Renato Perissinotto é professor da Universidade Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina. Na verdade, para mim, rotina é algo imprescindível para o trabalho intelectual. Acordo cedo. Tomo um café da manhã que é mais café do que comida e, depois disso, lá pelas 8h, já estou sentado à escrivaninha. Tento sempre manter esse horário de início dos trabalhos, salvo, é claro, quando a noite anterior não permite, por boas ou más razões.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã, sempre. Houve uma época, quando tinha um par de décadas a menos, em que os períodos do dia não faziam muita diferença. Era produtivo full time. Hoje em dia, o período depois do almoço em geral é reservado para trabalhos mais mecânicos, que não exigem muito esforço intelectual ou concentração excessiva. Ler à tarde ficou mais difícil; preencher um banco de dados, um suplício. A capacidade de concentração caiu. O que faço às vezes é deixar ao lado um livro de literatura e temperar a leitura mais áspera e seca do mundo científico com algo mais relaxante e inspirador.
A manhã é preferida para escrever. O meu ritual para esse tipo de trabalho é fazer um esboço prévio do que pretendo escrever. Ainda que nem sempre obedecido, o fio condutor lá está e isso evita uma escrita errática e sem rumo, o que sempre me irrita muito. Clareza, clareza, clareza, esse é o meu mantra. Para isso é preciso estar com a mente lúcida e disposta; caso contrário, é a preguiça, e esta é amicíssima do texto ruim (ou de qualquer coisa mal feita).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Concentrados. Se tenho que escrever um texto, esta é uma tarefa com início, meio e fim, seguidos; não pode ser um início hoje, um meio no próximo mês e um fim no mês seguinte. O fluxo do pensamento tem que ser contínuo. Escrever, para mim, é uma tarefa que será tanto melhor executada quanto menos interrupções sofrer. Então, para agir assim, estabelecer metas é fundamental. Não que elas sejam milimetricamente estabelecidas. Tendo em vistas as demais tarefas do dia, inadiáveis, estabeleço que, em função da agenda daquele dia, preciso escrever duas, três ou n páginas; tem que ser uma meta realista, compatível com os demais compromissos. Mas creio que não há nada que me propicie mais intensamente o famoso sentimento de dever cumprido do que escrever o tanto que me programei antes. Gosto muito de escrever. Se tivesse de fato algum talento, seria romancista; como não tenho, sou cientista.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Há leituras incontornáveis, sem as quais não se pode começar a escrever sobre um determinado assunto. Eis um procedimento acadêmico que deve ser louvado. O mundo não começou com o seu/meu texto. O controle da literatura clássica deve se combinar com o controle da literatura atualizada sobre o assunto. Não se trata de ler o último texto publicado naquela famosa revista americana em dezembro de 2017 (isto é, hoje). Trata-se de conhecer os autores contemporâneos que atualizaram a discussão sobre o seu tema de pesquisa. De posse de capital teórico, pode-se começar a pensar em escrever algo; a pior estratégia é tentar ler tudo o que existe para, somente depois, escrever. Isso é ruim porque irrealizável e, portanto, paralisante. O meu objetivo, como costumo dizer aos alunos, é “colocar o texto em pé”. Se ele ficou em pé, se o argumento se sustenta, se o fundamental, se a estrutura está ali, então o passo fundamental foi dado. O passo seguinte é burilar a discussão, introduzir textos mais atualizados. O texto, com seus contornos essenciais, não aparece no fim do processo de pesquisa; ele aparece no meio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas raramente aparecem. Quando aparecem, é mais por preguiça do que por qualquer outra razão. Como se trata de trabalho científico, se temos os dados e se temos o esboço do artigo, não há por que aparecer travas de inspiração. Se, como dizem os romancistas, escrever é 10% inspiração e 90% transpiração, eu diria que, no trabalho científico, a transpiração domina quase completamente; portanto, a preguiça, e não a falta de inspiração, é a pior inimiga. O medo de corresponder às expectativas, esse sim, está sempre presente. No entanto, em vez de paralisador, ao menos no meu caso, é uma força propulsora que me leva a fazer o melhor que eu posso. É claro que esse “meu melhor” quase nunca é suficiente para agradar os pareceristas dos periódicos científicos. O meu verdadeiro frio na barriga chega com os pareceres. Sempre tenho a sensação de que estou sendo chamado para o canto, por uma autoridade qualquer, que apontará o dedo para mim e irá listar, um a um, todos os meus defeitos. A reação inicial a pareceres negativos é sempre de desânimo. Por isso dou certo tempo até voltar a eles e, já refeito do primeiro impacto, apreciar com mais racionalidade as críticas e melhorar o texto submetido inicialmente. Do mesmo modo, projetos longos produzem essa mistura de efeitos negativos e positivos ou, melhor dizendo, essa transformação de efeitos inicialmente negativos em efeitos positivos. Projetos longos geram ansiedade porque exigem várias etapas, dependem de várias pessoas, exigem mais recursos. Mas ao mesmo tempo permitem mais discussão, pensar mais sobre as questões teóricas e práticas, discutir mais profundamente com colegas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até não mais conseguir olhar para eles. Cada vez mais mostro os meus textos para outros, em grande parte porque cada vez mais trabalho em regime de coautoria. Nessas condições, o diálogo ocorre e é sempre positivo. Trabalhos solitários são difíceis de circular porque todos estão tão ocupados que uma pessoa fica constrangida de pedir a um colega que leia o seu texto. Esse é um efeito negativo (entre vários outros positivos, diga-se) desse processo de avaliação que exige crescente produtividade acadêmica. Falta tempo para pensar sobre o que pensamos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes era à mão. O esboço, a estrutura, ainda faço à mão. O texto, desde o primeiro rascunho, já é feito no computador. Para mim é fundamental antes ter um esboço que funcione como guia, passível de ser alterado, mas cujas linhas mestras em geral tendem a ser mantidas. Isso posso fazer à mão, é mais rápido.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Elas vêm de todos os lugares; desde que sejam pertinentes, eu as incluo nos textos que escrevo. É claro que a maior parte das questões que discuto nesses textos é retirada da literatura científica especializada no assunto discutido. Em geral são questões mais técnicas, referentes ao assunto específico do texto. Nesses casos, a famosa revisão bibliográfica, ou estado da arte, é sempre fonte segura de ideias. No entanto, ideias mais abrangentes, com implicações teóricas que vão além das questões de pesquisa analisadas num texto, essas vêm de vários lugares, de textos teóricos mais amplos, de textos de interpretação histórica e até mesmo da literatura. A sala de aula também gera novas ideias. Quando damos aula falamos, ao mesmo tempo, para os alunos e para nós mesmos. Dar aula exige sistematizar o pensamento e, ao fazê-lo, ideias novas aparecem. Dar aula é pensar em voz alta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Sou cada vez mais sucinto. Sou cada vez mais direto. Uso cada vez menos adjetivos e advérbios. Se pudesse voltar à minha tese, diria a mim mesmo o que disse Schopenhauer em A arte de escrever: “Assim como todo excesso numa atividade costuma levar ao contrário do que se pretendia, as palavras servem de fato para tornar os pensamentos compreensíveis, mas só até certo ponto. Quando esse ponto é ultrapassado, elas tornam os pensamentos a serem comunicados mais e mais obscuros. Encontrar tal ponto é uma tarefa do estilo e uma questão da capacidade de julgar, pois toda palavra supérflua age diretamente contra o seu objetivo. É nesse sentido que Voltarie diz: o adjetivo é o inimigo do substantivo“.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho vontade de fazer dois tipos de pesquisa: um estudo empírico sobre o processo de formação do Estado brasileiro e sua relação com as classes sociais. Para mim, um dos grandes problemas do país é o Estado, essa ferramenta de ação coletiva tão desprezada atualmente nas ciências sociais brasileiras. Tentaria analisar algum caso específico de construção do aparelho estatal e sua relação com grupos e classes afetados por esse processo. Outro projeto é pensar indicadores para se medir a qualidade da classe política, partindo de uma discussão com textos de teoria política sobre o que seria um “bom governante”.
O livro que gostaria de ler foge completamente desses assuntos. No final das contas, acho que os grandes problemas que me interessam pessoalmente são de ordem subjetiva ou existencial. O maior problema de todos é, para mim, a morte. A literatura que aborda esse tipo de tema é, para mim, a melhor literatura. A literatura “realista”, “objetivista”, “social”, ou como se queira chamar, pouco me interessa. Há muitos livros e autores que lidam com os temas que me interessam. Portanto, seria equivocado dizer que o livro ainda não existe. Mas qualquer outro livro que coloque esse tema sob nova perspectiva ganharia o meu interesse. Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen, é um exemplo máximo, para mim, desse tipo de literatura.