilhar. A vida, afinal, está sempre sujeita a alterações surpreendentes: de um novo amor que podemos conhecer numa esquina escura e malcheirosa a catastrofismos implacáveis.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo obedece a mergulhos psíquicos num charco lodoso da mente onde encontro traumas de infância, conflitos existenciais, êxtases e medos diversos, alegrias inesperadas, atrocidades do dia a dia, para enfim começar a definir qual sensação poderá trazer maior robustez psicológica a cada um dos personagens que pretendo criar. Durante esse processo, tenho sempre em mente a calamidade do que é vivermos em uma sociedade tão injusta como a brasileira, o que, ao fim, me atiça para encontrar o tom mais contundente que pode e deve assim assumir essas personagens. É uma maneira em que também procuro fazer um mínimo de justiça com as próprias mãos: seja dando voz a excluídos, seja acentuando a canalhice humana por meio de moralismos hipócritas, e por aí vai.
Já as notas mais expressivas surgem à medida que reflito sobre o que já estou escrevendo. Esse, em geral, é o momento de mais um café. Essa reflexão me ajuda a reforçar o perfil de um ou outro personagem e, como disse, me auxilia encontrar novos caminhos por onde posso direcionar o enredo.
Quanto à pesquisa, ela é fundamental quando você pretende escrever sobre um assunto que não domina. E como, creio, nunca dominamos assunto nenhum, a pesquisa se faz uma constante inquestionável. Ela pode ser obtida tanto pela leitura de livros específicos, quanto ouvindo conversas trivais num boteco imundo qualquer. Aliás, este é um dos melhores locais para se cercar de musas e musos decadentes, com conhecimentos nada eruditos sobre um assunto, e que traduzo como perspicácia diante da vida. Esta é uma fonte riquíssima e que muito me auxilia na trama do livro em que eventualmente estiver trabalhando. Torna-se o que chamo de uma maldição no bom sentido, em que acabo concatenando quase tudo o que ouço e vejo nas ruas para, depois, dar um jeito de socar tais sapiências instintuais na trama dos meus livros.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
À medida que tenho ciência de que esses problemas fazem parte do processo criativo, procuro trabalhá-los como impulsos conflitantes construtivos. Embates mentais que, como sugere a boa e velha dialética, necessito colidir entre um festival de neurônios ávidos para encontrar alguma saída que possa dar vazão à incansável saga mental que é o ato da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não há um número determinado de revisões. Elas são feitas até moldar um texto para que este alcance uma boa conexão com o que melhor está afinado ao instinto mais voraz de cada personagem. E, por meio dessa busca, alcançar o leitor com a honestidade de quem também está trabalhando a seu favor, para que assim ele desfrute do grande prazer, muitas vezes incomparável, que é a leitura de um livro.
Costumo, sim, mostrar os originais para o meu irmão. Ele é um grande leitor dos mais variados estilos literários.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em geral, escrevo primeiramente alguns esboços da história à mão, para depois passar para o computador. Quando estou sem papel ou o caderno de notas por perto, uso o celular para escrever um ou outro pensamento. Mas como também costumo andar sem celular só para prestar mais atenção no mundo, muitas vezes acabo guardando imagens de ocorrências cotidianas na mente, que depois tento descrevê-las após diluir o turbilhão de sensações que naquele momento ela me proporcionou.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O grosso de minhas ideias em geral vem da própria realidade. A realidade já é, por si só, a fonte de inspiração onde me afogo todos os dias. E para não morrer afogado em meus próprios delírios, procuro filtrar a realidade para que ela assuma diferentes tons: às vezes lírico, às vezes cruel, às vezes compassivo ou meramente leviano. Assim lanço a corda da diversidade emocional para que o leitor possa nela se agarrar ou até se enforcar.
Para manter a mente em contínuo processo criativo, eu sempre digo: o escritor, antes de tudo, precisa observar com muita argúcia e complacência os outros. E o mais importante: sem qualquer tipo de julgamento. Procurar, tão somente, absorver o que possa emanar da alma e do instinto de um ser humano. Observar, sobretudo, a natureza inconsciente de seus gestos, desde um olhar de encantamento ao mais abjeto olhar de desprezo. E, por meio de um filtro pessoal, como se o escritor assumisse a função de um para-raios social, disseminar a compaixão pelo outro para que o leitor também possa acompanhar, com sua própria cumplicidade, a saga de um personagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sempre há um processo de maturação pelo qual, acredito, todo escritor atravessa. Seja pelo amadurecimento pessoal diante às adversidades e embates com a vida, seja por meio de leituras e estudos que fazemos nesse percurso inefável. Além, claro, de novos contatos interpessoais que sempre apontam um conhecimento profundo de mim mesmo. Isso, inevitavelmente, reflete no que irei colocar no papel.
Partindo assim desse princípio evolutivo, prefiro olhar sempre para o que eu ainda possa escrever e não para o que já foi escrito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que gostaria de fazer é aquele que vou me sentir preparado, no momento oportuno, para iniciá-lo após algum tema específico ter provocado um incômodo profundo em minhas entranhas.
Há muitos livros que ainda não li e que já estão copiosamente escritos. Aguardo apenas o momento ideal para tirar o maior proveito da sabedoria de seu autor.